Na Colina do Horto, em Juazeiro do Norte, Alzira e Maria são as últimas rezadeiras da irmandade de mulheres criada por Mãe Dodô (falecida), beata que conviveu com Padre Cícero

Biografia

Na subida da Colina do Horto, em Juazeiro do Norte, Alzira do Nascimento, 94, e Maria Isabel dos Santos, 62, vivem a rezar nos outros e para o mundo. Elas são as duas últimas rezadeiras da irmandade de mulheres criada por Mãe Dodô (falecida). Uma beata que conviveu com Padre Cícero e que os romeiros acreditam ter o dom da cura pela reza e benzenderia

Cipoais de orações

As duas últimas rezadeiras da Irmandade de Mãe Dodô vivem na subida do Horto, em Juazeiro do Norte. Deixaram tudo para ir rezar nos outros

Demitri Túlio (textos) demitri@opovo.com.br
Fábio Lima fotografia@opovo.com.br

A biografia de Maria Isabel dos Santos, 62, é uma vastidão. É semelhante aos enredos de vida de Alzira Mendes do Nascimento, 94, e das finadas Maria, Alexandrina, Doralice, Luíza, Brandina e da "madrinha" Mãe Dodô. Moças nascidas pelo Nordeste e que, um dia, migraram nas romarias atraídas pela "chama de Padre Cícero, Nossa Senhora das Dores e atrás de socorro". Nunca mais largaram Juazeiro do Norte. Optaram pela castidade, pela pobreza, deixaram as famílias e foram viver de rezar pelo alívio dos outros. Na primeira vez que estivemos na Casa de Mãe Dodô, na tarde de um domingo que encerrou as celebrações pelos 85 anos da viagem final de Padre Cicero, nem Isabel e muito menos Alzira tiveram forças para acordar. Tinham sido quatro dias seguidos de uma maratona de reza em muita gente. Nas romarias não tem vencimento e quem as procura, dificilmente, sai dali sem uma benção ladainhada.

As histórias da alagoana Alzira e da pernambucana Isabel repetem uma escrita de deslocamentos, peregrinações e permanências no Cariri cearense. As duas são as últimas rezadeiras de uma irmandade fundada por Dodô, beata que conviveu com o "Padim" e tomou para si a missão de "servir aos romeiros e de socorrer aflitos". Principalmente com cipoais de orações, privações e a divisão do que a providência divina ainda manda de doações. "Aqui, nunca teve fome", prega Maria Isabel. Mãe Dodô, conta Isabel, veio de Mata Branca, Alagoas. E antes de falecer, em 1998, já havia consolidado a irmandade não-canônica também para as bandas de Santa Brígida, na Bahia. Lugar onde seu corpo, testemunho e penitente, ia e vinha. "Eram seis meses lá e seis aqui", recorda a senhora que chegou ali mocinha.

Ela também veio de fora, em 1981, quando "começou fazer romaria". Chegou em pau-de-arara de Ibimirim, Pernambuco, aos 15 anos de idade. Na primeira temporada passou oito meses entre a Casa de Mãe Dodô e de um tio que vendeu tudo para vir morar na ladeira da Colina do Horto, nos pés da estátua de Padre Cícero.

Isabel conta que antes de vir pela primeira vez a Juazeiro, ela "só ouvia os pais contarem felicidades" da terra dos beatos e dos milagres. Agricultores, os pais vinham todo ano em alguma romaria agradecer por algo alcançado e encomendar novas demandas. Ou vinham, mesmo, porque "aqui era o lugar mais importante do mundo para voltar".

A menina, filha de uma família de 14 irmãos e que pouco foi à escola, foi a única que decidiu seguir a vida como rezadeira e não ter marido e filhos. "De achar homem pra casar, achei. Mas nunca quis. Minha felicidade era outra", pontua. Muito cedo, "depois de trabalhar nas casas de família", foi ser irmã de caridade sem ser de congregação oficializada pela igreja. "Eu tinha uma doença que nenhum médico achava. Eu vivia doente, doenças espirituais. O médico dizia que não tinha remédio para doença que ele não encontrava. Quando vim, meu pai perguntou o que eu iria fazer em Juazeiro doente daquele jeito? Vim e Mãe Dodô e as outras rezaram em mim. Foi o socorro espiritual. Minha doença era espiritual e curou", lembra Maria Isabel.

A reza da senhora, a senhora aprendeu com quem? Pergunto a Isabel. "Com ninguém. É dom espiritual que Deus me deu. Nem foi por homem nem foi por mulher dessa terra. Já vem um dom de nascença. No começo eu tinha medo, mas Mãe Dodô mandava confiar". Maria Isabel rezou por mais de meia hora, emendando uma ladainha na outra. Quando pedi pela reza, riu de canto de boca. Demorou uns minutos em silêncio, apertou as mãos, tirou os óculos, levantou-se e começou. Quase não para e, em momentos, parecia em transe. Na frente de mais de cem imagens de santos da igreja e de santificados do povo, cantou benditos que diziam que o "nome de Deus é santo e poderoso". Pediu ajuda para "combater o mal na terra", pediu que "do céu o pai eterno mandasse socorro" contra "os inimigos para homens e as mulheres no nascente e no poente". Pediu pelos "oceanos", valeu-se "da terra, dos planetas no céu", pelo socorro "à humanidade". Pediu que "quem tiver dormindo, acorde e ouça o nome de Jesus Cristo"... Rezou dentro de um vestido azul e num lenço branco na cabeça.

Dona Alzira do Nascimento, miúda, simpática, bem mouca aos 94 anos, permaneceu quieta num canto de parede onde havia um pote grande. Mas, do quarto dela, quando chegamos para saber da vida ali das rezadeiras, era uma voz potente ladainhando por de dentro do cômodo. Até aparecer, aparentemente frágil, na sala iluminada por telhas de vidro.

"Volta, volta canivete pelos caminhos que aqui chegaram... A Casa de Mãe Dodô é missão", era uma das ordens que emendava às alturas. Rezando sozinha no quarto com uma cama solteira, uns sacos e mais de 50 imagens de santos na parede.

Sobre Mãe Dodô

ORATÓRIO. A Casa de Mãe Dodô fica na Ladeira do Horto, 270, em Juazeiro do Norte. Uma morada simples de corredor, quartos do lado direito e algumas telhas de vidro.

ALTAR. Na entrada da casa, logo após o meio fio da ladeira, uma garagem e a sala foram transformadas em um salão de espera. Centenas de imagens de santos numa mesa e nas paredes formam um "altar".

TAMANHO REAL. A imagem de Mãe Dodô, em tamanho real, também está ali. Pele negra, olhos grandes, lenço na cabeça e vestido branco. Parece uma mãe de santo.

NÃO CANONIZADOS. Além da estátua de padre Cícero, um quadro da Menina Benigna se mistura aos santos da igreja. Também frei Damião e a própria Mãe Dodô

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