Trilha em Guaramiranga leva a capelinha de Ezequiel - que morreu em 1983. No local, brinquedos, comida e água por graças alcançadas
Francisco Izequiel Souza tinha 3 anos quando se perdeu na mata de Guaramiranga. Estava num grupo de crianças, levado por uma professora. Era 3/10/1983. O corpo foi achado 14 dias depois, a chupeta ainda perto. Não se sabe quanto tempo resistiu. A história do menino mimetizou com a floresta atlântica da região. O local recebeu uma cruz. Abriram uma trilha na mata, por quase dois quilômetros. Com seu martírio, passaram a visitar e fazer orações pedindo graças. Há terços, santinhos e pedidos pelo caminho. Construíram uma capelinha, onde os visitantes deixam brinquedos, comida e água, em doação ao menino. Todo 17 de outubro há uma celebração no lugar, mas semanalmente o ponto recebe novos devotados e agradecidos. Uma das irmãs, Edite Carminha, diz que fotos que haviam da criança foram destruídas pela mãe, à época, diante da tristeza pela morte.
Um trio de jacutingas está poucos metros à nossa frente. Bicam larvas, bagas de frutos, formigas e besouros. Arriscavam a refeição de fim de tarde até serem interrompidas por nós, intrusos no meio da mata. Por instinto de defesa, voaram se espalhando em árvores próximas, depois sumiram da vista. Ao longe, continuam os cantos de urus, sabiás, chorós, sibites, periquitos cara-suja aos gritos - dos que puderam ser reconhecidos pelo mateiro José Alves Carneiro, nosso guia. Estamos no início da trilha do menino Ezequiel, também conhecido como "o menininho perdido da montanha".
São 850 metros acima do nível do mar, 105 km distante de Fortaleza. Naquele mesmo ponto, uma limeira centenária. Árvore firme, madeira de lei, indefesa às lâminas de serras. Foi das espécies mais extraídas pelo homem naquele trecho de Mata Atlântica do território cearense. Hoje são pouquíssimos exemplares. Há guabirabas, maniçobas, copaíbas, embaúbas, outras plantas de cipós ou troncos lineares, mas poderiam ser mais. O trajeto é uma vereda aberta para quem visita o local de martírio de Francisco Izequiel Souza (nome de registro), que hoje é devotado como um santinho da floresta de Guaramiranga. São cerca de dois quilômetros caminhando até a cruz e a capelinha feitas para ele. Acreditam que ele seja milagreiro.
Na fé rezada pelo povo, Ezequiel (como é conhecido) atende pedidos para aflições da alma, problemas de saúde, dívidas em dinheiro, pelejas no amor ou outras questões terrenas aliviadas com orações em seu nome. A santificação tem se espalhado antes de alguma formalidade canônica. Os testemunhos correm a mata e cidades da região. Ou mais além. Chegam em visita de todo canto. Quem voltou a andar, empréstimo quitado, matrimônio reavivado, novo emprego. Pela trilha, os que acreditam deixam terços nos galhos, velas que iluminaram promessas, preces em papéis, iniciais de nomes riscadas nas árvores, imagens de outros santos. Um novo pedido ou o agradecimento. A devoção ao menino se mimetizou ao ambiente.
Ele tinha três anos de idade quando, de chupeta na boca, separou-se de um grupo com outras crianças. Uma professorinha do pré-escolar conduzia uma turma com cerca de 20 meninos e meninas. Passaram um riacho entre os sítios Arábia e Bom Retiro. Iriam ver um rebanho de carneiros de um criador local. O garoto foi visto vivo pela última vez na tarde de 3 de outubro de 1983. Era véspera da viagem que a família dele faria à romaria de São Francisco, em Canindé. A mata era muito mais fechada que a atual. Ezequiel desapareceu. Logo a notícia correu léguas. Os familiares tomaram-se de desespero. "Todas as crianças apareceram, só o nosso não. A família saiu procurando, perguntando nas casas, se alguém tinha visto. Os vizinhos foram muito solidários, mas ninguém o achou. Isso durou 14 dias", conta Edite Carminha, 75, irmã de Ezequiel.
O corpo foi encontrado no 14º dia, na área do sítio Bananeira. Uma vizinha, rezando o terço de fim de tarde no terreiro de casa, alertou de rasantes de urubus e sugeriu a ida àquele ponto. Confirmou-se a tristeza. A chupeta ainda estava próxima aos restos mortais decompostos. O menino teria morrido de fome e sede. No exame pericial, uma perna estava quebrada. "Meu pai sofreu muito", conta Edite. O garoto era o mais novo dos três filhos do segundo casamento do agricultor Raimundo Carminha - 16 filhos, no total. O pai entrou em depressão e morreu alguns meses depois. "Morreu por isso", garante a filha. A mãe de Ezequiel, Lúcia Amorim, hoje reside no Eusébio. Edite conta que ela rasgou fotos, documentos, tudo que fosse alguma lembrança do garoto.
Chegamos na capelinha de Ezequiel numa hora parecida com os primeiros momentos da agonia do menino desgarrado. A escuridão já assumia a floresta mansamente. O lugar mostra que a fé tenta amenizar o suplício da criança perdida. Além de rezas, quem visita costuma levar principalmente brinquedos para presenteá-lo. Há duas paredes cheias deles. Como um afago à infância interrompida. Também garrafas de água para a sede, biscoitos e outros alimentos pelos dias de fome. Ex-votos de partes do corpo de quem alcançou a graça, camisas de times de futebol, fotos, nomes rabiscados, imagens sacras, mais terços e velas. Troncos foram deitados como bancos para os fiéis. Há uma cruz no ponto onde Ezequiel morreu. Alguém amarrou uma chupeta numa das pontas. Para marcar o sofrimento, sinalizar a devoção. Quando o martírio é de uma criança, o respeito ganha ainda mais franqueza.
Seu Zé Carneiro, nosso guia, é um vivedor e sabedor dos rumos, bichos e plantas do local. É o único mestre da cultura do Ceará com o ofício de mateiro. Título autoexplicativo de sua experiência dentro da mata. Seu Zé afirma que é a própria floresta que agora ecoa a história do menino perdido da montanha. Retribuída com a trilha mantida pelos devotados. "O menino deu a própria vida para salvar essa área, que o homem tem depredado diariamente. Mas as pessoas já entendem que essa mata deve ser preservada", afirma o mestre. Em reverência a Ezequiel.
CARAVANAS. Na capelinha da mata, Ezequiel é lembrado em celebrações todo dia 17 de cada mês. A principal cerimônia do ano acontece no dia 17 de outubro, data em que seu corpo foi encontrado. Acontecem caravanas de fiéis ao local.
NASCIMENTO. O POVO conseguiu identificar, no cartório de Guaramiranga, as certidões de nascimento e de óbito de Francisco Izequiel Souza. Nem a família tinha mais documentos dele, que hoje teria 39 anos. Ele nasceu em 9 de setembro de 1980.
ÓBITO. Na certidão de óbito consta como causa da morte: "Encontrado morto após 14 dias do seu desaparecimento". Seu caixão de anjo foi enterrado no cemitério de Guaramiranga, num jazigo familiar, sem nenhuma identificação especial.
OBSCURO. Muito da precisão dos fatos se perdeu com o tempo. Como o menino se perdeu nunca ficou esclarecido, segundo os familiares. O POVO tentou falar com Maria Cristina Silva, a professora de Ezequiel à época do episódio. Hoje ela é proprietária de um restaurante em Guaramiranga. No dia que a equipe esteve na cidade, Cristina estava viajando. Foi deixado recado com sua filha, que trabalha no estabelecimento, mas não houve retorno. Também foram feitas ligações para dois números de celulares, mas não foram atendidas.
"Menino Ezequiel, rogai por nós!"