O túmulo de "São Sarafim", como está talhado na cruz de madeira, fica na praia de Icaraí de Amontada, onde o encontraram morto, dentro de um saco fechado por uma corrente
Um homem, dentro de um saco amarrado por uma corrente de ferro, encalhou, nas areias e pedras da praia de Icaraí de Amontada (a pouco mais de 180 quilômetros de Fortaleza), em 1904. Foi encontrado por uma senhora que pastorava cabras na região. Estava morto, mas ainda havia "sangue vivo" em seus ferimentos. Enterraram "o homem do saco" no local do achado, beirando o mar que o trouxe. Teve noite de os pescadores ouvirem um canto e não verem ninguém; teve outra de alguém sonhar com "o homem do saco" dizendo que se chamava Serafim. E, da maneira que entenderam e respeitaram, ao mesmo tempo em que foram rezando e alcançando graças, talharam na cruz da primeira sepultura do Cemitério das Pedras Compridas: "São Sarafim". Assim conta e santifica o povo que tem fé.
Vem, de menino, a curiosidade pelo primeiro túmulo na areia da praia, onde o povo, de perto e de longe, de antigamente e de agora, deixa súplicas, ex-votos, roupas, dinheiro. A propósito, é consideração entrar no Cemitério das Pedras Compridas, que se espalha na praia de Icaraí de Amontada (a pouco mais de 180 quilômetros de Fortaleza), pelo túmulo que a cruz de madeira demarca: "São Sarafim". Uma sepultura em par com o infinito, delineada por pedras e coberta pelos grãos da duna, que também vento e mar respeitam: não mexem.
Desde 1904, a sepultura se mantém no mesmo lugar (contra o movimento das dunas e da maré), descobriu o professor de Ciências Naturais Erisvaldo Gonçalves de Sousa, 55 anos, o menino que cresceu perguntador e que conduz O POVO por esta história. De curiosidade em curiosidade, a partir da devoção da mãe que rezava, em Dia de Finados, pela alma do avô e pela alma do homem que encalhou, nas pedras da praia, ensacado e morto, desconhecido para sempre, Erisvaldo alcançou um começo.
Percorrendo memórias dos moradores mais velhos, ele chegou até uma neta de dona Zefa Carla, pastora de cabras na região, que, contam, se deparou com o falecido encalhado, fez a mortalha e, com a ajuda do povo em redor, enterrou "o homem do saco" no lugar do achado.
A neta de dona Zefa está longe agora, mas o pescador João Teodoro dos Santos, 81 anos, que mora próximo ao cemitério, confirma a história pela boca do tempo: "Alcancei ela (Zefa) aí, lutando com essas ovelhas. Passava a noite pastejando as ovelhas, podia ser de quem fosse, ela cuidava", retrata. "Ela disse que chegou a ver e ajudou a enterrar", emenda.
Seu João restaura o que ouviu: o corpo estava em um saco, com uma corrente amarrada no pescoço (outra versão fala que a corrente lacrava o saco) e, na ponta da corrente, um pedaço de ferro, talvez, uma âncora. "Disse que a corrente roçava no rosto dele e o sangue vivim, parecia daquela hora!", encanta o pescador. Apesar do mar ou da morte, acrescenta seu João - que foi "muito judiado pelo mar" a vida inteira -, o corpo se mostrava conservado.
Nunca souberam quem era o homem, de onde veio ou o porquê da morte matada. Uma certeza, imagina o pescador, é que "se o mar trouxe ele, é porque ele tinha o merecimento do poder de Deus. Quer dizer que Deus foi quem fez o milagre dele encalhar porque merecimento, ele tinha".
O maravilhoso reverbera naquele lugar onde não há acesso à internet e as gerações conversam entre si. A professora aposentada Maria José de Souza, 75 anos, ouve falar do "homem do saco" desde criança: "Diz que, à tardinha, (pescadores) estavam trabalhando, diz que ouviu um som muito bonito no cemitério. Aí, acharam que ele era uma pessoa de Deus. Surgiu-se essa memória boa de pensar que ele era uma pessoa boa... Aquela voz bonita, mas não via a pessoa".
E teve uma noite de alguém sonhar com "o homem do saco" dizendo que deviam chamá-lo Serafim. Da maneira que entenderam e respeitaram, ao tempo em que rezavam e alcançavam graças, talharam na cruz da primeira sepultura do Cemitério das Pedras Compridas: "São Sarafim". Dona Maria José, que tinha mãe e avó devotas de São Serafim e o compara com "o (profeta) Jonas, da Bíblia, que ficou três dias na boca da baleia" e o mar devolveu, pediu-lhe pelo destino de um filho: "Minha fé foi tão grande que alcancei".
O cemitério nas dunas - a oito ou dez quilômetros da sede do município, dependendo do arrodeio pela praia ou pelo calçamento - foi se fazendo por aquela sepultura. Antepassados e até quem não existiu, "não teve registro legal na vida", aponta Erisvaldo Sousa, ainda se enterram lá: "Vem, sepulta, a duna cobre, sepulta outros, e sobrepõe umas às outras". Vem gente de Itapipoca, Amontada, Itarema, Trairi, "até 40 quilômetros de distância", aponta o pesquisador, ser sepultada em frente ao mar. "Lá, até morto você veve bem. Porque é bom. É um paraíso. Eu acho que lá, até você morto é feliz", deseja o dono de um restaurante local, que não quis ser identificado.
Acredita-se que São Sarafim descansa em paz, "zelado por muitas pessoas", mostra Erisvaldo. Há quem ajeite a cruz e tantos que adornam o túmulo com roupas e orações. O mistério toma de conta. "O mar, às vezes, lava e, quando volta, fica do mesmo jeitinho. Nunca desenterrou nada", garante o professor. "O mar passa, banha a cruz, mas não leva. O mar vai entrando no cemitério, mas onde colocaram a cova do Serafim, ele não leva e não penetra. O mar bate lá, dá a volta, mas não ataca o cemitério, não", confirma a fé de dona Maria José.
CEMITÉRIO. O caminho até o Cemitério das Pedras Compridas, feito em ruas de calçamento, de casca de coco (o cultivo de coqueiros é base da economia local) e de areia das dunas, passa por histórias de um lugar onde as gerações se conhecem e o tempo alinhava conversas nos alpendres.
MEMÓRIA. O professor Erisvaldo de Sousa, que diz chamar cada um dos 300 alunos pelo nome, passeia por memórias de Icaraí de Amontada, enquanto conduz O POVO ao cemitério. A exemplo do acontecido com João Morto, que ganhou o sobrenome indesejado depois de acordar no próprio velório.
PIRÃO ESCALDADO. Erisvaldo conta que, quase 24 horas depois de ser atestado falecido, quando a viúva servia o almoço para os que o velavam, na sala de casa, seu João despertou querendo "pirão escaldado", que ele mesmo estava morrendo de fome. Depois do susto e da correria, João Morto viveria muitos anos até morrer outra vez.
BOI CATIRINA. Outro fato digno de registro foi o enterro do boi Catirina, nas dunas da praia, com toda comoção. O animal era de um vereador "servia a todo mundo", Erisvaldo retrata o lamento da perda. Ao contrário de um fulano, ele compara, cuja família precisou pagar quatro diárias para que o transportassem até o cemitério.
MALQUISTO. Na época, o costume era um cortejo a pé: quatro amigos ou familiares seguiam na frente, carregando o morto em uma rede amarrada em dois paus de madeira. Mas aquele falecido era tão malquisto, que ninguém quis se dar ao trabalho de carregá-lo de graça.
CONTOS DE RÉIS. E ainda tem o causo na família de Erisvaldo: no tempo dos contos de réis, quando o pai era comerciante, houve um comprador que cismou lhe dever seis sacos de farinha. "Você vai me pagar nem que seja depois de morto!", insistia o comerciante.
SONHO. A vida passou, a morte sucedeu, o comércio acabou. Um dia, um casal bate palmas por ali, pedindo, pelo amor de Deus, que o antigo comerciante dissesse de quanto era uma dívida de seis sacos de farinha. O devedor não tinha sossego e aparecia, sonho atrás de sonho, pedindo para que fosse quitada.
Há quem reze o terço, há quem reze um Pai-Nosso e uma Ave-Maria.