Pelo Cariré, sabe-se apenas que o santificado se chamava José Francisco e que a morte, depois de uma injustiça e de alguns dias de agonia, se deu em 1901
José Francisco, "um nome nunca esquecido" - como pintaram na placa que indica a morte em 27/3/1901 -, era criado da casa. Quando a filha solteira do dono do sítio contou que estava grávida, disse também que o pai da criança era Zé Francisco, da maneira que lhe orientou o namorado covarde. O namorado sumiu no mundo. Zé foi julgado e condenado segundo a lei de quem manda. O pai e o irmão da moça fizeram o criado cavar uma sepultura, no meio do mato, "caparam" o rapaz e o enterraram vivo. Ficou só o par de chinelas de Zé Francisco do lado de fora da cova. Depois que a criança nasceu, descobriu-se a mentira; e o povo canonizou Zé Francisco, o inocente enterrado vivo. Esta história é emendada por um e outro mais antigo, nas entocas do Juré, depois de Reriutaba.
Esta é uma história muito difícil de contar, tanto pela procura quanto pelo penar. Há sete anos, em outra entrevista, passando a fé em revista, um colega anotou: houve um acontecido, no meio do mato perdido, de um homem que a própria sepultura cavou. Foi enterrado vivo, sem chance de perdão; agonizou dia e noite, aquele pobre cidadão. Dizem que a morte matada se deu numa emboscada, por uma mentira criada, nos cafundós do Juré, que tanto é rio como é arruado, pras bandas do Cariré.
Entre lonjuras, a reportagem andou; cruzou Reriutaba, se perdeu e se achou. Perguntou no posto de gasolina, no mercado e na oficina se alguém tinha ouvido falar, alguma vez, daquela sina. Ninguém sabia de nada, "mas meu camarada, pergunte ali mais na frente, aquela senhora de branco parece que é uma crente". De fato, era gente de igreja, mas não era na cidade que ia findar nossa peleja. A senhora de branco, com o terço na mão, indicou que a reportagem fosse do lado de lá do sertão.
De tanto ir e voltar, sem palavra certa encontrar, se aproximava a hora de desistir. Mas quem vai no rumo da fé atravessa o desconhecido e a incerteza, vence o cansaço e realiza a proeza; o único caminho é persistir. No nada do fim do mundo, surgiu, então, um bar e, naquele segundo, teve um para apontar: "Eu já ouvi essa história, procure, por acolá, os mais velhos do lugar devem ter guardado na memória".
Avançamos pela estradinha de terra, a esperança renovada, que alguma chegada vem depois de toda revoada. O sol já escaldando, na poeira restava uma casa, um cachorro e um jumento, ainda tinha um alento, era o sítio de seu Gonzaga Fernando: "Por aqui houve o acontecido de um inocente ter morrido. Era rapaz novo, morou vizinho do sítio que meu pai me deu, onde tem aqueles paus, mas todo mundo que sabia dele já morreu".
Voltar só com a morte escrita, essa tamanha desdita, depois de tanto querer a vida, não é cartilha sertaneja e, por mais improvável que seja, vamos saber daquele menino que cruza a estrada: "Garoto, faça uma caridade, diga se é mentira ou verdade, se existiu mesmo tal morte matada?". O menino respondeu pela boca de um anjo: "Pois essa história, eu já arranjo, é lá na minha casa. Cês tão bem pertim, é só seguir esse camim". Foi quando a reportagem criou asa.
E na Várzea da Cacimba, naquele alto mais em cima, muito foi esclarecido. Chamaram Pedro Ferreira, velho agricultor, que de uma queda foi valido pelo morto sofredor. Há uns anos, ele prometeu oração ao santo popular, se tivesse uma compensação e voltasse a andar.
Hoje, seu Pedro caminha até a capela, onde a cova do santificado Zé Francisco permanece, e o fiel ainda se enternece com tamanha expiação. É muita maldade, imagina, o que fizeram com aquele pobre cristão. Passou dias para morrer, pedindo água debaixo do chão, vivo ainda estava, assim o agricultor ouviu dizer e conta com precisão.
Em 1901, quando aquilo era deserto, o crime se sucedeu tendo o silêncio por perto. Feito Cristo carregou a cruz, Zé Francisco percorreu seu calvário, inocente, coitado, carregando uma pá para ser sacrificado. Seu Pedro conta melhor a crueldade e a agonia, que mais pungente do que poesia é a prosa que o sertanejo recria:
"A história que eu ouvi falar, quando cheguei aqui, que este rapaz, culparam ele, com um negócio com uma moça que tinha. Ele era criado da casa. A moça saiu grávida. No caso, era de outro namorado dela. O caba ensinou cuma era que ela fizesse, aí, saiu fora. Quando deram fé, ela culpou o rapaz, aí, foi a tragédia que se deu.
Era (filha) de gente pobre mesmo. Tinha recurso, mas era pouco. Aí, foi o pai dela e um filho, irmão dela, foro culpado, tivero preso em Sobral, passaro mais de 30 ano, quando foro solto, passaro muito pouco tempo, morrero.
Bom, levaro ele, ele mesmo cavou a cova. Depois que ele abriu a sepultura, disseram, cê tá sabendo pra que é isso aí? Ele disse, não, não tô sabendo, tô inocente. Aí, pegaro ele, com licença da palavra, derrubaro ele, caparo e botaro dentro da cova, vivo. O que eu sei é só inté aí...
A igrejinha é mermo no lugar da cova. E é milagrosa, tem dia que é um estrelado de fogos medonho. Festejo mais é agora, mês de setembro, outubro, novembro, inté o final do ano. Dia de Finado, é certo".
Essa é a história encontrada, entre graças alcançadas e no mato entranhada. Não há muito além da capela, das promessas pagas e de um par de chinela - que sempre alguém deixa ao lado do túmulo, igual no dia do infortúnio, para o pobre engrandecer: além da roupa do corpo, era o pertence do Zé, na hora dele morrer.
E, nas questões da fé, o pouco que se sabe é o muito em que se acredita. O certo é que, de um miserável, se faz uma alma bendita. Nesse mistério não cabe razão, resposta, explicação. Basta a expiação e a misericórdia, a cura alcançada, a morte desfeita, enfim, o mal sanado, para o vivente pecador ser o morto santificado.
O destino de Zé Francisco, enterrado vivo para salvação da honra alheia, também compõe a história do Brasil. "O caso combina com o costume da punição exemplar, ligada à definição de papéis masculinos e femininos", observa o historiador Régis Lopes, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. "Tem relação com a violência típica da colonização no Brasil e não apenas no Nordeste ou no sertão. Violência em nome da honra era comum. Dizia -se que um homem briga por três "coisas": terra, dinheiro e mulher", completa. Nesta entrevista, via WhatsApp, ele abre veredas por este passado não tão distante:
O POVO - O fato, descrito pela memória popular e repassado de geração a geração, aconteceu em 1901. Se o senhor pudesse ser espectador desta época, voltando aos sertões cearenses do início do século XX, o que mais lhe chamaria a atenção nesta história (a violência extremada, a culpa inventada, a justiça com as próprias mãos, a canonização popular...)? Que aspectos o senhor destacaria? Régis Lopes - O erro no julgamento. Veja: a culpa não foi inventada. O problema é que a condenação foi apressada. O julgamento foi errado. Por isso a tradição popular e bíblica diz que quem julga é Deus. Quando o julgamento vem dos homens, tudo pode dar muito errado.
O POVO - E o que esse acontecimento reflete sobre a história local, sobre a formação do lugar e da sociedade?
Régis - Totalmente. Uma sociedade machista e sem o cultivo da racionalidade, dominada por valores religiosos e pela tradição oral. É a história tal como aconteceu na colonização do Brasil, não apenas no sertão, mas em todo Brasil, inclusive nos centros urbanos, onde a violência não foi menor. O evento é típico de sociedades tradicionais. Sociedades que não cultivam a racionalidade e ficam dominadas pela tradição de fazer justiça com as próprias mãos.
O POVO - O senhor vê pontes entre essa cultura "de antigamente" e os tempos atuais (seja pela barbárie ou pela fé popular)?
Régis - A violência continua. A diferença é que agora entram dois fenômenos que não existiam: o tráfico de drogas e a teologia da prosperidade.
O POVO - E sobre a religiosidade/fé na composição do povo cearense?
Régis - Não há uma característica peculiar da religiosidade no Ceará. É tudo muito misturado. Por exemplo: os romeiros de Juazeiro, a maioria vem de fora. Em relação ao caso específico, a crueldade das elites. O Ceará tem a elite católica mais cruel do Brasil. Veja: o dono de um sítio. Quem manda matar é sempre dono de alguma coisa. Sempre. Em todas as histórias de crueldade, o cruel é o proprietário. Sempre. Isso é impressionante. Essa história particular mostra isso: mata quem pode matar. Sem ver isso, o caso vira apenas uma curiosidade folclórica. O caso, na verdade, mostra uma estrutura que se repete muito. O potentado manda matar e nada acontece. A justiça fecha os olhos. Aí, a devoção popular denuncia: ele matou um inocente. Aí, o inocente é transformado em Santo. Isso é uma forma de fazer justiça. O modelo é a morte de Cristo: anúncio do milagre é denúncia do crime.
Há quem reze o terço, há quem reze um Pai-Nosso e uma Ave-Maria.