Clemência deixou obra social importante em Baturité. Seus serviços de enfermaria eram conhecidos na região do Maciço. Sua beatificação é analisada no Vaticano
História da serva de Deus Francisca Benícia de Oliveira. Num ambulatório da Caridade Vicentina, fazia curativos e atendimentos em enfermos pobres para cura de doenças da época (bouba, queimaduras, verminoses, hemorragias, olho de peixe, tracoma, bicho-de-pé) mesmo sem nunca ter tido nenhum estudo técnico ou superior de medicina ou enfermagem. Era esse seu dom, o da cura, segundo quem estudou sua vida e depoimentos colhidos na cidade. Viveu de 1896 a 1966. Nasceu em Redenção. Em Fortaleza, trabalhou por duas décadas no colégio Imaculada Conceição, antes de ser transferida para Pacoti e Baturité. Fez o noviciado no Rio de Janeiro. O processo diocesano, aberto em 1995 por dom Aloísio Lorscheider e concluído em 2010 por dom José Antônio Tosi, a reconheceu como serva. Agora, há o processo romano, que tramita na Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano, para confirmá-la como venerável (atestar 14 virtudes heroicas) e, numa sequência eclesiática, a beatificação (1º milagre) e a canonização (2º milagre).
Irmã Clemência foi filha da Caridade de São Vicente de Paulo. Era uma freirinha franzina, nascida em Redenção, no Ceará, em 1896, que viveu até 1966, já perto de completar 70 anos. Em casa, era "Benecinha", Francisca Benícia de Oliveira, a primogênita de 13 irmãos. Escritos do confrade vicentino Murilo Alves Bessa e da irmã Elisabeth Silveira, da mesma ordem, falam de muitas obras de bondade, atos de caridade e o exercício do dom de cura, praticados entre Fortaleza, Pacoti e Baturité, por onde ela esteve em 47 anos de vida religiosa. Foram oito meses de noviciado no Rio de Janeiro e logo Benecinha vestiu o traje de sua vocação: o hábito e um chapelão branco que a caracterizavam.
Há mais virtudes de Clemência sendo investigadas pela Igreja Católica no processo de beatificação que tramita no Vaticano. A história a seguir é contada em relatos biográficos como um feito de milagre. Os anos foram apagando nomes de personagens, datas e confirmações. Já tarde da noite em Baturité, a ocorrência policial era de um homem esfaqueado, agonizando, levado para o chão da delegacia local. O intestino exposto como estava, era certo que não resistiria. Não conseguiam ambulância para levá-lo até a Capital nem um médico àquela hora. O delegado lembrou de chamar a freira.
A religiosa era afamada na região do Maciço por atender e cuidar de miseráveis em todo tipo de mazela. De feridentos com pestes de pele a tuberculosos, queimados, gente com verminoses, verrugas de bouba, hemorragias e outras pragas. Nunca estudou enfermagem nem medicina, aprendeu na lida. Foram buscá-la para o socorro, Clemência se dispôs como sempre.
No ambulatório São José, onde todo dia remediava a pobreza da cidade, a freira juntou o que tinha de material curativo (gazes, esparadrapos, álcool, mercúrio). Ferveu água para esterilizar uma agulha de costurar sacos de grãos. Chegou aonde estava o homem e fez uma oração. Decidiu suturá-lo e só dispunha de linha comum. Policiais e mais alguns de testemunhas viram quando Clemência recolocou as vísceras de volta ao abdômen do esfaqueado e ponteou-lhe a barriga ali mesmo, no chão. Apesar das condições, o sujeito sobreviveu, escapou até de infecção e sarou em poucos dias.
Irmã Clemência poderá ser a segunda cearense beatificada pela Congregação para as Causas dos Santos. É o tribunal do Vaticano que formaliza os novos santos e beatos da Igreja Católica Apostólica Romana, rastreando as devoções espontâneas dos altares populares. A primeira da lista deverá ser a Menina Benigna, de Santana do Cariri, que viveu de 1928 a 1941 - seu caso tem a burocracia eclesial bastante adiantada. Clemência hoje é uma Serva de Deus, o reconhecimento de uma primeira etapa que pode levá-la à canonização.
Em vida, a vicentina cearense teve o trabalho muitas vezes comparado ao da baiana Irmã Dulce, de ajuda aos pobres e desamparados de Salvador, também em assistência médica e distribuição de alimentos e abrigo. Dulce será canonizada pelo papa Francisco no próximo dia 13. O processo religioso de Clemência foi aberto em 1995. Foi apresentado pelo então arcebispo de Fortaleza, cardeal Aloísio Lorscheider,indicando sua beatificação. Estendeu-se até 2010, concluído na presidência do cardeal dom José Antônio Aparecido Tosi Marques. Sua condição de Serva foi reconhecida por unanimidade, ao analisarem sua fama de santidade. Era uma etapa ainda diocesana.
Na fase seguinte, que passou a ser conduzida a partir de Roma, foram examinadas as 14 virtudes heroicas: Fé, Esperança; Caridade, Amor a Deus, Amor aos irmãos, Prudência, Justiça para com Deus, Justiça para com os irmãos, Fortaleza, Temperança, Pobreza, Humildade, Obediência, Castidade. Em latim, Super virtutibus et fama sanctitatis. Foram aceitas, mas o protocolo ainda tem regras para elevá-la à condição de venerável.
"O processo no Vaticano requer uma documentação específica. O que está pendente hoje é o Positio. Esta é a fase atual", explica o professor de Filosofia Moisés Rocha Farias, estudioso da vida de irmã Clemência. O Positio é o estudo elaborado por um teólogo, que se debruça em pesquisas para dizer se as virtudes são verdadeiras ou não, até sugerir a beatificação. É como uma tese de doutorado. Só este parecer pode gerar custos altos com viagens, análises presenciais, coleta de documentos e depoimentos. O processo esteve parado na Santa Sé e também será necessária uma petição para restabelecer o caso.
"O trâmite é semelhante a um processo judicial", explica o professor, que é membro da Academia Brasileira de Hagiologia (Abrhagi), dedicada ao estudo dos santos. Rocha ocupa justamente a cadeira número 5 da entidade, que tem Clemência como patronesse. Se o processo seguir, um primeiro milagre reconhecido e Clemência será beatificada. Um segundo milagre, nas mesmas condições de inexplicável, imediato e constante, e será ungida, elevada ao sagrado. Canonizada, estará santificada nos altares oficiais.
Desde os 36 anos, Clemência viveu sob o diagnóstico de uma infecção pulmonar e renal muito graves. Adquiriu com o calor dos fogões da cozinha do colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza, onde trabalhou por duas décadas. Também costurava desde jovem. Havia ido repousar e se tratar no Pacoti, quando viu a pobreza na região serrana e pouco tempo depois estava praticando bondades em Baturité. Logo que morreu (já bastante adoentada), começaram as preces e orações a ela.
No tempo de noviça no Rio, aprendeu a ler e escrever em francês. Num escrito no livro Prise d´Habit (Tomada de Hábito), confirmou sua devoção: "Jesus, je desire plutôt mourrir que de vous etre infidele, et accordez-moi la grace de vous aimer de plus en plus" (Jesus, prefiro morrer do que ser infiel a você e conceda-me a graça de amá-lo cada vez mais). No seu jazigo, transferido do cemitério para dentro da igreja matriz de Nossa Senhora da Palma, em Baturité, está escrito: "Prestou relevantes trabalhos caritativos junto aos pobres doentes. Como serva humilde, tomou-os como senhores e mestres".
PRIMOGÊNITA. "Benecinha" tinha 18 anos quando a mãe, Francisca, morreu. Como primogênita, cuidou de todos os irmãos - 3 o mais novo tinha dois anos. Aos 23, quando foi anunciar ao pai, seu Joaquim, que iria assumir a vida religiosa, ele foi contra. Consultou a prole, todos concordaram com a decisão dela e ele acatou. Mais tarde, duas irmãs dela também tornaram-se vicentinas.
ASSISTÊNCIA. Em Baturité, o atendimento de irmã Clemência no ambulatório São José ajudou a formar o que hoje é o Hospital e Maternidade José Pinto do Carmo. Recebe pacientes de mais sete cidades (Itapiúna, Capistrano, Aracoiaba, Guaramiranga, Pacoti, Mulungu e Aratuba). Serviços de obstetrícia, pediatria e ambulatorial.
DEVOÇÃO. Raimundo Ivo dos Santos, diretor do Hospital, é devoto. "Talvez na história de Baturité ninguém tenha se igualado ao trabalho da irmã Clemência. Tanto no lado de caridade, piedade, humildade, de santidade. Mesmo que ela não esteja ainda beatificada, eu tenho a irmã Clemência não como beata, mas como santa".
PROCESSO. Irmã Rita de Cássia, 83 anos, do colégio Imaculada Conceição, atuou no processo diocesano de irmã Clemência. Ela conta a história de uma criança com uma ferida na mão, já desenganada pelos médicos, indicada para amputação. "Ela se dedicou a tomar conta dessa criança. Fez curativos insistentemente, cuidava dos medicamentos e a criança escapou da amputação".
MEMORIAL. Há um memorial para Irmã Clemência no local onde funcionava seu ambulatório. É aberto a visitações. Há fotos, pertences pessoais e vários instrumentos hospitalares do tempo dos seus atendimentos (estufa, cama, roupas, livros, escrivaninha, . Nas mesmas instalações funciona um projeto sócio-cultural, com aulas gratuitas de violão e coral para 30 crianças.