"Santos" sem Vaticano não findam de acontecer no Semiárido brasileiro. Assim como as secas e as temporadas chuvosas. Não é diferente em outras regiões do País antes territórios indígenas e, depois, invadidas pela Coroa portuguesa e pela Igreja Católica, a partir dos 1500. Seria, tradicionalmente, católico o hábito de florescer "santificados" nas beiras de estrada? Nas florestas? Nas ruas? Na cidadezinha esquecida? No mar? Nas casas de rezar? Talvez não, porque o mote aqui é o sublime, o sagrado e não o hierático.
Ser concebido no divino popular não seria um traço indígena ou afrolatino na retomada do costume usurpado? O "santificado" do cotidiano, pessoa de carne e osso que ganhou altar no sol, vem (na verdade) da delicada compaixão do devoto. Compadecido do martírio, do inesperado destino, da acreditação no outro como transcendente, o piedoso faz nascer no chão o afeto e a transgressão. E não é só pelo sofrimento ou causa moral, mas pela empatia e pontes feitas com o lar, com oralidade e com uma ancestralidade muitas vezes apagada pelo "vencedor". Aí, também, mora a resistência e rebeldia ao canônico. A metáfora do acreditar é do tamanho da fé. Depois de quase uma década, O POVO lança nova temporada da série Santificados. Mais uma grande reportagem, em formato de caderno e outras mídias, que amplia o acervo da trilogia lançada em 2011, e experimenta a linguagem de quadrinhos, no traço do artista Carlus Campos, para contar duas das sagas deste especial transmídia.
Há oito anos, trouxemos histórias desembrenhadas do Semiárido e investigadas pelo jornalismo etnográfico nos especiais "Nos altares de beira de estrada", "Das preces de lembrar, vidas e credos" e "Da graça de acreditar e duvidar". Agora, "Santificados - Do tamanho da Fé" revela a sina do "Leproso milagroso", em Granja. O miserável que teve/tem misericórdia dos que lhe desprezaram. Do Enterrado Vivo, José Francisco, onde os pedintes se encontram e se identificam na angústia do outro. Tem a estrada do Santo Sepulcro, campo santificado contra "feitiços", porque Juazeiro do Norte é um "sacrário" popular. Histórias que viraram permanência feito o desassossego de Ezequiel, um menino que se perdeu na montanha, em Guaramiranga, e os crentes lhe oferecem brinquedos na mata.
Os repórteres Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Demitri Túlio e Émerson Maranhão voltaram para a estrada e percorreram mais de quatro mil quilômetros em busca de quem foi "santificado" pelo povo no rés do chão. Independente da chancela eclesial. Não tem problema se você não crê. A fé, provavelmente, seja um dom. Boa leitura e boa viagem pelo Semiárido santificado!
| ENSAIO | O professor Nahor Lopes, da Academia Brasileira de Hagiologia faz uma reflexão sobre gênese dos santos para afirmar que eles nascem no amor
Nahor Lopes de Souza Jr.(*)
Dizem que os santos e os políticos surgem pelo mesmo motivo: vêm do meio do povo, fazem o bem às pessoas, ajudam multidões e seu legado permanece na consciência de uma nação. A diferença crucial é obvia, mas sempre é necessário repetir, e aqui o faço invocando uma frase do pensador dinamarquês Søren Kierkegaard: "O tirano morre e seu reinado termina. O mártir morre e seu reinado começa".
Não é todo político um tirano, mas todo tirano foi um político um dia, e como bem pensou um dia Platão, em A República, esse é o grande perigo e tentação dos agentes políticos. Um santo jamais será tirano nem é propenso a tal, pois sua potencialidade são justamente as coisas infinitas.
Um santo mira o amor. É daí que ele nasce. Do amor das crianças, do amor com os idosos, do amor com os excluídos e marginalizados, do amor para com a natureza. Eles são aqueles provavelmente pensados por São João da Cruz quando disse: "No fim, seremos julgamos pelo amor".
Uma das maiores provas de amor chama-se amizade. Os santos são amigos de Deus e dos seres humanos. Fundamenta-se na Bíblia o conceito de santo. No Livro de Jó, quando os amigos do personagem principal caem em desgraça perante Yahweh (o Deus hebraico), Este diz que somente escutará a oração de Jó por eles, como uma intercessão:
Tomai, pois, sete bezerros e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós, e o meu servo Jó orará por vós; porque deveras a ele aceitarei, para que eu não vos trate conforme a vossa loucura; porque vós não falastes de mim o que era reto como o meu servo Jó. (...) E o Senhor virou o cativeiro de Jó, quando orava pelos seus amigos; e o Senhor acrescentou, em dobro, a tudo quanto Jó antes possuía. (Jó 42,8.10)
Mas, de onde surge essa palavra? O termo santo tem, basicamente, sua origem no latim sanctus, que significa "aquilo que se tornou sagrado". O correspondente em grego escreve (lê-se hagios). Era um termo relacionado a uma divindade romana antiga, o Sancus, que tinha como fama não romper os juramentos das pessoas para com as outras divindades.
O Cristianismo, em seus inícios, pegou o termo para si, atribuindo aquelas consideradas as testemunhas celestes de Deus. Quando Paulo, na carta aos Romanos, diz: "(...) amados de Deus, chamados santos" (Romanos 1,7), já está apropriando o termo outrora utilizado na liturgia pagã, e convidando as pessoas a buscarem essa integridade e amizade para com Deus.
Por isso que a Igreja Católica jamais cria santos. É confuso e curioso isso de ser entendido, mas a Igreja reconhece os santos, já que nascem daquele amor cotidiano para com Deus, seus filhos e filhas, e o resto de sua linda Criação. A Congregação dos Santos, órgão do Vaticano revestido de normal burocracia, ratifica processos que outrora começaram todos do mesmo jeito: a vida de alguém que viveu o amor e a amizade transmitindo Deus às pessoas.
Às vezes a vida de um candidato a santo foi interrompida de forma brusca (martírio), outros de forma natural. E aqui reside mais uma diferença entre os políticos e os santos: enquanto os primeiros são candidatos por si, os últimos são candidatados pelo amor de seu povo!
(*) Nahor Lopes de Souza Junior, 34 anos, é graduado em Filosofia, e atua como professor desta área nas cidades de Itajaí, Balneário Camboriú e Itapema, todas em Santa Catarina. Antes de ser professor, foi seminarista católico por oito anos. Membro da Academia Brasileira de Hagiologia, é escritor, com dois livros publicados e participação em quatro coletâneas de contos e poesias. Foi premiado com a Medalha "Eternos Combatentes" pela Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira pelos seus estudos sobre os pracinhas brasileiros na Segunda Guerra Mundial.
"A palavra é dor. Porque dor não se deixa, dor é coisa que se leva. Estar dentro da dor é deixar-se levar para depois da dor. É pular o muro e ver a dor do outro lado. Mas dor não se esconde, que ela aparece. A Menina nasceu na dor, cresceu morta e agora, pela boca do Santinho, diz que volta porque não esquece a dor. E esse ano a dor é a palavra".
Santinho, personagem do filme A Festa da Menina Morta,
de Matheus Nachtergaele
| AUDIOVISUAL | Duas produções audiovisuais se destacam ao se debruçar sobre santificados populares. Um filme e uma novela, separados por 23 anos, lançam olhares impiedosos, mas amorosos, sobre o fenômeno, provocam e instigam
Émerson MaranhãoÉ inegável o apelo dramático, e dramatúrgico, dos relatos daqueles que foram santificados pelo povo. Narrativas com grande vocação audiovisual constituem sedutores pontos de partida naturais para roteiros cinematográficos e televisivos. No entanto, dentro da acepção da maioria das histórias apresentadas nestes cinco cadernos especiais produzidos pelo O POVO (três em 2011 e dois neste outubro) são poucas suas transposições para as telas.
Exceção feita a história de padre Cícero Romão Batista, que ganhou sua primeira versão teledramatúrgica há 35 anos, na minissérie Padre Cícero, escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato e exibida pela TV Globo. A história também teve versão cinematográfica no docudrama Milagre em Juazeiro (1999), de Wolney Oliveira, e em Juazeiro, a nova Jerusálem (2001), de Rosemberg Cariry.
O próprio Rosemberg já havia se aproximado do tema em Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1986), seu primeiro longa, que conta o massacre da comunidade religiosa do Caldeirão, no Crato, liderada pelo beato José Lourenço. No entanto, diferentemente dos que foram santificados popularmente após martírio ou pela sua generosidade, tema dos retratados nesta série jornalística, o filme parte da ação do beato em vida.
O que é recorrente em nossa cinematografia, vide o glauberiano beato Sebastião em Deus e Diabo na Terra do Sol (1964), o Antônio Conselheiro de Guerra de Canudos (1997), adaptação de Sérgio Rezende para o clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha, e até mesmo o profeta Miguezim, da novela Cordel Encantado, de Thelma Guedes e Duca Rachid, exibida pela TV Globo em 2011.
Mas duas produções específicas, uma no cinema, a outra na TV, trazem olhares muito próprios e interessantes sobre o universo dos santificados. A cinematográfica é A Festa da Menina Morta (2008), estreia de Matheus Nachtergaele na direção. Com roteiro assinado a quatro mãos por Matheus e Hilton Lacerda, o filme conta a história de um pequeno vilarejo no Amazonas, onde há 20 anos é realizado o evento que dá nome ao longa. A festa celebra o milagre realizado por Santinho, que recebeu em suas mãos, da boca de um cachorro, os trapos de uma menina desaparecida. Desde então, anualmente ela incorpora nele, para fazer profecias e dar bênçãos.
Sem spoilers, o que a produção tem de mais interessante, sob a perspectiva dos cadernos, é apontar para dois santos que se integram em um. Há a menina martirizada, de quem as pessoas são devotas e a quem acorrem, e há o santo vivo, oráculo para a entidade morta, e que tem sua santidade obtida a partir do sacrifício da menina.
Também é muito interessante como A Menina retrata, sem falsa piedade, o entorno da adoração, o ritual da festa, as implicações desta santificação. Um filme pouco conhecido, mas que merece ser visto com atenção, apesar de seus excessos.
Já a produção televisiva é um dos maiores clássicos de nossa teledramaturgia, Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, também realizada pela TV Globo. Na pequena cidade Asa Branca, os moradores vivem em função dos milagres de Roque Santeiro, um coroinha e artesão de santos de barro que teria morrido como mártir ao defender a cidade do bandido Navalhada, e teve seu corpo jogado no rio. A partir dai passou a conceder graças. Na verdade, Roque não morreu, fugiu com o ostensório da igreja e reaparece, em carne e osso, 17 anos depois.
Para além do melodrama característico dos folhetins, Roque Santeiro traz em sua trama várias camadas de leituras e um olhar aguçado sobre a construção e exploração de mitos populares. A começar pela sutileza da escolha da profissão do protagonista. Quase duas décadas depois do primeiro milagre de Roque, não só a cidade foi impactada diretamente pela sua santificação como vários dos personagens de seu entorno sofreram e sofrem consequências diretas do ato. E tudo será posto à prova com a iminência da descoberta da farsa.
Indubitavelmente, uma obra prima.
Nas distâncias do mundo, aonde não se sabe bem como chegar (sente-se apenas que é preciso ir até lá ao menos uma vez na vida); nos sertões dos lugares e das pessoas, onde moram silêncios, dá-se um encontro entre o humano e o divino. O comum se torna extraordinário depois do martírio ou da agonia, quando acontece o tempo da misericórdia. É assim, melhor vê o sertanejo, como o Semiárido se transforma depois da seca, se o céu manda água, salva-se. A chuva renasce planta e rio, a compaixão renasce o ser humano. Há mistérios que unem tudo o que é vivo, seja aqui ou além. Podem se chamar amor, solidariedade, esperança, fé...
O jornalismo atravessa cada uma dessas pontes, quer sempre alcançar os encontros. Investiga os mistérios porque deseja sempre as mil e uma respostas que possam compor uma grande história, a maior. Aquela história que vai contar sobre todos, e sobre uma civilização inteira, e sobre as crenças - ou resistências - que movem montanhas e mudam mortes. Creio, logo resisto; respondem as mais diversas pessoas, nas distâncias do mundo, que O POVO encontrou nesta reportagem especial, atravessando, uma vez mais, a fé. Creio, logo recrio; cada um completa e transforma os finais, quantas vezes for necessário para que a vida siga ao infinito.
A fé é a partida, é o passo adiante, é caminho sobre as águas. É muito mais sobre o que não se detém. É a força restante, a companhia de última hora, o derradeiro acreditar. Esses são entendimentos que O POVO alcançou neste projeto especial, em busca dos santificados populares - um Zé, um Serafim, um Antônio, um Ezequiel, uma Maria, uma Francisca, uma Alzira, uma Clemência, uma Benigna... que não estão nas honras dos altares, mas que sacralizam estradas de terra e abençoam matas e mares, unindo terra e céu.
O ser humano feito sagrado se aproxima do que a vida, essencialmente, é. E somente a fé de alguém em outro alguém pode restaurar a humanidade. Pois conta-se que houve um divino, há mais de dois mil anos, que desejou se tornar humano, de tanto amor. Por amar, se fez um de nós e sentiu como sentimos - também as dores. Então, talvez a santificação de um ser humano por outro ser humano seja, finalmente, a percepção do divino que nos habita: do amor, da dor, do perdão, da compaixão. Há, sim, um maravilhoso em cada um de nós. (Por Ana Mary C. Cavalcante)