O automóvel, como o meio mais comumente utilizado nos deslocamentos da população, acaba colaborando para a intensificação dos impactos ambientais nas áreas urbanas, acentuando ainda mais a desigualdade nas cidades. Ao longo do tempo, à medida que os territórios foram sendo ampliados, aumentou a necessidade de automóveis para as pessoas percorrerem longas distâncias, em uma relação “simbiótica”, como define Paulo César Marques da Silva, professor de Engenharia de Tráfego da Universidade de Brasília (UnB).
Nesta segunda edição da série Movimento Urbano percorremos as ruas da Cidade para descobrir de quem é a culpa de uma mobilidade pouco saudável nas grandes capitais. A origem do problema pode ser avistada ainda no surgimento das cidades, como aponta Fausto Nilo. “Depois desse período de convivência com o carro, nesses 80, 90 anos, é possível dizer que foi concedido excesso de espaço para eles em relação às pessoas”, analisa o arquiteto e urbanista.
Os usos variados dos meios de transporte ampliam as possibilidades de implantação de novos modelos de locomoção, como os aplicativos de carros compartilhados. Ainda assim, o carro não aparece como solução primeira para uma mobilidade sustentável. O espaço viário é finito, logo, alternativas que levem mais pessoas devem ser priorizadas. Outra questão envolve o uso amplo do carro para deslocamentos que poderiam ser feitos a pé, em algumas situações.
Nesses cenários, a segurança da mulher é colocada em xeque. Soluções criativas e femininas dão conta de dar à mulher a liberdade de ir e vir nos carros de apps de compartilhamento.
Em movimento ou estacionados, diariamente os carros exigem que as cidades tenham espaços disponíveis para eles. E ao longo do tempo, à medida que os territórios foram sendo ampliados, aumentou a necessidade de automóveis para as pessoas percorrerem longas distâncias, em uma relação “simbiótica”, como define Paulo César Marques da Silva, professor de Engenharia de Tráfego da Universidade de Brasília (UnB).
“Em linhas gerais, o problema não é o automóvel em si, mas a dependência que temos [dele], individualmente e coletivamente”, defende o professor. Diferentemente das antigas cidades europeias, que não foram projetadas para esse tipo de locomoção e têm pouco espaço para os carros, a conformação física das cidades brasileiras, mais recentes, é resultado dessa relação com o automóvel.
Um exemplo citado pelo arquiteto e urbanista Fausto Nilo é Brasília, construída com as características da época do urbanismo modernista. No caso de Fortaleza, o arquiteto explica que a malha urbana é radial-concêntrica. Isso significa que o crescimento do território aconteceu a partir de um núcleo onde as pessoas viviam e realizavam transações comerciais, o Centro. Para se chegar à área central a partir de outras regiões, foram criados caminhos que, com o tempo, tornaram-se permanentes.
À medida que a elite passa a morar em áreas mais distantes, o espaço urbano cresce, vias orbitais — como a avenida 13 de Maio — são construídas gradativamente, e o Centro deixa de ser um “hub de mobilidade”, segundo o arquiteto. “Tudo passava por ele, convergia e ia para outro lugar. Aquilo dava oportunidades para o comércio, dava oportunidades aos moradores”. Além disso, sedes de instituições oficiais deixaram de ocupar a região.
A expansão de Fortaleza, com o surgimento de bairros, foi orientada pelas linhas de bonde da época, conforme acrescenta Clélia Lustosa, coordenadora do Núcleo de Fortaleza do Observatório das Metrópoles e professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 1880, por exemplo, as linhas saíam da Praça do Ferreira em direção ao Joaquim Távora, Benfica e Bezerra de Menezes. “A descentralização da moradia foi uma grande transformação na Cidade”.
Esse processo tem impacto no atual cenário da mobilidade urbana da Capital, em que majoritariamente utilizam-se veículos individuais para o deslocamento. Segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito do Estado do Ceará (Detran), a frota de automóveis na Capital, até maio de 2019, passa de 611 mil unidades.
A dependência dos automóveis particulares vai contra o objetivo que orienta o urbanismo contemporâneo — que, segundo Fausto Nilo, arquiteto e urbanista, é a gradativa redução dela. “Depois desse período de convivência com o carro, nesses 80, 90 anos, é possível dizer que foi concedido excesso de espaço para eles em relação às pessoas”.
No cenário atual, não é possível falar em abolir o uso de automóveis. Porém, especialistas apontam a necessidade de promover outros meios de deslocamento. “Qualquer cidade, hoje, depende de as pessoas deslocarem-se a distâncias razoáveis. Então, é preciso que haja mesmo transporte veicular. [Mas] o transporte veicular individual é insustentável, porque exige muito espaço para se deslocar e, principalmente, para ficar parado”, afirma Paulo César Marques da Silva, professor de Engenharia de Tráfego da Universidade de Brasília (UnB). “O modo padrão, universal, não pode ser o carro. Tem que ser o transporte público”, complementa.
Por o transporte individual ocupar e exigir tanto espaço, defende-se a conectividade dos transportes públicos. A maneira como Fortaleza cresceu, porém, dificulta essa implantação. “Quando uma cidade como Fortaleza tem um formato desse tipo [radial-concêntrico], levar todo mundo em um transporte público e deixar a 300 m de casa é difícil. Então, o nosso transporte é ineficiente. É preciso fazer grandes investimentos em mudança, o que eu considero que seria prioritário, antes de viaduto”, afirma Fausto Nilo.
Políticas adotadas em Fortaleza, como as faixas exclusivas para ônibus, os corredores expressos e o sistema metroviário, para Clélia Lustosa, coordenadora do Núcleo de Fortaleza do Observatório das Metrópoles e professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), são mudanças positivas para a Cidade. Porém, a professora aponta a necessidade de melhorias. “Os transportes, separados, são caros. Tem que haver uma política de integração”, afirma.
No cenário nacional, também existe essa necessidade de melhorias do transporte público, tanto financeira como estrutural. “Tem que fazer um investimento grande em transporte coletivo, em abrangência territorial e de horário de atendimento. [E] acaba sendo muito caro no dia a dia”, acrescenta o professor Paulo César Marques da Silva.
Para além da mudança no modal utilizado na hora de se locomover, Fausto Nilo defende a necessidade de a distribuição física de atividades disponíveis à população na cidade ser modificada para que as pessoas percorram distâncias menores no dia a dia. “Há uma ideia leiga de que isso, quando a cidade fica bem grande, é progresso. É o contrário”, afirma o arquiteto, ao defender o conceito de cidade compacta.
Nas grandes metrópoles, a ideia é que, próximo à própria residência, as pessoas tenham acesso a serviços que atendam às necessidades de rotina, como escolas e outros empreendimentos. “Não é defender a vida ilhada em uma vizinhança, mas estabelecer a vida em vizinhança de maneira confortável”, destaca o arquiteto. O conceito está presente no Eixo Urbanístico e Mobilidade do Plano Fortaleza 2040, do qual Fausto Nilo é coordenador.
Promover a maior conectividade do transporte público possibilita que a população tenha acesso às diferentes áreas da cidade. “Hoje, o acesso igual a todo mundo é considerado o elemento de justiça social urbana mais importante. Uma pessoa do Bom Jardim chegar igual à da Aldeota a todo lugar que queira. Isso é a justiça básica. Supõe-se que chegar [aos lugares] é ter acesso a oportunidades, porque a cidade é um campo de intercâmbio”.
AUTOMÓVEL
Ceará (36,55%)
1.181.161
Fortaleza (53,9%)
611.196
Interior do Estado (27,17%)
569.965
Fonte: VEÍCULOS POR TIPO NO ESTADO DO CEARÁ - DETRAN-CE | ATÉ MAIO/2019
O aumento do transporte individual motorizado contribui para:
Deterioração das condições de mobilidade da população dos grandes centros urbanos;
Crescimento dos acidentes de trânsito com vítimas;
Aumento dos congestionamentos urbanos;
Aumento dos poluentes veiculares;
Acentua ainda mais a desigualdade nas cidades.
Um carro para cada estilo
O uso do carro mudou com o passar dos anos. Perfil brasileiro, contudo, ainda coloca o bem como símbolo de status financeiro
Por Hamlet Oliveira
Quando se fala de mobilidade urbana, questões sobre implementação de maior malha cicloviária, melhoria no transporte público e ações que priorizam pedestres estão sempre em evidência. Dentro do cenário das grandes cidades, os veículos particulares, contudo, possuem uma participação relevante no deslocamento da população, seja por questão de necessidade ou de desejo do público de adquirir um carro.
Durante o período de crise econômica no Brasil, o número de veículos vendidos no País sofreu queda, por conta dos contingenciamentos realizados pelos brasileiros em suas contas. Entre 2014 e 2016, o segmento ficou em baixa, com uma recuperação moderada tendo início em 2017 e se mantendo no ano seguinte. Até agora, 2019 segue a tendência, com o número de vendas em ascensão.
“Valorizamos muito esse tipo de consumo que revela sua situação econômica, e o automóvel é um símbolo muito forte dessa questão”, diz o economista Alex Araújo. Em relação a mercados estrangeiros, o especialista aponta que as vendas de carros se estabilizaram, por conta de iniciativas de mobilidade que suplantaram as necessidades da população.
Foi o aspecto econômico que modificou a relação do professor Rafael Menezes com o próprio veículo, adquirido em 2016. Antes usuário constante do transporte coletivo, após perceber que utilizar o carro cotidianamente representava um custo que não conseguia arcar, passou deixar o veículo em casa e utilizá-lo apenas em situações específicas e dias na semana nos quais faz o transporte de seus instrumentos musicais, que utiliza tanto para lazer quanto para trabalho.
“Na parte do transporte público, com a inserção do Bilhete Único, da integração, dos corredores de ônibus. Isso facilitou bastante para quem usa ônibus. O surgimento de aplicativos de transporte, como Uber, 99Pop, acredito que também representaram uma melhoria para quem usa transporte em Fortaleza”, conta.
No cotidiano do publicitário Igor Aguiar, o deslocamento via Uber passou a ser mais viável, por questões econômicas e de praticidade, comparado a manter dois carros, um para ele e outro para a esposa. “Antes, eu demorava cerca de meia hora desde o momento em que saía de casa até bater o ponto no trabalho. Porque são 12 minutos de trajeto, de carro, mas eu rodava aproximadamente 15 minutos procurando vaga, até estacionar bem longe e ir andando até a agência”, relata.
Em abril deste ano, o casal vendeu os dois carros e adquiriu um novo. Para voltar a casa, Igor opta pelo ônibus, por conta da faixa exclusiva localizada na avenida Santos Dumont. Contudo, o publicitário pontua que o carro particular ainda traz praticidade. “Acho importante ter um carro em casa, mas eu percebi que não precisava de um só para o deslocamento do dia a dia.”
Alex Araújo defende que, em um futuro próximo, a relação dos brasileiros com a compra de um carro será modificada, por conta dos avanços tecnológicos, como a expansão dos veículos autônomos, já em fase de testes em algumas partes do mundo. “Em parte pela oferta de ciclofaixas, patinetes, veículos compartilhados, tempo de locomoção do veículo próprio e o custo [a compra] que isso representa.”
Ao alcance do celular
No caso de Fortaleza, a chegada de aplicativos de transporte reformulou a maneira com que os usuários lidam com esse tipo de modal. Usuária do aplicativo Uber desde que a empresa chegou a Fortaleza, em 2016, a cuidadora Jane Lima se diz satisfeita com a experiência. Hoje, a maior parte dos deslocamentos de Jane são feitos pela plataforma. Além do aspecto econômico - taxas mais em conta em comparação ao serviço de táxi-, a saúde também foi determinante para ela deixar de deslocar-se via ônibus, devido a um problema na coluna.
“Até o momento, para mim, está sendo um transporte favorável. Tem suas falhas, mas isso existe em tudo. Às vezes, pegamos um profissional que não é tão educado, o transporte não é bem adequado, pegamos carro velho”, ressalta Jane.
De acordo com o último levantamento feito pela Uber, 758 mil usuários fizeram uso da plataforma, no primeiro trimestre de 2018, em Fortaleza. Em relação aos motoristas, a Capital cearense concentrava 18 mil profissionais. A 99Pop, empresa do mesmo segmento, não informou sobre dados regionais. No País, 18 milhões de usuários utilizam o app, com 600 mil motoristas cadastrados.
O carro na mobilidade urbana
Tendo como base a Política Nacional de Mobilidade Urbana, Mário Azevedo, professor do departamento de engenharia de transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que um uso mais consciente do carro traria benefícios para as cidades. O uso em viagens “pendulares”, por exemplo, em que se vai e volta do trabalho, não é eficiente, pois o veículo passa a maior parte do dia estacionado, sem outra serventia. Em contextos como esse, o uso de transportes como bicicletas e ônibus são mais indicados, defende.
Outro ponto abordado pelo professor é o crescimento de Fortaleza para outras partes, o que gerou um uso intenso de veículos inexistente em décadas anteriores. “Antes, não tinha aquele drama da BR 116 chegando a Fortaleza. Teve verticalização em Messejana, no Cambeba, aumentou o número de pessoas com certa faixa financeira”, diz.
O pensamento é corroborado por Ezequiel Dantas, coordenador do Observatório de Segurança Viária de Fortaleza (OSV), que aponta duas perspectivas do carro particular como modal de transporte. A primeira é de que o espaço viário é finito, logo, alternativas que levem mais pessoas devem ser priorizadas. Outra questão envolve o uso amplo do carro para deslocamentos que poderiam ser feitos a pé, em algumas situações. “[É preciso] Uma mudança de cidade como um todo. Fortaleza já foi muito transformada, mas precisa ser continuada”, diz Dantas.
VAMO - Carros compartilhados
Outro uso do carro em Fortaleza é com o Veículos Alternativos para Mobilidade (VAMO). Inaugurado em 2016, o sistema de carros compartilhados possui 12 estações, para retirada e devolução, e seis vagas, nas quais é possível somente devolver os veículos. De acordo com informações do serviço, mais de seis mil viagens já foram realizadas até junho deste ano. A média de usos por dia é de 8,52, com quintas, sextas-feiras e sábados sendo os dias com maior intensidade de uso.
Taxa de uso: de R$ 15 (30 minutos) a R$ 35 (180 minutos). Após esse tempo, um valor de R$ 0,30 a R$ 0,50 é cobrado por minuto adicional.
O direito de ir e vir é questionável quando se é mulher. Pesquisa da Instituição Patrícia Galvão e do Instituto Locomotiva indica que 46% das mulheres não se sentem confiantes para usar meios de transporte sem sofrer assédio sexual. Das 1.801 entrevistadas em fevereiro de 2019, 97% contaram que já foram vítimas de assédio em meios de transporte públicos e/ou privados.
Mesmo que a maioria dos assédios tenha acontecido em transportes públicos, o levantamento demonstra que transportes por aplicativo acumulam reclamações de olhares insistentes (10%), cantadas indesejadas (9%) e comentários de cunho sexual (4%). Ainda assim, carros compartilhados são considerados os mais seguros pelas mulheres. Para elas, há facilidade de denunciar assédios pelos aplicativos e mais chances de punição dos assediadores.
As medidas protetivas por parte das plataformas como Uber e 99Pop surgiram justamente após casos de assédio sexual e estupros cometidos por motoristas associados. Ainda que os condutores não sejam funcionários das empresas, as entidades se viram na obrigação de disponibilizar meios de denúncia e intensificar as ações de segurança.
Em nota, a 99Pop explica que mais 130 profissionais compõem o setor de segurança da empresa, entre eles ex-militares, engenheiros de dados e psicólogos, disponíveis em tempo integral. A equipe desenvolveu em parceria com a consultoria feminista Think Eva o Rastreador de Comentários, inteligência artificial que vasculha automaticamente as avaliações das usuárias para a identificação dos casos de assédio ou violência sexual.
Após a detecção de algo suspeito, uma equipe especializada realiza segunda checagem para tomar as providências possíveis, como bloqueio do agressor, suporte para investigação pelas autoridades policiais e informações sobre suporte psicológico e jurídico. Ainda é possível denunciar casos de assédio pelo aplicativo e pelo canal de atendimento emergencial 0800-888-8999.
Em 2019, a empresa lançou o reconhecimento facial periódico do rosto dos motoristas antes de se conectarem ao app. Além disso, a 99 também disponibilizou curso presencial ou online para os associados sobre as condutas de respeito e tolerância nas viagens. O primeiro módulo tem foco no combate à LGBTQfobia. Os próximos, sobre assédio e racismo, estarão disponíveis em agosto deste ano.
A Uber também desenvolve ferramentas e projetos educativos para segurança dos usuários, a começar pelo cadastro dos motoristas: todos passam por checagem de antecedentes criminais no momento do cadastro e ao menos uma vez por ano. A empresa também possui detecção automática de linguagem imprópria nas mensagens enviadas no bate-papo do aplicativo, além do botão Recursos de Segurança. Ele reúne todas as funções de segurança da plataforma, como ligar para a Polícia diretamente pelo app.
Em novembro de 2018, a Uber anunciou investimento de R$ 1,55 milhão até 2020 em projetos elaborados com entidades feministas para enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil. Entre eles, o Podcast de Respeito, parceria com o Instituto Promundo, especialista em envolver homens e meninos em trabalhos pela igualdade de gênero. São seis episódios distribuídos para todos os motoristas da plataforma.
Para a motorista
Yanna Sousa, 25, começou a trabalhar como Uber em junho deste ano e já está acostumada com a recepção de passageiras. “Muitas ficam muito felizes e falam que se pudessem só pegariam motoristas mulheres. Elas se sentem mais protegidas”, conta. A mesma sensação vale para Yanna.
Além da insegurança do assédio por parte dos passageiros, a condutora ressalta a ausência de mulheres trabalhando na área. Pessoalmente, conhece apenas uma. Já em um grupo de Facebook de motoristas, de 42 integrantes, são somente quatro profissionais. Segundo Yanna, a pouca adesão delas nos serviços se dá pelo medo - e por maridos desaprovarem a atuação na área.
Justamente para acolher o público feminino de motoristas que Katiane Sousa, 49, e mais três mulheres fundaram o Feras no Volante, grupo de motoristas composto por 117 mulheres. “Nosso objetivo é auxiliar as motoristas profissionalmente, emocionalmente e oferecer segurança por meio de aplicativos”, explica Katiane.
Pelo Zello, aplicativo de rádio online, as profissionais conversam e trocam códigos de segurança. Em casos de perigo, as parceiras podem contatar a Polícia e indicar a localização exata da motorista em risco. Para isso, elas utilizam o aplicativo de monitoramento em tempo real Drive Social. As parceiras são identificadas por adesivo do Feras no Volante na traseira do carro.
O Feras também vira espécie de grupo de apoio para as profissionais. Nele, as mulheres sentem-se à vontade para discutir temas que vão desde maternidade e menstruação, até compartilhar casos de assédio sexual e depressão. “Nós acabamos nos tornando um apoio espiritual e emocional muito importante para essas meninas. O foco do nosso grupo, além do trabalho, é cuidar”, orgulha-se a fundadora.
Alternativas
Na tentativa de garantir ainda mais proteção às usuárias de transporte por aplicativo, surgem iniciativas que repensam o serviço. É o caso do Mary Drive, empresa que contrata e transporta apenas mulheres. O CEO do Mary Drive, Felipe Martins, explica que a decisão faz parte do principal pilar da empresa, a segurança.
Para tal, o aplicativo realiza validação do Cadastro de Pessoa Física (CPF) das motoristas e usuárias para conferir o gênero delas. Crianças até 12 anos e idosos a partir de 60 podem utilizar o serviço acompanhados de uma mulher solicitante. Para resguardar ainda mais as associadas, são promovidos treinamentos de segurança e encontros regulares para ouvir questionamentos e solicitações das Marys.
Das cinco cidades assistidas pelo app, Fortaleza já é a terceira melhor operação do aplicativo. Ainda assim, a adesão a serviços focados no público feminino é baixa comparada a empresas mais abrangentes.
Para Felipe, isso ocorre principalmente pelo desconhecimento das mulheres sobre as alternativas de carros compartilhados voltados para o público feminino. Além disso, o CEO explica que a propaganda dos serviços precisa ser intensificada. “Além das corridas, [as empresas] têm que atender ao apelo e lutar pela causa”, defende.
Cabe a quem? A trama visível de uma mobilidade parcial
A população mundial é de 7,6 bilhões de pessoas, onde 55% vivem em áreas urbanas (ONU, 2018); desses números, 76% das 209 milhões de pessoas no Brasil vivem em cidades (IBGE), sendo que o Ceará atingiu, em 2018, a marca de mais de nove milhões de habitantes, mantendo-se como o 8º estado mais populoso do Brasil. Fortaleza está no ranking como a 5ª maior cidade do Brasil, com 2.627.482 pessoas.
Detentora de uma malha urbana que vem se expandindo e carrega em si a marca da inexistência histórica de um planejamento urbano eficaz, em consonância com os planos diretores, e que na realidade faz do seu traçado a reprodução de um sistema que não atende ao crescimento e às necessidades da população da cidade, Fortaleza se constrói sobre a imagem de referência em mobilidade urbana que avançou no tempo, mas não conseguiu ainda integrar de forma satisfatória quem realmente necessita regularmente de transporte público. Horas em engarrafamentos, em transportes por vezes lotados nas saídas dos terminais nos horários de pico, sob condições insalubres quando falamos de ônibus que atendem às áreas periféricas da cidade, ou seja, não são vitrines.
A Lei de Mobilidade Nº 12.587/12 estabelece as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e define, dentre os seus princípios, a acessibilidade universal; a eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano; a segurança nos deslocamentos das pessoas; entre outros. Esses são elementos para se entender que é necessária a integração com a política de desenvolvimento urbano, sendo prioridade os modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado, cabendo ao Município gerir tais processos, como previsto no Art. 182 da Constituição Federal de 1988.
E qual a relação da mobilidade urbana com o desemprego? No segundo trimestre de 2019, a população brasileira desempregada, ou seja, pessoas de 14 anos ou mais que buscaram emprego sem encontrar, somou 12% (IBGE, 2019) e 11,5 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, de acordo com a pesquisa do IBGE publicada em 31 de julho de 2019. No caso do Ceará, quantificado pelo IPECE (2019), aproximadamente 467 mil pessoas entre janeiro e março encontravam-se desempregadas.
Para o site da Revista Época, em matéria intitulada “A uberização do trabalho no século XXI”, o mundo do trabalho está em ebulição, a informalidade tem crescido e os impactos das transformações provocadas pela automação acentuada apresentam previsões que vão de cortes de 10% a 40% dos empregos atuais. A população jovem masculina, principalmente, passou a buscar alternativas de trabalho no mercado em expansão, que é o transporte de pessoas e a entrega de comidas, incluindo nesse caso as bicicletas.
Esse transporte é incentivado como forma de minimizar problemas relacionados ao deslocamento, considerado como uma necessidade representativa para a saúde pública, com objetivo de elevar seus níveis de longevidade e bem-estar; acaba hoje por ser o reflexo nessas situações da precarização das relações de trabalho num processo que ficou conhecido como uberização, em que diversas startups são apenas fornecedoras de tecnologia de serviço intermediário, não assumindo nenhuma responsabilidade trabalhista, mesmo compondo hoje o cenário das maiores ‘empregadoras’ do País. Quase quatro milhões de trabalhadores autônomos utilizam hoje as plataformas como fonte de renda (Estadão, 2019).
É bem verdade que essa discussão merece uma pauta específica, mas por hora se faz necessário pensar que essas pessoas estão nas ruas e a sua mobilidade cabe, sim, à atenção do Município. Os tempos são outros e se hoje falamos de cidades inteligentes, o modelo centrado em áreas nobres ou onde os números ditam as regras é um equívoco que só pode ser corrigido quando se pensa em um Plano Diretor realmente participativo. Ouvir a população é o primeiro passo para moldar um sistema que integre a malha urbana sem priorizações de classe e áreas.
ANNA ERIKA FERREIRA LIMA
Doutora em Geografia; Professora do Departamento de Turismo, Hospitalidade e Lazer (IFCE-Campus Fortaleza) e Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi-Campus Fortaleza).