A expedição que não terminou e ainda rende frutos

Por Érico Firmo

Comissão produziu grande acervo zoológico, que nunca foi organizado e catalogado. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Manuel Ferreira Lagos foi quem primeiro levantou a ideia de uma expedição científica brasileira ao interior do país. Ele discursou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 30 de maio de 1856, em sessão presidida pelo imperador Pedro II. Três anos depois, ele foi o chefe da seção zoológica dentro da Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das províncias do Norte. Mas, havia um problema.

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Investigação pode lançar luz sobre destino do enorme acervo de aves da Comissão Científica. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“Lagos era muito mais um bibliófilo que gostava de Zoologia que propriamente um zoólogo”, define Marco Aurélio Crozariol, doutor em Zoologia pelo Museu Nacional. "A Zoologia era-lhe agradável passatempo", descreveu Renato Braga no clássico "História da Comissão Científica de Exploração" (Edições Demócrito Rocha, 2004, p. 34).

 

Francisco Freire Alemão e Gonçalves Dias registram que, no Ceará, Lagos estava se dedicando mais a etnoconhecimento que à Zoologia. Com isso, o assunto propriamente ficou praticamente nas mãos dos ajudantes de campo, taxidermistas e coletores. Sobretudo os irmãos João Pedro Vila-Real e Lucas Antônio Vila-Real. No retorno ao Rio de Janeiro, Lagos foi trabalhar na biblioteca do Museu Nacional. João Pedro casou e ficou no Ceará. Lucas Antônio morreu um ano após o retorno da comissão, em 1862.

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Só de aves, o material colhido somava mais de quatro mil. “Ele (Lagos)  praticamente chegou com esse material, colocou na coleção de Zoologia e saiu. Esse material nunca foi etiquetado, nunca foi trabalhado”, relata Crozariol. “Como elas nunca foram etiquetadas, a gente não tem como identificar com precisão qual é o espécime proveniente dessa expedição”.

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“Uma expedição científica não acaba quando você coloca o material numa caixa e manda para uma instituição. Quando o material é colocado numa caixa e chega à instituição, acabou o trabalho de campo. Na instituição, tem o trabalho de curadoria desse material, de produção de informação desse material”, explica Renata Stopiglia, doutora em Ciências Biológicas (Zoologia) e pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Como esse trabalho nunca foi feito em relação à Seção Zoológica, de certa forma, a Comissão das Borboletas ainda não terminou.

Fauna cearense que a Comissão viu nunca rendeu estudos por falta da devida catalogação
 

REDESCOBERTA

O prejuízo científico por esse material nunca ter sido devidamente catalogado é irremediável. Ou era. Marco Crozariol estuda a história da coleção do Museu Nacional. E começou a trabalhar com o material não-etiquetado. Entre os espécimes, há vários com uma forma peculiar de taxidermia - de ser empalhado. Em um deles, um canário da terra, Crozariol achou uma etiqueta. Nela estava escrito: “Ceará 33”.

Galo de campina, ou cardeal-do-nordeste, bastante comum no Sertão Central. Aqui fotografado em Quixadá. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

O número faz referência ao código de algum catálogo que se perdeu. Porém, é a primeira vez que se encontra um espécime daquela coleção em link direto com o Estado. Em estudo ainda inédito, o pesquisador investiga a hipótese de que aquela ave tenha sido proveniente da Comissão Científica de Exploração.

Espécies que O POVO encontrou nas rotas pelo Ceará de hoje. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

A partir desse único espécime com essa inscrição, Crozariol tenta fazer a relação com outros itens da coleção, a partir da forma similar de taxidermia e outras pistas. “Cada pessoa que faz taxidermia monta o espécime de um jeito. É como se fosse a assinatura do artista. Taxidermia é uma arte”.

São indícios, também, o tipo de linha usada para amarrar, a caligrafia e a forma como foi colocada a etiqueta - os outros espécimes não têm a inscrição “Ceará”, mas têm anotações com caligrafia parecida, em tipo de papel similar. “Isso tudo te dá pistas. Você nunca vai ter prova concreta de que aqueles outros espécimes são, realmente. Mas isso ajuda, nesse primeiro passo, a ter um grupo de possíveis espécimes da coleção”, diz Crozariol. Ele busca mais pistas.

Aves são o foco do estudo de Marco Crozariol. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

A pesquisa tenta desvendar o mistério sobre as aves da coleção científica do Ceará. Não é mera curiosidade. Se confirmada, a descoberta poderá revelar como era a fauna de aves cearenses há 160 anos, que espécies foram extintas, quais foram introduzidas e como se distribuíam. “A gente consegue entender o movimento da fauna através do tempo e do espaço por um trabalho desses, que é histórico e investigativo”, explica Crozariol.

A Comissão das Borboletas não acabou até hoje e ainda tem muito por revelar. 

A coleção viva do museu que a comissão inspirou

Por Érico Firmo

Abelhas uruçu, do Ecomuseu do Pacoti. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Em 2014, numa aula sobre o Brasil Imperial em Pacoti, o professor Levi Jucá falou sobre a Comissão Científica de Exploração. Os alunos ficaram fascinados. Ele foi para casa com aquilo na cabeça. Naquele dia surgiu a ideia de uma experiência de iniciação científica com estudantes do ensino médio, inspirada na Comissão Científica de Exploração. Surgiu então, na escola estadual Menezes Pimentel, o projeto Jovem Explorador, que faz uma releitura da Comissão das Borboletas. Os adolescentes se dividem nas mesmas cinco áreas da expedição: Botânica, Zoológica, Geológica, Astronômica e Etnográfica. O diálogo interdisciplinar chegou a causar estranheza de outros professores.

Abelhas nativas do Brasil, como a uruçu, não têm ferrão. As abelhas com sertão foram trazidas de fora. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Os alunos estudaram o método dos pesquisadores e foram a campo produzir conhecimento eles próprios. Começaram pelo arquivo da própria escola, a primeira instituição pública de ensino de Pacoti. Eles encontraram a primeira folha de pagamento dos operários que construíram o colégio. A iniciativa levou à criação do Ecomuseu do Pacoti, inspirado no conceito do museólogo francês Hugues de Varine. Para construção da sede, os estudantes fecharam parceria com o engenheiro Joaquim Caracas, doou estrutura de plástico reciclado, reaproveitado da indústria, patenteada por ele. O material é usado do chão ao teto. Telha e paredes têm camada térmica. E o piso não tem alicerce - o que significa que o Ecomuseu pode até ser transferido de lugar.

A parte mais interessante, todavia, não é uma coleção de objetos ou livros, que normalmente compõem os museus. O Ecomuseu do Pacoti guarda uma coleção viva. Em referência à seção zoológica da comissão, eles têm uma criação de abelhas uruçu, típicas da serra. Elas têm ferrão atrofiado e o mel que produzem foi comparado por Alceu Valença ao sabor da saliva de sua Morena Tropicana: “Saliva doce, doce mel, mel de uruçu”.

Levi - que é historiador, mas acabou aprendendo sobre ciências naturais com o projeto - explica que as abelhas com ferrão não são espécies brasileiras. Foram introduzidas no período colonial, como as europeias, africanas, italianas.

Criação de abelhas do Ecomuseu do Pacoti. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

PRÊMIOS

A partir do segundo ano, o projeto começou a colecionar prêmios. Foi por três anos consecutivos primeiro lugar geral das feiras científicas da Secretaria da Educação (Seduc) na área de ciências humanas. Em 2015, foi primeiro lugar geral do Ceará, credenciando para feiras nacionais. O projeto foi ainda um dos vencedores do Prêmio Desafio Criativos da Escola, do Instituto Alana, em 2015, em São Paulo. Em 2016, ganhou o Prêmio Laureate Brasil Jovem Empreendedor Social, em Manaus. Em dezembro de 2016, os estudantes foram até Pequim, na China, como representante do Brasil no congresso "Be the Change" - Design For Change. E o mais importante, o 1º lugar no VI Prêmio Ibero-americano de Educação e Museus, do Ibermuseus e Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em Brasília, em novembro de 2015. O Ecomuseu do Pacoti concorreu com museus de Portugal, Espanha e toda América Latina. Levou o prêmio pela inovação e criatividade.

 

FUTURO

Além disso, vários estudantes que deixaram o projeto escolheram cursos de graduação relacionados à experiência, em áreas como Engenharia Ambiental, Biologia, Geografia e História.

 

 

Novos aprendizados

Por Érico Firmo

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Levi Jucá cursa doutorado em Educação, no eixo Ciências, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele estuda as expedições científicas do século XIX à Serra de Baturité. Na tese, ele faz estudo inédito sobre Manuel Freire Alemão, sobrinho do chefe da seção Botânica, Francisco Freire Alemão, que acompanhou o tio no Ceará.  Manuel também deixou diário de viagem com escritos sobre o Ceará. Os registros são tão competentes quanto os do tio. Ocorre que muito desse material se misturou. É atribuído como se tudo fosse de Francisco Freire Alemão. A partir da caligrafia, Jucá separa, pela primeira vez, o que foi feito por cada um e estabelece qual foi a contribuição da Manuel Freire Alemão. Uma das principais, Levi antecipa, é um tratado sobre o uso das ervas medicinais pelo povo do Ceará. 

 

A aventura tragicômica dos dromedários no sertão

Por Érico Firmo

O geólogo Francisco Correia Ivo retratou o espanto das crianças ao verem os dromedários, dos quais apenas se vê o vulto
 

O episódio provavelmente mais famoso envolvendo a Comissão Científica envolve a "importação" de dromedários do deserto para o sertão. A desastrada experiência rendeu samba-enredo campeão do Carnaval do Rio de Janeiro de 1995 pela Imperatriz Leopoldinense, com patrocínio do Governo do Ceará: "Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube... lá no Ceará".

A iniciativa partiu da Sociedade Zoológica de Aclimatação de Paris. Argel era colônia francesa e a entidade buscou "exportar" os animais do deserto para locais áridos. Dizia-se haver experiências bem-sucedidas na Austrália e nos Estados Unidos. No Brasil, coube a Guilherme de Capanema, chefe da seção Geológica, tentar emplacar os dromedários no sertão. O Ceará não tinha trem e todo o transporte interno era a cavalo, jumento, no máximo carro de boi. Então, era uma forma de tentar facilitar os deslocamentos pelo Interior. Foi um fiasco.

Em 24 de julho de 1859, chegaram de Argel 14 dromedários e quatro argelinos, contratados para ensinar os cuidados com os animais. “Aportaram em Fortaleza para o frisson da população daquela época, que nunca tinha visto aquele bicho. O pessoal se benzia, o que é isso que está aparecendo aqui”, narra o professor e historiador Levi Jucá. Até o presidente da província foi, a cavalo, ver os dromedários. “Os meninos choravam assombrados. Muita gente se benzia e batia as portas diante da insólita aparição” (Renato Braga em História da Comissão Científica de Exploração. Edições Demócrito Rocha, 2004, p. 61). Um dos animais fugiu do depósito municipal e quase foi abatido a tiros em Arronches - atual Parangaba.

Os dromedários deveriam ir para Quixeramobim e Granja. Porém, permaneceram por algum tempo na capital, para se ambientarem. Em 14 de setembro de 1859, Capanema e Gonçalves Dias fizeram incursão com eles a Baturité. Os solavancos causaram enjoo. "A partida foi feita entre palmas e gargalhadas dos que acorreram para a ela assistir. A molecada, aos gritos e pinchos, acompanhou a caravana até fora de portas", relatou Braga (p. 64). Em Pacatuba, eles desistiram e terminaram a jornada a cavalo. Foi a única viagem feita por membros da comissão com os dromedários.

No fim de outubro, os argelinos fizeram nova tentativa, rumo a Baturité. A carga caiu e quebrou a pata de um dos animais, que acabou morrendo. O episódio foi usado politicamente para desgastar a comissão. “Tudo isso fez com que esse lado trágico e cômico se sobrepusesse sobre as demais questões, que eram tão mais importantes dessa comissão”, resume Levi Jucá.

 

O samba-enredo:

"Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube... lá no Ceará"

 

Ecoam pelo ar

Estórias de tesouros escondidos

Sou poeta da canção e embarco

Nesse sonho encantado

Vou com destino ao Ceará

Em busca de um novo Eldorado


(Eu levo)

Levo comigo a ciência

Do país a sapiência

Tudo eu quero relatar

Nessa expedição bem brasileira

Chegam mouros e camelos

Não precisa se assustar


(Balançou)

Balançou, não deu certo não

Pois não passou de ilusão

Eles trouxeram o balanço do deserto

Mas não é o gingado certo

Pra cruzar o nosso chão


O jegue escondido na história

Ajuda o sertanejo a tocar seu dia-a-dia

Trabalha, ara a terra sob o sol

E leva o fardo pesado

De um povo sofredor


Mais vale a simplicidade

A buscar mil novidades

E criar complicação

Esquecendo o bom e o útil

Renegar o que é nosso

Gera insatisfação


O sertão não é só lamento

Meu momento é aqui

Faço a festa e lavo a alma

Hoje na Sapucaí

(bis)

 

"O melhor carneiro do mundo"

Por Carlos Mazza (reportagem)

Gado, uma riqueza de Tauá, protegendo-se sob a sombra das árvores. (Foto: Julio Caesar/O POVO)

“Quando se soube no Ceará que para ali partia uma comissão científica, encarregada de explorar o interior da província, a mor parte dos habitantes exultou de prazer, sonhando logo com a descoberta de minas de diamantes e de quantos metais preciosos se conhecem, apesar de possuírem já três ricas minas inesgotáveis, mais lucrativas do que se fossem de diamantes, de ouro e de platina (...) falo da agricultura, criação do gado e pescaria”.

Pecuária era vista como riqueza por Manuel Freire Alemão. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

O trecho acima, escrito em 1961 por Manuel Ferreira Lagos, destaca bem os potenciais de exploração que os membros da Comissão Científica consideravam “desperdiçados” no Ceará – “talvez por falta de quem lhes abra os olhos”. Conduzindo a Seção Zoológica do grupo, Lagos destaca sobretudo o potencial do “sertão pecuário” dos Inhamuns, à época marcado por grandes pastos e criações de gado e carneiro.

Até hoje, 160 anos depois da passagem do grupo, a produção pecuarista segue símbolo da região. A grande quantidade de placas no trecho da BR-020 de Tauá, que alertam motoristas da presença de animais na pista, já evidenciam essa relação. “Todo o Inhamuns tem muito pasto, muita criação de animal. E todos sabem que aqui tem o melhor carneiro do mundo”, destaca, sem muita modéstia, o agricultor Gaudêncio Siqueira, de Tauá.

Pesca em Saboeiro, outra das riquezas do Sertão. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

Levando a reportagem do O POVO para conhecer a localidade de Carrapateiras, ele nos mostra o “segredo” para a famosa maciez do carneiro dos Ihamuns: a favela, uma planta nativa pequena e cheia de espinhos. “Essa é uma planta espinhosa, que solta um líquido que arde e coça muito. Nenhum bicho chega muito perto, mas os carneiros, bodes, gostam muito. Comem tudo, e é daí que vem esse gosto diferente do carneiro criado aqui”.

Pesca na Lagoa de Messejana, em Fortaleza. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

A planta xerófila, muito comum nos sertões mais secos do Nordeste, já era registrada pelos exploradores que por aqui passaram em 1860, sendo classificada como “estimulosa” e “abundante”.

 

 

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