O tesouro perdido do céus cearenses

Por Carlos Mazza (reportagem)

Astronomia foi um dos pilares da Comissão das Borboletas. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

Um telescópio, sete teodolitos, duas lunetas zenitais, dois pluviômetros e mais duas dezenas de aparelhos de nomes complicados: todos equipamentos que jamais haviam medido antes os sertões cearenses. Talvez o segmento da Comissão Científica de Exploração com menos resultados, a Seção Astronômica e Geográfica ficou marcada por intempéries e possuía, por incrível que pareça, relação determinante para a busca de minerais preciosos no Ceará.

 

“Havia o interesse de coletar informações sobre tudo, quaisquer coisas extraordinárias (...) a Seção Astronômica tinha essa missão, catalogar eventos climáticos, algo que chamasse atenção, pudesse ser significativo”, diz Emerson Ferreira de Almeida, diretor do Museu do Eclipse de Sobral. “A presença de anomalias magnéticas pode indicar depósitos minerais no subsolo, por exemplo, então por isso essa importância desse trabalho”, explica.

 

Boa parte dos equipamentos e materiais coletados pela Seção liderada pelo Giacomo Raja Gabaglia, no entanto, acabou afundando junto com o “Palpite”, embarcação que naufragou no litoral de Camocim em março de 1861. “O trabalho dessa Seção se dava em duas etapas: primeiro, se coletaram as informações, que em um momento posterior seriam analisadas em laboratório. Infelizmente, essa segunda etapa jamais chegou a ser realizada”, diz Emerson.

Carta de Francisco Freire Alemão, de abril de 1861, chegava inclusive a pedir auxílio do então presidente da província, Antônio Marcelino Nunes Gonçalves, na recuperação de parte do material naufragado: "Não constando como, nem onde se fez este naufrágio, nem se se salvou alguma cousa ou se haverá possibilidade de salvar-se, rogo a Vossa Excelência que se sirva dar as providências que julgar necessárias para que as autoridades locais procurem salvar, se for possível, essa bagagem, pois nela se achavam objetos de subido valor para a Comissão, como são livros e registros de observações”.

Por conta do naufrágio, os trabalhos – que já haviam sido retardados pela dificuldade em transportar os grandes e frágeis equipamentos pelo Interior – acabaram quase todos perdidos. “Esses registros astronômicos desapareceram, primeiro pelo naufrágio, depois pelo incêndio recente no Museu Histórico Nacional”. O embaraço foi tanto que, ao contrário dos demais grupos, a Seção Astronômica e Geográfica jamais publicou relatório de seus trabalhos.

Anos mais tarde, em 1878, o chefe da Seção Mineralógica e Geológica, Guilherme de Capanema, chegou a denunciar que as observações, determinações e estudos da Seção Astronômica e Geográfica ainda existiam, mas estavam em mãos particulares. O naturalista chegou a cobrar que o governo reavesse os documentos, o que nunca ocorreu.

Emerson Ferreira de Almeida, diretor do Museu do Eclipse de Sobral. Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

A vocação sobralense

Décadas após a passagem da Seção Astronômica e Geográfica pelo Ceará, o Interior do Estado voltou a cruzar novamente a história da astronomia. Dessa vez, no entanto, resultados das pesquisas foram em sentido oposto ao fiasco do grupo chefiado por Raja Gabaglia: em maio de 1919, o município de Sobral serviu de palco para experimento que provou a Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.

Segundo Emerson Ferreira, o município cearense foi escolhido para o experimento com um eclipse lunar por uma série de questões objetivas. “Além de a sombra da lua passar sobre Sobral, havia várias condições logísticas envolvidas, como ligação próxima com o Porto de Camocim, na época um dos principais da região, comunicação telegráfica e até facilidades de estrutura para receber os astrônomos e cientistas.

No experimento, foram registradas diversas fotos do céu em telescópios de alta precisão antes e no momento exato do eclipse. Segundo a teoria de Einstein, a massa do sol teria influência sobre os astros, distorcendo a distância entre as estrelas durante o fenômeno. Ao examinar os dados coletados em Sobral, ficou confirmada diferença nas medidas na “espessura de um fio de cabelo” - o bastante para comprovar a tese do cientista alemão.

O mesmo experimento foi conduzido ao mesmo tempo na ilha do Príncipe, na África, mas não obteve resultados satisfatórios por conta de condições climáticas. Anos mais tarde, em 1999, seria inaugurado na Praça do Patrocínio de Sobral, onde foi realizado o experimento, o Museu do Eclipse e o Observatório Astronômico Henrique Morize.

 

 

Quando a astronomia começa no Ceará

Por Érico Firmo

Onde hoje fica a Praça da Estação, no Centro de Fortaleza, havia um cemitério. Era chamado São Casimiro. Ficava vizinho a um morro, conhecido como Carauatá, Coroatá ou Croatá. Foi usado por pouco tempo, desativado a partir de 1866, quando as areias da duna começaram a soterrá-lo e o São João Batista foi inaugurado. No mesmo Morro do Croatá foi instalada a primeira estação astronômica e meteorológica de Fortaleza.

Hoje, por trás do cemitério São João Batista, fica um dos poucos resquícios do Morro do Croatá, cuja maior parte teve o mesmo destino da quase totalidade das dunas que cobriram Fortaleza no passado. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Chefe da seção Astronômica, Giácomo Raja Gabaglia escolheu o local, o mais elevado da linha de dunas que se estendia até o riacho Jacarecanga. O observatório era uma casinha de madeira, coberta de zinco, desmontável. Duas semanas após a chegada da comissão a Fortaleza, em fevereiro de 1859, já eram tomadas providências para a construção. As observações meteorológicas começaram de imediato. A partir da segunda quinzena de maio, houve também observações astronômicas e magnéticas.

O local era isolado. A vizinhança mais próxima era o paiol de pólvora, que havia sido transferido do local onde fica o atual Passeio Público. Estava então localizado ao final da rua Teresa Cristina.

Braço da galáxia, em foto de Aurélio Alves. Ensaio sobre o céu do sertão, em referência à seção Astronômica da Comissão das Borboletas
 

Ao pé do Morro do Croatá, em 29 de junho de 1859, a comissão realizou uma festa em homenagem a São Pedro - não por acaso o santo que dava nome ao imperador. A comemoração durou de 20 horas às 2 da manhã.

Ao final dos trabalhos da comissão, em 8 de julho de 1861, Gabaglia alertou para o observatório que deixava no morro, que necessitaria de conservação. A administração da província deixou responsável a guarda do Paiol de pòlvora. Em 12 de fevereiro de 1863, o presidente da província, José Bento, informou ao governo imperial  que o observatório estava arruinado e havia sido alvo de furto. (BRAGA, 2004, p. 424-428).

Pouco sobrou do Morro do Croatá, como de resto da antiga cobertura de dunas que já caracterizou Fortaleza. O POVO foi até o local onde ainda há uma pequena porção dele, nas imediações do São João Batista, até perto da avenida Filomeno Gomes. É visível da avenida Leste Oeste. A área é ocupada por moradias humildes, assim como a quase totalidade da região por onde o morro se estendia. Onde ficava a parte mais famosa do Croatá, há hoje a comunidade conhecida como Oitão Preto.


 

O calor no Ceará

Por Érico Firmo

Por do sol no Sertão Central. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“Três horas fazia sol e calor, termômetro 23 graus e meio, a tarde foi quente”, escreveu Francisco Freire Alemão em seu diário sobre 30 de abril de 1861 (Fundação Waldemar Alcântara, 2011). Estava ele em Maranguape (p. 502). Ele chega a mencionar a medição com termômetro “Reaum”. Pela escala Réaumur, 23º seria entre 28 e 29 graus Celsius.

A Comissão Científica de Exploração, em particular a Seção Astronômica, tinha entre as atribuições a medição rigorosa das temperaturas. Mesmo na seção Botânica, Freire Alemão registrava seguidamente o resultado dos termômetros.

Com temperatura abaixo disso, Freire Alemão já registrava calor. “Tem feito sol toda a manhã, algum calor, duas horas da tarde termômetro 21 graus e um quarto”, referiu-se sobre 12 de junho de 1861, em Fortaleza (p. 530). Estava, na conversão para Celsius, pouco acima dos 26º.

Ele apontava a diferença entre a temperatura que os termômetros registravam e a sensação que tinham. “Não indica o termômetro forte calor, mas a demasiada umidade do ar produz copiosa transpiração” (p. 489). “É notável a diferença que se experimenta entre a sensação de calor e o grau deste indicado pelo termômetreo (p. 524).

Porém, a impressão do chefe da seção Geológica, acostumado ao clima serrano do Rio de Janeiro, não é a mesma dos fortalezenses, como ele mesmo registra. “As senhoras todas, [uma] a uma dizem que de manhã quase morrem de frio. Os machos mesmo, o Sr. Viana me disse que esta noite passada cobriu-se com cobertor! E que teve muito frio, o termômetro marcou ontem, e hoje de manhã, 19 graus e três quartos! Eis aqui o grande frio do Ceará!”, escreveu sobre aquele mesmo 12 de junho (p. 530). Isso era pouco menos de 25º Celsius.

Por do sol no Sertão Central. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Freire Alemão faz considerações sobre o calor no Ceará. “É notável nesta província a marcha do calor; o sol é muito quente, abrasador, mas dentro de casa a sensação de calor não é tão desagradável como no Rio; bem que se sua muito (eu aqui suo mais que no Rio, principalmente aqui na cidade, é para mim um grande incômodo estar vestido, quer de dia, quer de noite, tenho sempre a roupa ensopada, mas chegando a casa de noite suado, despindo-me e deitando-me na rede, refresco e as noites passam melhor que no Rio. Será isto devido à rede? E ao serem as casas de telha vá?” (p. 485). A reclamação sobre o suor é, a propósito, uma constante no diário do naturalista.

Ele ainda comenta sobre o frio na madrugada sertaneja, e atribui a um aliado dos cearenses. “Nas madrugadas do sertão, o que causa o sentimento de frio é sem dúvida o vento, que reina sempre mais ou menos nessas ocasiões” (p. 524).

Quando em Conceição, atual Guaramiranga, ele comenta: “Amanheceu o tempo chuvoso, ventoso, com grande cerração, e frio, o termômetro na sala dos 16 graus” (P. 446). Era 20º na escala Celsius em 7 de fevereiro de 1861. Anfitrião de Freire Alemão, José Fortunato  disse que aquele era o maior frio que havia por ali. “(...) mas o Sr. João Batista diz que não, e que em junho faz mais frio de que fez hoje, o que acredito”, registrou Freire Alemão no diário, com razão (p. 446).

A "chuva do caju" e além

No seu relatório ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Francisco Freire Alemão fala de um tipo peculiar de chuvas. “Nos bons anos aparecem algumas chuvas vagas, incertas, nos meses de outubro e novembro, a que chamam ‘chuvas-de-caju’”.

O mestre mateiro José Carneiro conta que não eram apenas as “chuvas do caju”. “Tem a chuva do caju no litoral, mas, na nossa serra, temos no mês de outubro a chuva da manga. A tradicional chuva do café, entre o fim de setembro e o começo de outubro. Essa chuva era tradicional. Com a influência do homem, a degradação, o desmatamento, aí nós perdemos essa chuva do café, essa chuva do caju. Elas não estão mais frequentemente”.

No relato, Freire Alemão diferencia essas chuvas da quadra chuvosa efetiva. “Mas o verdadeiro inverno, ou mais propriamente a estação das chuvas, começa em fins de janeiro ou princípios de fevereiro, sua força é de março a abril, e acaba em junho. Ele consiste em grossos chuveiros, quase diários, às vezes repetidos, mas deixando sempre parte do dia livre para o trabalho: raro é o dia ou noite de chuva constante no Ceará.”

 

A "seca artificial" que o sertanejo cria e se volta contra ele

Por Érico Firmo

Foto: Aurélio Alves/O POVO
Queimadas propositais no Interior do Ceará chocaram membros da Comissão. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Nem só a falta de chuvas provoca seca no Sertão, constatou há 160 anos a Comissão Científica de Exploração. Existe outro tipo, a “seca artificial”. Ela é criada pelos próprios sertanejos, chama atenção Giácomo Raja Gabaglia.

“Se a irregularidade ou escassez das águas pluviais, ou simplesmente suas oscilações, geram tantos danos ao povo do Ceará, outra sorte de seca artificial preparada pelos próprios habitantes com vigor colossal vai imperando e concorrendo para agravar o mal: refiro-me às extensas queimadas que algumas vezes vingam durante semanas e na distância de léguas, transformando em inóspitos descampados os terrenos pouco antes cobertos de viçosas e verdejantes capoeiras e de uma pastagem abundante”. (GABAGLIA, Giacomo Raja. Ensaios sobre alguns melhoramentos tendentes à prosperidade da província do Ceará. In: CAPANEMA, Guilherme Schurch de. A seca no Ceará. Escritos de Guilherme Capanema e Raja Gabaglia. Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Museu do Ceará, 2006. p.68-69).

Foto: Aurélio Alves/O POVO
Fogo ainda hoje se alastra de forma recorrente no sertões cearenses. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Em Quixadá, na estrada que leva a Quixeramobim, o trabalhador rural Francisco de Assis, conhecido como Ed, apontou ao O POVO um serrote adiante algumas centenas de metros. “Numa época dessas, pessoal bota fogo. Fiquemos até 11 e meia da noite atrás de apagar fogo. O fogo ainda foi lá em cima. Aí,quando nós apaguemos o daqui, quando foi com uns oito dias botaram naquela. Até atravessou para o outro lado. Queimou tudo”. Eram os meses do B-R-O-Bró - setembro, outubro, novembro e dezembro. A época mais quente do ano. A seca artificial se mantém 160 anos passados.

Poucos quilômetros adiante, o preto das cinzas avança sobre o amarelo avermelhado do chão quase até as portas da casa da família de Antônio André Filho, o seu Edmilson, como é chamado. Sinal do fogo que passou perigosamente perto.

Foto: Aurélio Alves/O POVO
Terra sofre com as queimadas pelo Ceará. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)

“As causas destas queimadas originam-se, às vezes, de terras que preparam para roçados que ficam em poucos anos abandonados para formarem-se outros novos em lugares arvorejados”, prossegue Gabaglia no mesmo texto. Porém, ele alerta, nem só como forma de preparar a terra para o plantio. Há também o descaso ou até mesmo a intenção deliberada de fazer o mal. “(...) outras vezes, (incêndios originam-se) de vinganças individuais e, mais frequentes, de descuidos e desleixo, sobretudo de viandantes que, pouco cautelosos, ou completamente indiferentes ao bem público, deixam, nas pousadas que fazem, fogueiras nas quais espalham o gérmen de incêndios, favorecidos pelos ventos e pelos materiais abundantes de combustão, que de maneira veloz lavram em todos os sentidos”, escreveu Gabaglia.

Em 2019, o Ceará registrou 4.304 focos de incêndio detectados por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O sertanejo ainda cria a seca de que se amaldiçoa. O passado ainda é presente e o presente é o passado.

 

Anos de boas chuvas

Por Érico Firmo

A Comissão Científica embarcou no vapor Tocantins, no Rio de Janeiro, rumo ao Ceará em 26 de janeiro de 1859. Havia então notícias de ameaça de seca na província. Ao chegar a Pernambuco, as informações ganharam força. Temiam os integrantes, então, que tivessem de percorrer os caminhos em meio a falta de água e pastos secos. Porém, "a chuva, que é o principal elemento da prosperidade da província do Ceará, começou a cair apenas o vapor 'Tocantins' chegava à altura do Açu, e continuou daí por diante, regular e abundante, como nos melhores invernos", registrou Freire Alemão. "Com mais felizes auspícios não podia a Comissão entrar na província. Era Deus e o governo de sua majestade que se amerceavam daquele abençoado torrão!", entusiasmou-se.

O desembarque, em 4 de fevereiro, foi festivo, registrou o presidente da comissão. “Eram as primeiras chuvas do ano. E no Ceará, como nas outras províncias que estão em idênticas condições, é um dia jubiloso em que voltam as chuvas depois de haverem cessado por seis e sete meses. São a esperança do criador e do lavrador”.

Havia o temor das secas, mas as chuvas acabaram sendo o empecilho a superar. A Comissão chegou ao Estado em fevereiro, mas só em agosto entrou pelo interior. Havia preparativos a fazer e as estradas enlameadas, os caminhos fechados de matos tornaram-se obstáculo. Existia risco de serem detidos por enchentes. Os caminhos existentes eram precários, propensos a se tornar atoleiros e não havia pontes a transpor os rios.

 

Um cometa em Fortaleza

Francisco Freire Alemão estava sentado à janela da casa da família Bezerra, com dona Maria Bezerra, quando chega Giácomo Raja Gabaglia. Eram 21 horas de 2 de julho de 1861. O chefe da seção Astronômica mostra uma lista branca no céu. “(...) era a cauda do cometa, que tem aparecido de madrugada. não se vê o núcleo, que está abaixo do horizonte, mas a cauda parte daí e chega até o meio do céu, confundindo-se com a Via Láctea”. Como o relatório da seção Astronômica tem destino desconhecido, o registro do chefe da seção Botânica foi valioso registro do fenômeno. “(...) é uma lista nebulosa, que na aparência pode ser duas braças, e com igual largura em toda a extensão, só varia um pouco quanto à intensidade da luz, que no alto é mais apagada, e a sua direção, quase de norte a sul” (Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão. Fundação Waldemar Alcântara, 2011. P. 545). 

 

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