Por Carlos Mazza (reportagem)Por Fred Souza (pesquisa histórica)
"Há na ladeira de Ubajara, na Ibiapaba, tanta prata, que os índios a derretiam como caieira deitando lenha em cima”. O registro, feito no início do século XIX pelo padre Francisco Teles de Menezes, explica a expectativa que levou a Comissão Científica de Exploração, em outubro de 1860, a enfrentar “escabrosa ladeira” – nas palavras do próprio Francisco Freire Alemão – partindo do alto da Serra Grande até a Gruta de Ubajara, no sopé da Ibiapaba.
Na época, escritos “quiméricos” como o do sacerdote descreviam vastas minas e tesouros escondidos na região, o que em parte influiu na escolha do Ceará como destino dos pesquisadores. Após dias de viagem, Guilherme de Capanema, chefe da seção Geológica e Mineralógica, chegaria à gruta com constatação científica, mas bem menos animadora: “Achei, no meio de fragmentos de psamito, outros de xisto muito impregnados de pirites esbranquiçadas, o que já passou por prata”.
Quase 160 anos depois da passagem dos pesquisadores, reportagem do O POVO refez a trilha entre Ubajara e a gruta, acompanhados por um guia do Parque Nacional. Esbaforida, a equipe levou quase sete horas para concluir a penosa viagem de ida e volta, que desce da serra – e, na pior parte, sobe a Ibiapaba de volta (não chamada de Serra Grande à toa). Só pela beleza e significância histórica, o trajeto vale cada minuto e gota de suor, ainda que não haja “pote de ouro” ao final.
E a prata citada pelo padre? Era cilada. O mineral encontrado nas paredes da gruta e rios do entorno, conforme explica o guia André Damasceno, não era prata, mas sim “calcita” – “brilhante e bonito, mas de muita pouca utilidade ou valor”. Servia, no máximo, para fazer ornamentos decorativos. Preparados para deixar Ubajara abarrotados em riquezas e descobertas gloriosas, os pesquisadores acabaram partindo da Ibiapaba de “mãos abanando”.
O fiasco da gruta resume bem “achados” da Seção Geológica e Mineralógica da Comissão Científica de Exploração – certamente a que o Império acompanhava com maior atenção. A própria escolha de seu chefe, o prestigiado naturalista Guilherme de Capanema, refletia esse crédito. “Dos componentes da Comissão, era o detentor da maior soma de conhecimentos relativos às ciências físico-naturais, sem levar em conta as técnicas", registra Renato Braga.
O Regimento da Comissão também reflete em vários pontos esse otimismo: “É muito recomendada na província do Ceará a exploração minuciosa de suas principais serras e sobretudo, das extensas serranias da Ibiapaba e do Araripe, onde a tradição coloca ricas minas de metais (...) se porventura a Comissão descobrir alguma mina, com maior segredo, sendo possível, expedirá logo para esta corte um portador seguro, dando conta da descoberta”.
A realidade, no entanto, foi impiedosa: as abundantes jazidas nos escritos antigos, trazidos debaixo do braço por Freire Alemão, nunca foram encontradas. “Um insignificante depósito aurífero, uma tênue camada mineralizada ou fragmentos esparsos de uma pequena veia assumiam àquela época demasiada importância. As imaginações cultas exageravam e as vulgares hipertrofiavam o achado. O povo vivia sonhando com eldorados”, escreve Braga.
Conforme explica a historiadora Chrislene Santos, professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e da Uninta, a ausência de riquezas minerais do Ceará contribuiu até para a fama “pitoresca” da Comissão Científica de Exploração, que lhe rendeu, à época, o apelido de “Comissão das Borboletas”. “O interesse, o objetivo principal dessas comissões era encontrar riquezas, então, quando isso não ocorre, acaba gerando esse estigma”.
Atento às movimentações do poder no Rio de Janeiro, Guilherme de Capanema “freou” ritmo dos trabalhos em momentos onde houve ameaça de corte de verbas. Vários desencontros entre ele e o presidente da Comissão, Francisco Freire Alemão, também provocaram longos momentos de baixa produtividade da Seção Geológica. Ao final, o naturalista antecipou volta ao Rio de Janeiro sem grandes descobertas, alegando repetidos casos de erisipelas (doenças bacterianas) nos olhos – e frustrando expectativas de Freire Alemão.
Nem todo mundo lamenta, todavia, que não tenham sido achados minérios preciosos no Ceará. Para o mestre mateiro José Carneiro, de Pacoti, foi bom que não tenham localizado o que procuravam no Maciço de Baturité. "Por sorte nossa, eles não encontraram. Os nativos mesmo sabem onde tem minério. Mas é melhor ficar quieto, é melhor deixar quieto. Não dá para estar mexendo com isso. Tudo tem o lado ruim e o lado bom", acredita.
Mestre Zé Carneiro relembra os relatos antigos a respeito. "Aqui na serra, conta a lenda que nós estamos em cima de três correntes de ouro. Que dizem que é o tripé que sustenta o Maciço, o bioma. Mas, fazer o quê? É bom que deixe isso quieto. Não faz parte de a gente explorar todas as riquezas naturais e minerais. Deixa aí. Estão bem quietinhos lá. Se for para ser revelado um dia, que seja. Os antepassados falavam que tinha, que ocorria esse fenômeno aqui. Isso contam os índios, contam nossos antepassados. Nunca se foi comprovado se isso é verdade. Deixe lá que seja uma lenda. Isso é bom. A lenda também faz parte. Tem muita coisa no universo, nós não podemos descobrir tudo. Isso é bom."
DA MINERAÇÃO AO TURISMO
Quase 160 anos após a busca por riquezas dos pesquisadores liderados por Francisco Freire Alemão, a mineração ainda segue como “coadjuvante” na economia cearense. Segundo mais recente relatório da Agência Nacional da Mineração (ANM), a produção do setor movimentou, em 2017, R$ 329,9 milhões em todo o Estado. Valor é expressivo, mas pequeno se comparado ao Produto Interno Bruto (PIB) do Estado em 2019, em R$ 147,8 bilhões.
Desse total, a maioria corresponde à mineração de materiais não-metálicos, como calcário para produção de cimento (R$ 98,8 milhões) e brita para fabricação de materiais de construção (R$ 81,8 milhões). O Estado é também o terceiro maior exportador de rochas ornamentais do País, movimentando R$ 63 milhões em 2017 nesse segmento – sobretudo na extração de granito, gnaisse e quartzito. Ao todo, existem apenas duas minas de grande porte no Ceará, ambas de calcário, em Sobral e Quixeré.
Entre metais, há alguma extração de manganês (R$ 8,4 milhões) e ferro (R$ 742,7 mil), mas nenhuma mineração significativa de metais preciosos – como o ouro, prata ou até diamantes, tão cobiçados pela Comissão Científica de Exploração.
Já a Gruta de Ubajara, pivô da principal frustração da Seção Geológica e Mineralógica no Ceará, é hoje preservada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e é a principal atração de uma das diversas trilhas abertas a visitantes do Parque Nacional de Ubajara. Além da visita ao local em si, turistas podem saber mais da história da Ibiapaba e tomar banho em alguma das várias cachoeiras no entorno.
A Unidade de Conservação federal movimenta boa parte do turismo local e chega a receber, nos períodos mais movimentados, média de 1,5 mil visitantes por dia. A expectativa é que o número de visitantes cresça em 2020, com a reativação do bondinho que liga a sede do Parque Nacional à Gruta de Ubajara. Desativado desde 2015 para reformas, o equipamento estava previsto para voltar à atividade em dezembro passado, mas ainda aguarda conclusão das obras.
Assista ao documentário Expedição Borboletas:
"Vulcão" sobralense
Por Carlos Mazza (reportagem)
Entre os registros mais curiosos da seção Geológica e Mineralógica da comissão no Ceará, está a investigação de um “vulcão” – sim, um vulcão – em plena região Norte do Estado. “Perto de Sobral existe um penhasco de granito, isolado e muito alto, que passa por vulcânico. Houve duas erupções que meteram medo a muita gente”, registra Guilherme de Capanema.
A nota se refere ao serrote do Barriga, conjunto de pequenas montanhas localizado a cerca de 25 quilômetros de Sobral, entre as bacias dos rios Acaraú e Aracatiaçu. Registros anteriores à passagem da comissão pela região, em 1861, apontavam pelo menos duas "erupções" de grande escala do tal vulcão sobralense, que aterrorizaram a população da região.
"No fim do mês de fevereiro de 1842, depois de haver caído copiosa chuva, ao cessar esta, pelas 4 horas da tarde, foi visto sair de uma pedra grande e escalvada uma fumaça preta, semelhante à que produz o carvão-de-pedra. Com pouco a esta fumaça sucederam chamas de foto, que, com incrível rapidez, espalharam-se em torno do serrote, devastando os arbustos", diz registro do jornal Pedro II, de 13 de agosto de 1859.
“Seguiu-se a erupção vulcânica com grandes estampidos, e estalos horríveis, a cujo sucesso simultaneamente eram sacudidas pelos ares grandes pedações de pedra. O fogo dominou toda a extensão do rochedo", continua a matéria.
A chegada do rigor científico da comissão expedicionária, no entanto, colocou por terra a tese de um vulcão legitimamente cearense. Na realidade, as “erupções” se tratavam apenas de incêndios da vegetação local, provavelmente provocados por algum relâmpago. “Fui examiná-lo, e um incêndio de macambiras pareceu aos ânimos prevenidos um corrimento de lavas!”, registra Guilherme de Capanema.
A conquista da Meruoca
Por Carlos Mazza (reportagem)
Outra serra cearense visitada pela Comissão Científica de Exploração foi a da Meruoca, a poucos quilômetros de Sobral. À época, conforme registra Guilherme de Capanema, a rede de montanhas era “isolada no meio do sertão”, com pouca ocupação humana.
"Há apenas uma praça pequena e irregular e duas ruas; a principal, torta e mal povoada. Contamos em toda a povoação 18 casas telhadas, caiadas, ladrilhadas, pequenas e térreas”, diz Francisco Freire Alemão.
Hoje, no entanto, o cenário é bastante diferente. De olho em escapar do famoso calor da região, se tornou popular que famílias sobralenses de maior poder aquisitivo comprem casas e até sítios para subir a serra durante as folgas.
Nos últimos anos, têm se proliferado investimentos em grandes empreendimentos imobiliários na Meruoca, algo parecido com o que ocorreu em Fortaleza com a Serra de Guaramiranga. Com o verão sobralense em mente, fica fácil entender o objetivo dessas famílias.
As "ossadas descomunais" da Serra de Uruburetama
Por Érico Firmo
A seção Geológica foi à Serra de Uruburetama, cujo território abrange os atuais municípios de Itapipoca, Tururu e Itapajé, além de Uruburetama. “Percorri a Uruburetama em todos os sentidos, e a ascensão de alguns montes, onde cheguei transpirando e sem o menor abrigo, deram comigo de cama no mais inóspito lugar que conheço”, escreveu Capanema em seu relatório. Ele tinha um interesse em particular: o lugar chamado lagoa do Ripina, ou Rapina. O local ficaria na comunidade de Santa Cruz, onde Itapajé nasceu. Ainda hoje o local é bastante isolado e tem lugares inóspitos.
Capanema falava no relatório ao IHGB que em uma caverna acharam-se esqueletos humanos de tamanho descomunal arrumados atrás de uma tosca parede” (p. 348). Tomás Pompeu de Sousa Brasil, em seu Ensaio estatístico da província do Ceará, mencionava o achado, em 1854, cinco anos antes da chegada da comissão, portanto, de “uma grande ossada, cujos restos muitas pessoas tiraram e por ordem do governo foram remetidos alguns para o Museu”.
Capanema ainda mencionou que lá “se encontram ossos de animais enormes”. Mas, como foi até lá no começo da quadra chuvosa, caiu uma “violenta pancada de água”. A lagoa, que não sangrava havia quatro anos, transbordou. “(...) ficou frustrada a minha colheita de ossos, tinham tirado dali um esqueleto inteiro e alguns ossos que indicavam existir ainda outro”, lamentou. Ainda assim, conseguiu extrair observações: “(...) pude verificar que já no tempo em que viviam aqueles animais o clima do Ceará era o mesmo de hoje, que já havia então secas desastrosas”.
O chefe da seção Geológica deixou recomendações para que fossem escavados os ossos restantes, mas retirou a ordem por não ter autorização para usar os recursos (p. 358).
O POVO foi até Santa Cruz. Moradores, professores, conhecedores da história de Itapajé desconheciam o relato e também o lugar chamado Ripina. Após 160 anos, o nome pode ter se perdido no tempo. Pompeu de Sousa Brasil, afinal, dava noção do quão isolado era. “pequena lagoa formada por dois serrotes, que a cercam em posição tão elevada, onde só pode receber água das encostas dos serrotes pelo inverno, inacessível ao gado”.
As minas ancestrais do Cangati
Por Érico Firmo
Ainda na época da Colônia já havia interesse científico em minérios no Ceará. No fim do século XVIII, em 1799, mal o Ceará se emancipara de Pernambuco, chegou à então capitania João da Silva Feijó, o naturalista Feijó. Ficou quase duas décadas, dedicado a investigações científicas e mineração de salitre. Em 1814, ele mencionou as minas de ferro do rio Cangati, junto à Serra das Guaribas. Seguindo seus passos, a seção Geológica foi a Canindé visitar as minas.
“(...) encontramos realmente esta rica mineira, de todo desprezada”, escreveu Capanema em seu relatório ao IHGB. Metal semelhante foi encontrado perto de Quixeramobim, ao pé da Meruoca, perto do Crato, entre outros lugares.
“O ferro consumido no interior do Ceará, do Piauí e de Pernambuco é todo inglês e muitas vezes de péssima qualidade, transportado a duzentas e mais léguas, em costas de animais; em conseqüência disto propus ao governo imperial que mandasse ensinar àquele povo o meio de aproveitar a mineira de ferro para obter material, ao menos o necessário para as suas ferramentas de lavoura: industriosa como é aquela gente não tardaria a construir as pequenas forjas catalãs e fabricar o ferro e aço para consumo de cada distrito. Objeto este de grande utilidade para aqueles lugares”, projetava Capanema sobre o uso do material.
Na busca pelo rio Cangati, O POVO percorreu uma das empreitadas mais conturbadas da expedição. Partimos de Canindé, ponto de onde saiu Capanema para a visita. As informações eram inexatas e ninguém sabia do rio nas imediações. Pistas vagas nos indicaram ir em direção à serra. Subimos por Aratuba, passamos por Capistrano na descida até Itapiúna, onde um garoto nos apontou o leito do Cangati. Sob sol a pino, entendemos a dificuldade de referências sobre o Cangati. O rio está seco. Caminhamos pelo leito e passamos por uma passagem molhada em ruína.
O tesouro da Taquara
Por Érico Firmo
Guilherme de Capanema chegou ao Ceará depois do resto da comissão, em junho de 1859. Antes que partissem para o Interior, fez incursões pelas proximidades de Fortaleza. Foi nos rastros de riquezas comentadas desde a época da ocupação holandesa, no século XVII, na época em que Fortaleza começava a ser ocupada. “Procedi a alguns estudos nas vizinhanças da capital, inclusive à Serra da Tacoara, onde se dizia haver uma mina de prata que foi lavrada pelos holandeses”, escreveu Capanema em seu relatório. A Serra da Taquara, na atual Caucaia, foi local em que Mathias Beck teria buscado ferro.
Na Taquara, há hoje um grande projeto de mineração. Mas, o que se extrai hoje é brita. Na época, Capanema tampouco achou riquezas. “(...) a escavação estava cheia d’água, e creio que foi feita para este fim; as cascalheiras de gnaisse não mostravam o menor indício de metal algum. Um velho, que nos servia de guia, asseverou que havia ali antigos fornos, porém por mais que ele e nós procurássemos, não foi possível encontrar nem vestígios sequer”.
Hoje, há riqueza sendo escavada na Serra da Taquara. No local está em construção o Taquarão, açude que estava previsto para operar desde o início de 2019, com capacidade de armazenar 40 mil metros cúbicos. Deverá ser o principal reservatório de água tratada para abastecer a zona oeste de Fortaleza. Água deverá ser o maior tesouro a sair da Taquara. (Érico Firmo)
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