As gentes do Ceará

Por Henrique Araújo

Ezequiel Tremembé, das tribos da Barra do Mundaú. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“Povos destes lugares há já, desde Aracati para cá, muita gente branca e alva, parece-me gente de boa índole, de caráter firme e de espírito bastante inteligente”, escreveu Francisco Freire Alemão, botânico e presidente da Comissão das Borboletas, nome pelo qual ficaria conhecida a Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das províncias do Norte.

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Nome comprido, que o cearense logo calhou de encurtar, acrescentando-lhe um predicado gaiato: borboletas. Sinal de que gente graúda viera de longe para se ocupar de tarefa trivial, quase prosaica. Longe disso. Embora não tenha produzido um relatório etnográfico, como era a intenção e o planejado quando os cientistas partiram do Rio de Janeiro com a missão de mapear o patrimônio do Ceará, a expedição legou observações de natureza estritamente humana que, passado tanto tempo, enriquecem o panorama de nossa história.

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Quase tudo a cargo do próprio Freire Alemão, já que o responsável pela parte narrativa da viagem, o jovem poeta Gonçalves Dias, enredava-se frequentemente em assuntos secundários ou alheios ao escopo dos trabalhos, tais como bebedeiras e fanfarras com quem encontrassem pelo caminho. Daí outro nome embaraçoso que a jornada receberia: “Comissão Defloradora”. 

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Mesmo Alemão faz registrar com frequência as estripulias de membros da comissão, como as do chefe da seção zoológica, o também médico Manuel Ferreira Lagos. Em seu diário, o presidente da expedição queixa-se de que o colega desobriga-se das tarefas para estar em contato íntimo com as fêmeas que se lhe ponham na vista. Das resmas de papel já escritas por Lagos, ironiza Freire Alemão, já cansado da lascívia do outro, nenhuma cuidava do que lhe competia, ou seja, da fauna nativa do Ceará. Entretanto, em cada cidade por que passassem o pesquisador amigava-se de uma mulher diferente.

Festa popular do Ceará oitocentista, em pintura de José dos Reis Carvalho
 

Afora esses percalços e notas cômicas que compõem o anedotário em torno da comissão, o relato de Freire Alemão é um documento de valor inestimável para entender o caráter do cearense e suas variações, conforme a jornada avançava Interior adentro, partindo do Aracati e chegando finalmente ao Cariri, onde se encerrou. 

Estão lá observações sobre os tipos litorâneos, os vaqueiros, os trabalhadores, as intrigas familiares que resultavam em sucessivas mortes no sertão, os raptos de mulheres, a religiosidade, os penitentes do Crato e os modos de ricos e pobres em meados do século XIX.

Ora cômicos, ora emulando a linguagem cientificista que dava sustentação ao saber do período e na esteira do qual a comissão logrou reunir conteúdo e materiais do local, Freire Alemão esboçou uma tipologia e um perfil da natureza humana do Ceará. 

Exemplo disso está num trecho breve, mas simbólico de seu livro. Nele, o pesquisador escreve: “Um grupo de sete ou oito meninos, quase todos vizinhos; duas moças que moram em uma casa térrea fronteira, mais duas, que não conhecia, (...) se ajuntaram e sentaram-se em cadeiras formando um círculo fora da porta”.

Ali, no ano de 1859, o pesquisador decantava um dos traços marcantes de nossa cultura: as cadeiras nas calçadas, hábito por trás do qual se esconde uma ritualidade que atravessa os tempos e as geografias para se manter viva nos bairros de uma Fortaleza que, apesar de novidadeira, permanece com um pé sempre fincado nos tabuleiros e serras da paisagem cearense.

Fortaleza acolhedora e maledicente, uma pérola do Brasil

Por Érico Firmo

 

O Ceará de 160 anos atrás era, por óbvio, muito diferente. Por exemplo, a Comissão Científica de Exploração passou por Crateús, que na época era parte da província do Piauí. A capital tinha entre 15 mil e 16 mil habitantes - nem 1% dos atuais 2,6 milhões.

“Fortaleza mostrava-se ao mesmo tempo acolhedora e maledicente, doce e amarga, muito mais trêfega do que séria. Um espírito de galhofa pairava nas suas ruas e ai daquele que caísse na boca do povo. Era virado pelo avesso, reduzido a pedacinhos condimentados de risos irônicos ou gargalhadas achincalhantes”, definiu Renato Braga. (em História da Comissão Científica de Exploração. Edições Demócrito Rocha, 2004. P. 46). E a Comissão se tornou objeto prioritário da malícia e da intriga.

 

Na noite de 26 de março de 1861, Francisco Freire Alemão caminhava pela rua pouco antes das 22 horas e fez descrição encantada com Fortaleza. “Voltei para casa, estava já a cidade quase deserta; era a lua lindíssima, e o ar fresco, e eu só pensativo? É aqui lugar de notar quanto esta linda cidadezinha vai melhorando, e como há de vir a ser uma pérola do Brasil. Quando aqui chegamos em fevereiro de 1859 eram as suas ruas todas de areia lima, fina, alva, e profunda; apenas se começava a calçar a rua que sobe do mar e passa pela frente do Palácio. Hoje quase todas as ruas estão calçadas, de pedrinhas irregulares do Mucuripe; as ruas são todas largas, tiradas a cordel, e se cortam em ângulo reto, as casas são bordadas de calçadas, ou passeios, largos, de oito a doze palmos, de tijolos artisticamente assentados, algumas vezes de pedras em lascas, e de pedras calcares serradas vindas da Europa: há praças largas - e a de Pedro II (atual Praça do Ferreira) é plantada de arvoredo, e outras se estão agora arvorando”.

 

Ele comenta a higiene da Fortaleza de então. “É a cidade muito limpa, não há lamas. As chuvas quando caem em torrentes, correm, empoçam, mas passada a chuva tudo está enxuto, e aqui nunca ou raríssima vez se vê chover por um dia inteiro; (...) Enfim respira-se sempre um ar puro e saudável. A cidade tem um ar de asseio, que agrada”. (Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão. Fundação Waldemar Alcântara, 2011, p. 475).

A cidadezinha tinha cerca de 800 casas de tijolos. No entorno, nas dunas de areia solta, vivia a maior parte da população, em cerca de 1.600 casebres de palha. Em torno de 10% da população era de escravos. Dizia o engenheiro André Rebouças que se tratava da cidade mais limpa do Brasil. Durante a noite, era iluminada por 46 lampiões abastecidos com azeite de peixe. Às 23 horas a cidade estava deserta e todos dormiam.

 

Havia quatro igrejas, todas modestas. Eram oito escolas primárias, com cerca de 800 alunos somados. A única escola secundária era o Liceu, com cerca de 100 estudantes. Não havia instituição bancária,

O polo comercial da província, no vale do Jaguaribe, era dominado por Aracati e Icó. Fortaleza escoava parte menor da produção, vinda dos maciços de Baturité e Uruburetama e do litoral próximo.

 

As chuvas e os preparativos fizeram com que a Comissão das Borboletas demorasse seis meses na capital antes de ir ao Interior. O período rendeu valiosas observações sobre a cidade em meados do século XIX. A seção Etnográfica nunca teve relatório escrito, tarefa que cabia ao poeta Gonçalves Dias. Mas,ficaram os registros de Francisco Freire Alemão e apontamentos de Guilherme de Capanema. Outro valioso documento do período está nas pinturas feitas pelo artista José dos Reis Carvalho, que foi aluno de Jean-Baptiste Debret na Academia Imperial de Belas Artes. Ele integrou a Comissão em vários percursos e documentou em aquarelas e desenhos como era aquele Ceará. Como as fotografias se perderam no naufrágio do Palpite, as pinturas são o documento em imagens que ficou da Comissão.

 

Os repórteres fotográficos do O POVO retornaram a lugares e situações que Reis Carvalho pintou e registraram em fotografia o que ele havia pintado.

 

 

Do Aracati ao Cariri, uma travessia

Por Henrique Araújo

Casa de Câmara e Cadeia do Aracati, local(Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“Chegamos a Russas às 11 horas da manhã. O lugar é muito quente, bem que ainda lavado de ventos. Há aqui poucas moscas e menos mosquitos, ainda não vi ratos, baratas poucas. A carne é muito boa, os ovos a dois por vintém. Não há hortaliças, não há fruta de qualidade alguma, apenas laranjas mui verdes.” 

Casa de Câmara e Cadeia do Aracati pintada por José dos Reis Carvalho há 160 anos
 

Registrada em seu diário, a descrição de Francisco Freire Alemão mudou pouco em 160 anos. Situada a 167 km de Fortaleza, encravada na região do Jaguaribe, Russas se aformoseou, mas o famoso sol ao qual o botânico se referia em tom de lamento continuava empoleirado no alto, torrando o juízo de quem se atrevesse a correr ruas e avenidas da cidade naquele final de novembro do ano passado, quando a equipe do O POVO refez os passos da Comissão das Borboletas Interior adentro. 

Era meio-dia, horário ingrato para o comércio ambulante, uma das atividades mencionadas pelo pesquisador quando passou por Russas. Embora as frutas fossem de pouca valia e a vegetação miúda, conforme anotara, ali se deteve por alguns dias antes de seguir viagem para Icó, tempo suficiente para que “o nosso Lagos” ficasse “enamorado duma das filhas do ferreiro (que realmente era bonitinha)” e procurasse “todo o pretexto para ir conversar com ele, o que parece que deu cuidados ao nosso vigário”.

Cícero Dias Sobreira, galego e cordelista. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

O termômetro marcava 37° C quando Cícero Dias Sobreira passou se abanando. Aos 48 anos, o filho de Juazeiro do Norte encarnava um papel antigo, que havia atraído a atenção da expedição científica naquele distante 1859 ao chegar à localidade: o de galego. À atividade, porém, o vendedor de porta em porta acrescentava um predicado singular. Além de comerciante, era também cordelista. Como se para comprovar o que dizia, desandou a rimar. 

Vendedores ambulantes retratados por José dos Reis Carvalho em Russas, há 160 anos
 

“Olha o controle remoto que controla a TV, controla o videogame e também o DVD. Só existe um empecilho. Ele não controla os filhos, muito menos você”, Cícero declamou, apontando os produtos que trazia expostos numa capa plástica carregada no corpo. 

Devoto de Padre Cícero, esse outro Cícero vive hoje em Limoeiro, onde cria os filhos – um rapaz empregado no comércio e uma moça que estuda psicologia em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Acorda com as galinhas, às 4 horas da manhã. Às 5h já está na estrada, varando o sertão oferecendo a quem queira toda sorte de badulaques eletrônicos. Nos terreiros da vizinhança, já é conhecido: “Irmão Variedades, nem procure outro endereço, esse é o melhor preço no campo e na cidade”.

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Diz que nasceu vendedor, feito dom, assim como esse da rima fácil. Era brochote ainda, menino de sete anos, quando decidiu vender colorau. Disso passou às frutas. Não parou mais. Hoje tira o sustento da família dessa andança rimada.  “Eu não tenho a formatura como recebe um doutor, pois o meu vem das alturas, direto do criador. Não sou contra a medicina, mas é Deus quem me ensina a arte de vendedor”, avisa. “E graças a Deus estou nesse ramo.” 

Nem sempre foi assim. “Eu deixei meu Juazeiro por Limoeiro do Norte. Troquei um padroeiro por um Deus santo e forte, portanto lhe digo isso: sou crente em Jesus Cristo e senhor da vida.” Em Limoeiro, calhou de se achar desempregado depois de uma experiência mal-sucedida numa empresa. Resolveu então juntar as duas coisas de que mais gostava na vida: venda e cordel. 

“Eu vendo é tudo. Se tiver sem controle, só Deus. “A gente tem os ‘abajus’, mas se tiver sem luz, só Jesus”, graceja. “E as lâmpadas com bluetooth pra botar no celular, vem até com FM para a rádio escutar.” Naquele dia escaldante, como costumam ser as manhãs de Russas nessa época do ano, Cícero tinha vendido pouco, de modo que pediu licença e retomou o passo apressado debaixo de sol. Antes, perambulou pelos corredores do mercado de frutas da cidade, um galpão de poucos metros quadrados abarrotado de cajus, bananas e doces, mercadoria escassa quando a comissão chegou à cidade.

As frutas mais doces 

Ali se abancava Francisco Edmar Ribeiro da Silva, 46 anos, a quem Freire Alemão talvez tivesse gostado de conhecer. Quitandeiro há mais de 20 anos, Edmar orgulha-se das frutas que manda buscar de municípios vizinhos. Como os veios d’água estivessem secos em Russas, o jeito é recorrer à vizinhança, como Limoeiro, de onde chegam a goiaba graúda, a banana prata e o melão mais saboroso. 

A farinha fininha e alva, também à venda na banca do Edmar, “é do Palhano”, enquanto “o doce de leite é de Limoeiro e o restante é da Ceasa”. Da região mesmo, garante o comerciante, apenas o caju, de que tudo se aproveita. “E o doce de caju caseiro, que é daqui, assim como a rapadura de caju”, além das castanhas. A atestar a boa origem dos produtos, Edmar fez chegar uma penca de bananas e um pote de doce, todos de mui alta qualidade. 

 

Uma igrejinha no meio da cidade

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Em Russas, na região do Jaguaribe, o botânico Francisco Freire Alemão entreteve-se sobretudo com a igreja matriz, ainda em construção. Menos pela majestade arquitetônica e mais pela disposição dos fiéis, de maioria feminina e trajando roupas brancas em profusão.  

Em seu diário, o cientista, que presidia a comissão que atravessou o Ceará a fim de mapear suas riquezas, anotou: “A igreja não é pequena, tem três naves, com duas ordens de colunas cilíndricas, baixas e de um gripim enorme (é no gosto da matriz da capital), mas ainda não estão concluídas, as naves laterais estão ainda em terra. Os morcegos voavam a cada instante por dentro da capela-mor e em roda do trono, enquanto se dizia a missa”. 

Segundo ele, “o ponto de vista que oferecia a igreja era curioso: as mulheres enchiam o corpo da igreja e todas elas estavam envoltas em toalhas mui limpas postas sobre a cabeça, o que dava à igreja um aspecto particular”. 

Freire Alemão observa ainda que “os homens ocupavam o lugar das grades para dentro, e a gente ínfima ficou à porta da igreja ou por baixo do coro”. Notava, assim, uma clara divisão não somente de classes, mas também de sexos, com as mulheres mais próximas do altar e a gente ínfima, mais distante.

Hoje, mais de um século e meio depois, a igreja matriz da cidade mantém seu desenho intacto. Está rodeada por casinhas, fincada numa praça simpática e ladeada pela principal avenida de Russas. 

 

O horizonte dos carnaubais

Por Henrique Araújo
Carnaubais foram estudados pela Comissão Científica de Exploração. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 
“Pelas duas léguas e meia primeiras, era a vegetação quase a mesma que notei atrás: carnaúbas quase únicas e o mesmo pasto queimado e algumas lagoas e casas raríssimas, pouco gado exceto cabras, de que vimos bastantes.”
Na paisagem seca do sertão de hoje, o verde dos carnaubais ainda se destaca, guardando semelhança com as anotações que Freire Alemão deixaria sobre sua passagem pela região do Vale do Jaguaribe, no interior do Ceará, nos idos de 1859. 
Ali, o presidente da Comissão das Borboletas assegurou-se de “que os carnaubais chegavam até a fralda da serra do Apodi e que a freguesia de Russas dá de cera de carnaúba 30 mil arrobas por ano, que se exportam, não contando a do consumo”.
Passado século e meio, a indústria da cera minguou naquela área. Pelas estradinhas de terra que cortam a cidade, esqueletos de fábricas pontilham, deixados para trás desde a última grande seca como novas carcaças de animais. Dividem a aridez do espaço com os fornos de tijolos, outra atividade esquecida no tempo. 
Restaram poucos produtores da cera. Na zona rural de Russas, os trabalhadores cortam a palha às primeiras horas da manhã, quando se extrai o pó. João (nome fictício) estende um punhado que retira do próprio bolso e deposita na minha mão: uma poeira fininha, que esvoaça com o vento morno da tarde. Viera dizer que o patriarca da fazenda na conversaria com a reportagem do O POVO porque receava a fiscalização trabalhista. 
Não fazia tanto tempo, conta João, “homens do governo” haviam estado nas terras do pai, a exigir-lhe que se adequasse ao estipulado pela legislação ou encerrasse a atividade. “Queriam que a gente garantisse banheiro químico para os trabalhadores, equipamento, um monte de coisa que não temos condições”, lembra o filho mais velho. De lá para cá, nada tinha mudado para eles, exceto a desconfiança, que aumentara, e a produção, que diminuíra. Maior produtor de cera e extrator de pó da carnaúba de Russas, ele disse que pelejar com a carnaúba já não dava mais tanto dinheiro quanto antes. 
Com a mão em aba, indicou a vastidão de terras onde ainda plantava e os homens mourejavam durante a semana. Era uma extensão cinza, salpicada aqui e ali de copas farfalhantes. Era o verde da carnaúba, que ainda resiste por essas bandas. 
Insistimos então para que o pai falasse. Explicamos que se tratava de uma reportagem com finalidade científica.  Não houve jeito. “O pai não quer falar, está deitado”, sintetizou. Em seguida, despediu-se, o corpo todo branco do pó da palha. 

Icó e as riquezas do Ceará

Por Henrique Araújo

Historiador e memorialista Altino Afonso no teatro do Icó, o mais antigo do Estado, visitado pela Comissão das Borboletas em 1859
 

Em Icó bateu-lhe a saudade. “Hoje tenho passado um dia bastante triste e sempre lembrando da minha gente, mas toda a manhã estive ocupado estudando plantas”, escreveu  Francisco Freire Alemão, 61, presidente da Comissão das Borboletas. “Estou muito aborrecido, com grande desejo de marchar para o Crato. Está passando o tempo de lá estar, e estão passando seguramente muitas árvores, que já floresceram.”

Era 4 de novembro de 1859. A viagem já consumira boas semanas desde que desembarcaram na província do Ceará vindos da capital do Império imbuídos de espírito aventureiro. Recém-chegado de Russas e Limoeiro do Norte, hospedaram-se na casa de dr. Aristides,um notável icoense. Sentia que o ânimo lhe faltava. “A observação do firmamento me infundia maior melancolia”, amuou-se certa feita. 

Triste, irritava-se por tudo, mas principalmente com o companheiro de viagem, Manuel Ferreira Lagos, a quem cumpria a chefia da seção zoológica, além da função de arquivista da empreitada, tarefa que exercia apenas parcialmente e quando lhe dava na telha, segundo as anotações de Alemão. 

Ao chegarem à cidade, a paciência com Lagos esgotou-se. Ao cansaço da expedição somou-se o azedume. O botânico desabafou: “Esta minha tristeza, que é habitual, tem tornado estes dias penosos, por ver que estamos perdendo tempo e eu, amarrado ao Lagos, hei de estar pelo que ele quiser”. 

Em seguida, esboçou um breve perfil do colega de expedição: “Que homem singular! Que gênio desabrido! Não ouve nem atende as nossas queixas, nenhum caso faz de nós, assim como não faz da seção que lhe pertence (zoologia). É o caráter mais singular que conheço: despótico, arrebatado, não atende a nada, não sofre a menor oposição a seus desejos nem aceita a mais pequena reflexão que o contrarie”. 

E acrescentou, mordaz: “Quando chega a algum lugar, todos os seus cuidados se empregam em pôr-se em relação com a gente feminina – desde as casas altas até as mais baixas e infames. (...) Tem escrito resmas de papel, mas aí não se acha uma página de zoologia”. 

O tom de profundo desagrado, todavia, não impediu que Freire Alemão fizesse valer todo o seu rigor e registrasse as principais características da localidade, então uma das mais prósperas do Ceará – à época com 16 mil habitantes, Icó era um importante posto de escoamento de mercadorias que vinham do Cariri e também da Europa. 

Sobre o trânsito de carros de boi que transportavam produtos durante todo o dia e cujo trajeto margeava a praça principal, onde fica a igreja matriz, o pesquisador registrou: “Os carros ordinários são grandes, pesados, pesados, rodas mui grandes, formadas por muitas peças de madeiras. Aqui no Icó são pela maior parte conduzidos por sete juntas de bois, que são superiores aos da capital, mais gordos”. 

Era sinal da pujante economia da região naquele período, que também se refletia na cultura. Em Icó foi construído o primeiro teatro do Estado. Freire Alemão visitou-o logo antes de sua conclusão. “Às cinco horas da tarde veio aqui o dr. Théberge (Henrique Théberge, engenheiro pernambucano que fixou residência no Ceará), como tínhamos ajustado de manhã, para ir me mostrar o interior do teatro”, narra em sue diário de viagem. “Fomos depois ao teatro e o achamos muito bom dentro, com três ordens de camarins, ou antes com três galerias, porém não tem divisas, e as coluna que sustentam e as galerias são de carnaúbas bem trabalhadas, formando colunas.” 

Historiador e memorialista, Altino Afonso, 64, não tem dúvida: a passagem da comissão marcou a história de Icó. “Quando Freire Alemão esteve aqui, ele registrou no diário como era Icó naquele período. E exatamente nessa época, a cidade viveu o seu apogeu”, conta. “Ele relatou como eram as mulheres de Icó, as ruas e até os peixes. Disse como eram as espécies que tinha no rio Salgado: curimatã, traíra, o branco, que não existe mais por causa da poluição.” 

De acordo com Afonso, contudo, o que marcou mesmo “foi o desenho que a Comissão das Borboletas fez da cidade”. De autoria de José dos Reis Carvalho, aquarelista e pintor oficial da expedição, nele aparecem as ruas que constituíam o centro nervoso daquele pedaço do Ceará. 

Icó em pintura de José dos Reis Carvalho, artista que acompanhou a Comissão das Borboletas
 

“Dá pra perceber como Icó teve seu patrimônio preservado até hoje”, celebra o icoense. O memorialista não exagera. As construções em derredor do teatro e da praça se mantiveram intactas, e mesmo a casa de Théberge, a alguns metros da igreja, retém suas características originais. 

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Furto de moças

Por Henrique Araújo

Nem só de arquitetura ou intrigas se ocupou Freire Alemão quando de sua passagem por Icó, 160 anos atrás. Famosa pela beleza de suas mulheres, a cidade era então um alvo constante de uma modalidade comum na época: o furto de moças. A prática não passou despercebida pelo botânico, que identificou na boniteza das fêmeas a causa por trás dessa atividade que assombrava as famílias de boa gente da municipalidade.

Em seu diário, Alemão observou que, “pelo que posso ver aqui na vizinhança, as meninas, moças e senhoras de Icó se dão pouco ao trabalho, gostam muito de janela e me parecem loureiras, o contrário do que observamos em Aracati”. Segundo ele, “há algumas moças bonitas e interessantes, e trajam-se bem”.

“Freire Alemão destacou muito as mulheres da cidade, que eram muito belas”, conta Altino Afonso, historiador e memorialista de Icó. “Mas uma coisa que ele deixa bem claro são os furtos de moças. Ele conta que, para casar em Icó, o homem primeiro roubava a moça e depois voltava. Quatro ou cinco dias depois, trazia a filha de volta, e o pai deixava a filha casar. Temos tudo isso documentado.”

Em par com o roubo passional, andava outra prática, esta marcada por juras não de amor, mas de sangue: as vinganças entre famílias e as rivalidades políticas. No mesmo diário, Alemão anotou: “Há aqui no Icó uma prostituta (casada) chamada Germana de tal Feitosa, é dos Inhamuns e parda, com que o Lagos tem tido conversas e que as tem aproveitado”. 

O botânico continua: “Parece que ela já mandou atirar em alguém e também lhe deram já tiros. Não desdiz da raça. As antigas questões morticiosas entre os Feitosa, os Monte e Moraes fazem uma página negra da história do Ceará e se pode prestar para um romance”.  

A despeito das matanças, a comissão deteve-se em Icó até o começo de dezembro de 1859, quando finalmente levantou voo rumo ao Crato, na região do Cariri, onde as outras pernas da expedição se encontrariam para encerrar a aventura científica. Antes de deixar a cidade, porém, Freire Alemão foi convidado para um casamento. Como os noivos pertencessem a famílias abastadas da localidade, e o Lagos não se contivesse de tanta expectativa para a festividade, adiaram a partida para o dia seguinte, 18 de novembro.

Os casamentos de Icó

Por Henrique Araújo

Na mesma igreja e quase no mesmo dia, 160 anos depois, Maria Zuleide Amorim Muniz e José Rubi Peixoto Cunha Júnior casaram em Icó. (Foto: Aurélio Alves/O POVO
 

Mais de meio século atrás, mal pusera os pés na cidade de Icó, no Interior do Ceará, a Comissão das Borboletas foi informada de que, dali a alguns dias, a filha de um tal dr. Gurgel, figura influente do município, selaria os votos de matrimônio com outro bem-nascido, herdeiro do dr. Rufino. A cerimônia seria realizada na Igreja Matriz, ao lado do teatro e da casa de Câmara e Cadeia Pública. Os pais dos nubentes faziam questão de que Francisco Freire Alemão e sua trupe participassem da festividade. 

Zuleide Amorim Muniz e José Rubi Peixoto Cunha Júnior casaram em Icó em 16 de novembro de 2019. (Foto: Aurélio Alves/O POVO
 

Cioso de seus compromissos sociais, o botânico não se fez de rogado. Em seu diário, Freire Alemão anotou. Era 16 de novembro de 1859. “Ainda não foi possível sairmos hoje, e visto que amanhã é o dia do casamento da filha do Gurgel, para o qual aí temos sido convidados pelo noivo e pelo pai da moça, Manoel e o Lagos me vêm propor a demora da viagem por mais um dia, para não faltarmos ao convite, alegando que mostrarão-se sentidos se não o fizermos”, escreve. “Achei-lhes razão e fica a viagem para depois de amanhã, sábado.”

Foi um bailão, para o qual acorreu um mundaréu de homens e mulheres, coalhando a praça icoense. Foi o maior casamento da história da região, assegura o memorialista Altino Afonso. “Às sete horas da noite nos vestimos e fomos para a casa do Gurgel, que já estava com muita gente”, relata Alemão. “Foi uma excelente reunião de grande número de pessoas das primeiras famílias do Icó.” 

Zuleide Amorim Muniz e José Rubi Peixoto Cunha Júnior casaram em Icó em 16 de novembro de 2019. (Foto: Aurélio Alves/O POVO
 

Corta para 2019. Nesse mesmo Icó, como se diz por lá, duas famílias influentes repetiram o casório. Sem saber, os médicos Maria Zuleide Amorim Muniz, 33, e José Rubi Peixoto Cunha Júnior, 36, escolheram a mesma igreja no mesmo dia 16 de novembro para repetir a festança que, 160 antes, havia mobilizado toda a cidade – na véspera, os convidados do enlace ocupavam boa parte dos quartos disponíveis nas pousadas, e quem se achasse de passagem corria o risco de ficar sem ter onde dormir. 

Zuleide diverte-se com as semelhanças entre dois eventos tão distantes no tempo. Enquanto uma moça retoca a sua maquiagem numa salinha do buffet alugado para mais de 300 pessoas, a noiva, cuja família tem relações estreitas com a política local, fala que nada foi calculado. “Eu não conhecia essa história”, diz, referindo-se à visita da Comissão das Borboletas a Icó. “Mas gostei da coincidência.”

Mais tarde, ao entrar na igreja, Zuleide foi recebida por uma fileira de damas mui formosas, tal como descreve Freire Alemão naqueles idos de 1859, ao registrar que “as senhoras pela maior parte trajavam com riqueza e gosto, (...) os homens trajavam também com asseio e gosto, parecia acharem-se em uma reunião do Rio de Janeiro”. 

O casamento levou um bom par de horas, incluindo-se a espera no altar. Antes das 22h, o noivo já havia beijado a noiva, e então todos se encaminharam para uma etapa não menos aguardada da comemoração: os comes e bebes. 

Sobre o casamento que testemunhou, Freire Alemão foi sucinto – talvez ácido. O pesquisador não escondia o azedume: “A noiva estava muito bem vestida. É bonitinha; o noivo também não é mal parecido. Tocou-se piano. Às dez levou-se a noiva para a sua casa e acabou-se a festa”. 

Nesse mesmo horário, naquele novembro de 2019, a festa estava apenas começando. Atravessaria a madrugada, numa sucessão de vestidos e roupas finas e bandejas que serviam o mais requintado doce e o mais saboroso salgadinho. Os convivas se refestelavam. Recém-casada, Zuleide segurou o buquê enquanto pode. Quando finalmente o atirou, houve breve disputa, ao fim da qual a vencedora saiu empunhando as flores com garbo. 

Uma nova banda começou a tocar, fazendo soar as primeiras notas de um forró cujo refrão fala de “um poderoso rubi” – era uma homenagem da amorosa esposa ao marido, conhecido apenas como Rubi Júnior. Depois disso, dançou-se a mais valer.

Sobral, cidade política

Por Carlos Mazza (reportagem)

Acirramento político já era marca de Sobral há 160 anos. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

Não vem de hoje a conhecida influência do município de Sobral, na Zona Norte, na condução de rumos da política no Ceará. Na época da passagem da Comissão Científica pelo Estado, o município já era lar de grandes lideranças regionais e com notável clima de acirramento.

“Aqui existiam dois partidos, os democratas e os marretas, que nunca se uniram. Uma moça não podia namorar um rapaz de outro partido nem frequentar o clube do outro. Existia o Palace Clube e existia o Clube Democrata, altamente acirrado", conta o escritor Arnaud Vasconcelos, membro da Academia Sobralense de Letras e estudioso da sociedade do município.

“O acirramento já era percebido nos escritos de Francisco Freire Alemão, de 1860. "As ideias políticas são muito extremas, mesmo entre mulheres ali na moradia procuram-se avizinhar-se os grupos do mesmo partido", registra. 

Uma das lideranças políticas sobralenses era o próprio anfitrião dos membros da comissão, o então senador Francisco de Paula Pessoa. 160 anos depois, o município continua no centro da política cearense, sendo berço político dos ex-governadores Cid e Ciro Gomes (PDT). Linha materna da família do prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio (PDT), também é originária de Sobral e chegou até a eleger políticos no município. (Carlos Mazza)


Longevidade no poder

Por Carlos Mazza (reportagem)

Ainda que tenham se passado 160 anos da Comissão Científica Exploradora, algumas coisas pouco mudaram pelo Interior do Ceará desde a passagem dos pesquisadores por lá. Em vários dos municípios por onde passou a equipe, famílias e grupos políticos que já estavam no poder à época seguem até hoje em posições de governo.

Um dos casos mais emblemáticos é o de Saboeiro, nos Inhamuns. Quando passaram por lá em 1859, os pesquisadores foram recebidos pela família pecuarista Fernandes Vieira, que comandava a política na região. 

Hoje, o atual prefeito do município, Gotardo Martins, é descendente da mesma família. Já o vice-presidente da Câmara Municipal de Fortaleza, vereador Adail Fernandes Vieira Júnior (PDT), também é natural de Saboeiro e descendente dos antigos anfitriões da Comissão das Borboletas. 

Já a família do senador Paula Pessoa, que recebeu os pesquisadores em Sobral, também mantém filhos ilustres no cenário político local, entre os quais está o atual prefeito de Santa Quitéria, Tomás Albuquerque de Paula Pessoa, conhecido como Tomás Figueiredo, pai do ex-deputado Tomás Filho e marido da ex-deputada Cândida Figueireda. Da mesma família é o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Alexandre Figueiredo.

Não vem de hoje a conhecida influência de Sobral na política no Ceará. Na época da passagem da Comissão Científica pelo Estado, o município já era lar de grandes lideranças regionais e com notável clima de acirramento, já percebido nos escritos de Francisco Freire Alemão, em 1860. "As ideias políticas são muito extremas, mesmo entre mulheres ali na moradia procuram-se avizinhar-se os grupos do mesmo partido."

A força e a esperança que surgem entre o rio e o mar

Por Érico Firmo

Indígenas da Barra do Mundaú. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Nos manuscritos de Francisco Freire Alemão na Biblioteca Nacional está o Relatório dos Costumes, e algumas seitas mais notáveis que ainda existem entre os nossos indígenas do Termo de Villa Viçosa. O documento foi redigido por Antonio Marques da Assunção, morador de São Benedito. É o mais valioso registro conhecido sobre os indígenas da Ibiapaba na metade do século XIX. Ele faz uma detalhada descrição do Torém. Do outro lado do Estado, na barra do rio Mundaú, em Itapipoca, O POVO conheceu, e participou, do mesmo ritual. Era praticado, com algumas diferenças 160 anos depois, pelos índios Tremembé.

Mundaú foi visitada pela seção Geológica, para estudar o potencial uso industrial da resina do oiti. Ficou decepcionado e acabou estudando os recifes e dunas.

Quatro tribos hoje habitam o deslumbrante ponto de encontro do rio Mundaú com o mar. Eles têm duas líderes - não usam denominação cacique -, que trabalham em conjunto: Adriana Tremembé e Erbene Rosa Tremembé. As tribos travam antiga luta pela demarcação e homologação do território de 3.580 hectares. O conflito, como reminiscência do tempo colonial, tinha como adversário um grande empreendimento turístico espanhol, chamado Nova Atlântica. O grupo tinha muito dinheiro para investir e houve pressões políticas para que os índios entrassem em acordo com os empresários. “Entre o rio e o mar que a gente sabe que está nossa força maior, que é a força dos encantados, eles têm nos protegido”, acredita Erbene.

Adriana e Erbene são também professoras na escola indígena Brolhos da Terra. Erbene é também coordenadora. É formada em pedagogia e em biologia, pela Universidade do Vale do Acaraú (UVA), em curso em Itapipoca. Começou o curso superior em 2006, um anos após abrirem a escola indígena - já com a perspectiva de ensinar às crianças da sua tribo. Formou-se em 2009 e, em 2015, concluiu a segunda graduação.

No princípio, a escola não tinha prédio. As aulas eram embaixo dos cajueiros, no alpendre das casas. A energia elétrica só chegou em 2010. As aulas da educação de jovens e adultos (EJA), antes, ocorriam sob a luz de lampião.

Adriana conduziu o ritual do Torém. Todos de pés no chão, a equipe do O POVO incluída, eles agradecem à mãe Terra, a mãe natureza, ao pai Tupã, à mata - “nossa vida”, conforme qualificam. À lua e às estrelas, “nossas energias”. Ao sol, “nossa luz”. Às pedras e arcos, “nossas armas”. E ao logo, “que é nossa visão”. Segue-se a dança num grande círculo. Este repórter admite que em dados momentos se confundiu nas voltas e atrapalhou um pouco a dança.

Em seguida, foi servido o mocororó - bebida fermentada de caju, e o grolado, feito da mesma goma de que se faz o beiju, uma espécie de farofa da tapioca, misturada com linguiça frango e carne de porco.

O território dos tremembés da Barra do Mundaú está hoje demarcado. Está na fase agora de levantamento de benfeitorias, para depois haver a desintrusão - a retirada das famílias que não são indígenas. A seguir, vem a homologação. “A gente não tem esperança, mas a gente vive de esperança”, apresenta Erbene em seu paradoxo sobre a conjuntura das políticas indigenistas e o sonho de sua gente.

 

Encantados, os guardiões da mata

Por Érico Firmo

 

José Carneiro é mateiro e mestre da cultura no Ceará. Ele mostrou ao O POVO o caminho velho do Maciço, antiga trilha indígena que o colonizador branco usou para dominar a Serra de Baturité. Foi também a rota da Comissão das Borboletas. No percurso, pediu proteção a entidades especiais.

"Eles estão aí para defender a natureza. Fazem parte do meio. As caiporas, o saci, a mãe d'água, o curupira, o mazagão, que é um bicho de que os antigos falavam. São fenômenos da natureza". O papel desses guardiões é proteger o meio ambiente.

Alguns desses guardiões são seres vivos reconhecidos pela biologia, como a malha de fogo, a serpente Lachesis muta, ou simplesmente surucucu. A divergência é sobre o que ela é capaz de fazer. Zé Carneiro narra ter visto ela apagar fogueiras na mata com a calda, mesmo se queimando. "Os biólogos não aceitam isso, mas eu sou testemunha, que eu já vi. É também um guardião vivo da mata. Um espírito vivo da mata".

"Os encantados são a essência da natureza, essa energia que a gente sente, nossos idosos que se vão e se encantam. Os encantados são a natureza, os guardiões da memória, da sabedoria, dos espaços sagrados. Eles que nos protegem, eles que purificam", explica Ezequiel Tremembé, indígena dos povos da Barra do Mundaú, professor na escola indígena, formado em pedagogia com pós-graduação em Psicopedagodia. "Nosso pai Tupã que é Deus, nossa mãe Tamaí que é Nossa Senhora, e essa natureza, os encantados, vêm nos fortalecer, nos abençoar, nos ajudar. A gente acredita nessa força da encantaria, na interferência dessa força da identidade, da cultura nossa tremembé".

Zé Carneiro narra episódio ocorrido em 2004, quando guiava grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará. Ele disse a um biólogo que eles estavam numa mata assombrada. O professor fez galhofa: "O que a gente encontrar aqui, alguma caipora, eu pego para vender na Internet". Acontece que o grupo se perdeu, rodando em círculos, de 9 às 14 horas. O grupo ficou muito zangado com o mateiro. Disseram que ele não conhecia nada. Zé Carneiro respondeu que eles se perderam por terem falado o que não deviam. "Desrespeitaram os meus amigos da mata". “Criou assim como se a gente estivesse dentro de uma cápsula. Você notava que a vegetação mudou, o clima frio ficou mais abafado. Ficou tudo diferente”.

O mateiro então, afastou-se um pouco do grupo. “Pedi licença aos meus amigos da mata para tirar aquele povo, que estava na minha responsabilidade. Que o cara tinha falado uma besteira e elas deixassem por menos. Que eles lá eu não levava mais. Podia levar outro grupo. A natureza é muito sábia”. Ele conta que, ao retornar ao grupo, encontrou o caminho, a dois metros de onde estavam.

Presidente da Comissão Científica, Francisco Freire Alemão relata em seu diário que ouviu o canto de um desses encantados quando esteve em Canindé. “Ontem à noite, estando já deitado, seriam onze horas [quando] ouvi pela primeira vez o canto do saci-pererê, de que muito ouvi falar no Rio, mas que nunca vi nem ouvi; o canto é pouco mais ou menos [assim]: “fafé (alto) fafefê (baixo)” (p. 436-437). 

 

A paixão pelas redes

Por Érico Firmo

Rede retratada por José dos Reis Carvalho
 

“As redes são nestas terras as cadeiras os sofás e as camas”, registrou Francisco Freire Alemão em seu diário (p. 197). A paixão ainda de hoje já o era há 160 anos.

Rede em casa de Taipa em Quixadá. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Adailton Paulino, 24 anos, mora na estrada entre Quixadá e Quixeramobim. Ele descansava na rede por volta da hora do almoço. “É bom, né. Meio dia assim num é muito ruim não”, comentou com O POVO sobre o prazer ancestral. À noite, ele dorme de cama. Mas o descanso durante o dia é na rede. Prática que é recriminada por seu Paulo Sérgio, que chegou enquanto conversávamos.

Adailton Paulino deitado e Paulo Sérgio de pé
 

“Só me deito de noite. De dia assim não me deito não. O tempo não dá. Se deitar uma vez se acostuma”. (Colaborou Carlos Mazza)

Senhora em rede em Saboeiro. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

A acolhida nas casas do Interior

Por Érico Firmo

Um traço que a Comissão registra dos cearenses é o acolhimento e a gentileza. “Esta gente do Ceará é muito obsequiadeira e não se cansam de fazer presentes”, contra Francisco Freire Alemão em seu diário (p. 510). Algo que O POVO também constatou após 160 anos.

Nas andanças pelo Interior, batemos nas portas das casas, pedimos licença para entrar em propriedade e sempre fomos bem acolhidos. Algo até difícil de se imaginar em muitos bairros de Fortaleza, as pessoas abriam suas portas para estranhos, deixavam-se fotografar e compartilhavam suas vidas. Isso após ouvirem dos repórteres a estranha história sobre um grupo de cientistas que esteve por aqueles lugares há 160 anos.

Uma dessas casas foi a de seu Antônio André Filho. Ele e sua nora nos deixaram entrar e fotografar a casinha de taipa em que ele criou toda a família - semelhante às construções que a Comissão viu no século XIX. Hoje a família vive numa bela casa de alvenaria ao lado, mas o filho de seu Antônio quis preservar a casa onde cresceu - e onde ainda vai se deitar na rede, para fugir do calor da zona rural de Quixadá.

A nora de seu Antônio, Sueli Paz Pinheiro André, nos ofereceu um saboroso suco de tamarindo, trouxe água geladinha - que fez a diferença no calorão. Trouxe também banana gelada, biscoito. Também ofereceu o feijão que almoçariam, mas já estávamos abusando e ainda tínhamos muitos caminhos a percorrer.


 

O "deleite do cearense": o banho

Por Érico Firmo

 

Uma coisa que chamou atenção de Francisco Freire Alemão foi a paixão pelos banhos, a que se refere em seu diário (p. 509) como “o deleite do cearense”. “Banhar-se nos rios é coisa de que gosta muito a gente do Ceará”, anota. E não só nos rios. “Quando chove muito as crianças de três, quatro e cinco anos, machos e fêmeas, saem tudo para a rua nu a folgar” (P. 444). Ele observa a mesma coisa em algumas ocasiões. “(...) a gente do país (o Ceará) gosta muito de banhos nos rios, é um de seus maiores prazeres, pouca gente se lava em casa, exceto na ocasião das grandes chuvas, em que aproveitam as galhetas” (p. 502).

 

O próprio Freire Alemão experimentou o banho em Maranguape, na Pirapora, um balneário famoso na época. “(...) se alguém vem a Maranguape, a primeira pergunta que lhe fazem é: ‘Foi à Pirapora?’”. O rio, dizia ele, formava um “remanso de fundo de areia onde cai uma cachoeira”, à sombra de uma grande gameleira. (p. 501-502).

O POVO foi à Pirapora e constatou que o rio está seco.

 

O recato e os palavrões 160 anos atrás

Por Érico Firmo

“É notável no Ceará  como o povo é comedido e casto em sua linguagem. Aqui não se ouvem como no Rio a cada passo palavras grosseiras e desonestas”, registra Francisco Freire Alemão em seu diário de viagem. Quando insultam, ele deixa documentado, usava-se “safado”, “danado”, “desgraçado”. “Poucas vezes se ouve dizer diabo aos meninos, os moleques se descompõem e dizem raramente f. da p”. Porém, há xingamento mais comum que todos: “Mas o que é curioso é que usam da palavra ‘corno’ muito sem cerimônia: não é raro ouvir chamar o outro de corno”. (P. 280-281).

Sob o espectro das rebeliões

Por Érico Firmo

Em vários momentos em seu diário, Francisco Freire Alemão menciona conversas acerca da participação cearense em rebeliões - a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador em 1824 e ainda em 1832, quando Pinto Madeira liderou o movimento que pretendia restaurar o reinado de dom Pedro I, ao menos no Cariri. Eram momentos raros em que o Ceará havia chamado atenção do Brasil. Por isso, era frequente tema quando os de fora puxavam assunto com os locais. Freire Alemão sugeria, nos idos de 1860, que fossem reunidas as memórias e tradições das testemunhas ainda vivas daqueles episódios.

 

A inteligência das mulheres e crianças do Ceará

Por Érico Firmo

Chama atenção de Francisco Freire Alemão a inteligência das crianças e das mulheres do sertão. Chama atenção dele o domínio das palavras por crianças com cerca de três anos de idade. “Esta linguagem em tal idade me surpreende, e bem mostra como a gente aqui tem um desenvolvimento precoce”.

Quanto às mulheres, salienta que mesmo aquelas sem educação formal são “desembaraçadas e conversadeiras”, e fazem sala perfeitamente às visitas. Diferentemente, diz ele, das mulheres do Rio de Janeiro, que, mesmo instruídas, “são acanhadas, caladas, tímidas” (p. 533).

 

A parte da Comissão que ficou no Ceará

Gonçalves Dias se encantou da Chapada do Araripe e cogitou comprar um sítio. Guilherme de Capanema efetivamente o fez, ao adquirar fazenda nos tabuleiros de Quixeramombim. Além disso, o ajudante da seção Zoológica, João Pedro Vila-Real, casou com Januária Gurgel Barbosa e permaneceu no Ceará.

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