O Sertão parece que está morto, mas ele está vivo

Por Érico Firmo Por Fred Souza (pesquisa histórica)

Foto: Aurélio Alves/O POVO
Árvores do sertão não perdem folhas por estarem mortas, mas para se manterem vivas. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“No sertão, as árvores largam as folhas, secam; mas não morrem. É que nesse solo árido e pedregoso não vivem senão as plantas, que por sua natureza podem passar parte do ano sem folhas”, escreveu Francisco Freire Alemão em seu relatório lido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Ele era o chefe da Seção Botânica e, também, o presidente de toda a Comissão Científica de Exploração que percorreu o Ceará entre 1859 e 1861.

José Alves Carneiro é mateiro, mestre da Cultura reconhecido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult). Ao guiar O POVO pelos caminhos da comissão no Maciço de Baturité, ele ensina a mesma coisa de forma diferente. “(A planta) perdeu a roupagem dela para manter o esqueleto. Para quando no próximo ano, ter uma renovação. Na realidade, não é morta. É uma resistência natural”.

 

Freire Alemão prosseguiu: “Sem dúvida que a nímia secura do ar do sertão acelera a queda das folhas e retarda o aparecimento de novas; mas quando isso não fosse, as árvores que ali vivem não deixariam de despir-se”, relatou o chefe da seção Botânica. “O fenômeno é o mesmo que se passa nos países frios, e o mesmo que aqui tem lugar no nosso inverno legítimo ou astronômico”.

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Ed é trabalhador rural em Quixadá. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Francisco de Assis, o Ed, é trabalhador rural na fazenda Inflação. A bonita e bem cuidada propriedade recebeu o nome porque, na época da compra, teria sido “cara que só não sei nem o quê”, comentam os moradores da cercania. Ed nasceu na localidade de São Serafim, 12 léguas depois de Canindé. Desde pequeno se criou em Quixadá. Aos 36 anos, é especialista no cuidado da terra e das plantas, formado pela prática, pelo conhecimento adquirido com os técnicos que prestam assistência na fazenda. O saber é reconhecido na região. Quando O POVO transitou por Quixadá rumo a Quixeramobim, conversou com agricultores em busca de alguém que conhecesse as nuances da vegetação local e pudesse explicar das artes de cultivar lavoura na secura do Sertão Central. Eles apontaram na direção da Inflação e sugeriram procurar Ed.

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Prestativo, ele caminhou com a reportagem por entre as plantações de que cuida. Apontou para um limoeiro carregado. Tanta fruta que parecia que a planta não suportaria. “Tava vendo a hora ele morrer. Liguei para o técnico e ele disse: ‘Pode arrochar água no tronco dele’. Porque a carga dele tá grande, ele não está aguentando. Porque o fruto enche de água. Tem de botar bastante água nele para ter os frutos”.

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Do limoeiro que precisou de muita água para sobreviver e sustentar a carga de frutos ele tira a lição para explicar as árvores secas da caatinga. “Quanto mais carregado, mais água pega. Aí se ele seca, ele aguenta. Não vai estar dependendo de muita água para ir para os galhos. Aí é o certo. Porque algum galho seca mesmo. Quando der a primeira chuvarada aí, você vê. Florada, aí fica bonito, tudo verde”.

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Gaudêncio Siqueira, agricultor em Carrapateiras, distrito de Tauá. No oeste do Estado, ele constata a mesma realidade. “Nesse período seco fica tudo cinza, você pensa que morreu tudo, que as árvores morreram todas, a arueira, o sabiá, a favela, fica tudo seco seco, cinza. E quando dá as primeiras chuvas, isso aqui revitaliza, começa a dar vida, fica tudo verde, tudo bonito. A gente vê que essa natureza aqui tem um poder, ela é soberana”.

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Vegetação sertaneja. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)

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A TRANSFORMAÇÃO DO CAMPO

Freire Alemão constatou o que Ed e Gaudêncio contam. “A quadra era favorável aos seus estudos, porque assim pôde assistir ao magnífico espetáculo da transformação dos campos e do aspecto da natureza na província, quando depois de aturada seca sobrevêm as primeiras águas. Ao terreno solto, desolado e no parecer infrutífero, dos arredores da Fortaleza, sucedeu em poucos dias, e como por encanto, uma vegetação virente e luxuriante. Os arbustos, queimados pela estação calmosa, garranchosos, tristes, quase mortos, rebentam em viço e vigor de modo admirável, e se cobrem de abundantes e variadas flores”.

Gaudêncio admira-se da resistência do Sertão. “A gente fica matutando no pensamento, porque, se você observar, a gente tá aqui numa região, nos Inhamuns, que é um sertão, onde estamos com sete anos de seca, onde não há acúmulo de água. Chove, mas são chuvas finas, passageiras, e não fica. Os açudes estão todos secos. E estamos aqui resistindo, sobrevivendo, e produzindo carne, produzindo queijo”. Ele duvida que fosse assim em outras regiões. “Eu fico pensando na região Sul, se passasse sete anos sem chuva, o que seria daquela região? Porque lá se passa quatro, seis meses sem chover já cria uma calamidade, imagina sete anos. Isso tem uma peculiaridade, tem uma história também”.

Jaguaribe: o rio no caminho da Comissão Científica: 

 

Os saberes dialogam. Zé Carneiro, Ed e Gaudêncio ecoam, pela vivência prática, aquilo que o chefe da seção Botânica da Comissão Científica escreveu há mais de um século e meio, após sair da Corte para conhecer os sertões.

Francisco Freire Alemão foi titular da cátedra de Botânica e Zoologia da Faculdade Médica do Rio de Janeiro. Foi o maior botânico brasileiro do século XIX e um dos maiores das Américas, diz Renato Braga, autor da principal obras de referência sobre o tema - História da Comissão Científica de Exploração (Edições Demócrito Rocha, 2004). Criou 15 gêneros de plantas e determinou em torno de 50 espécies.

A seção Botânica foi, de longe, aquela que deixou mais relevante contribuição, a mais bem documentada. Francisco Freire Alemão era o mais sistêmico, o mais meticuloso e rigoroso dos participantes. 

Foi a maior contribuição botânica até então para o acervo científico do Museu Nacional, com 14 mil amostras em caixas de cedro, revestidas de folhas-de-flandres. Durante pelo menos meio século, esse material permaneceu proibido de ser consultado, lacrada em latas. (BRAGA, 2004, P. 104). Como o herbário fica fora do Palácio da Quinta da Boa Vista, o precioso material se salvou do incêndio no Museu Nacional em 2018.

Além do que produziu na área de botânica, Freire Alemão deixou precioso diário de viagem, com rico olhar etnográfico sobre o Ceará de meados do século XIX. (Colaborou Carlos Mazza)

A Comissão Científica nos Inhamuns: 

 

Os três Cearás

Por Érico Firmo

Presidente da Comissão Científica de Exploração e chefe da Seção Botânica, Francisco Freire Alemão dividiu o Ceará em três.

Serra Azul, em Quixadá, um dos locais em que a Comissão esperava encontrar metais preciosos. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

REGIÃO DAS SERRAS

“Assim as montanhas granítico-argilosas, umedecidas por fontes perenes, como são as de Baturité, Maranguape, Aratanha etc., estão cobertas de uma vegetação pomposa, sempre verde. Suas corpulentas árvores são em grande parte as mesmas das florestas fluminenses, principalmente nas alturas excedentes de 800 pés sobre a face do mar”, escreveu Francisco Freire Alemão em relatório ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). “Pelas fraldas das serras e lugares circunjacentes, cujo solo formado pelos detritos e aluviões, que vêm de cima, nutre uma vegetação vigorosa e sempre verde, a que se dá o nome de ‘matas de pé de serra’”. E assim define: “São estes bosques das serras, e de seus contornos, cheios de excelentes madeiras de construção, os que constituem o que chamo ‘região das serras’”.

O POVO refez os caminhos pelo Aratanha, Maranguape, Serra Azul, Chapada do Araripe, Meruoca e Serra da Ibiapaba. E a serra do Maciço de Baturité, que particularmente encantou Freire Alemão, pela semelhança com a realidade bem próxima dele. “As matas que antes cobriam todo o alto da serra, e de que ainda se conserva uma boa porção, são, ou foram, magníficas. O terreno montuoso, argiloso quase sem pedra, é semelhante aos altos da Serra do Mendanha, mas muito mais vasto”, registrou nos diários. O Mendanha foi onde ele nasceu e onde viria a morrer, em 1874.

A vegetação das serras cearenses cria microclima peculiar em região semiárida. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

“Fiquei surpreendido ao ver o alto da serra de Baturité, de que eu não fazia ideia exata. É uma vastíssima esplanada, toda eriçada de montes, bem semelhante à nossa grande serra do Mar”, conta Francisco Freire Alemão em seus diários. Encantado com o lugar, Freire Alemão faz alerta. “Tudo coberto de grandes matas, comparáveis com as nossas do Rio; mas que vão sendo destruídas ou antes já estão em grande parte devastadas”.

As cachoeiras da região da Ibiapaba. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

Professor da Escola Estadual Menezes Pimentel, em Pacoti, e autor de livros sobre a história da serra, Levi Jucá explica que a maior parte das matas do maciço não são originais. É mata secundária, que se recuperou após o plantio de café, canavial, lavoura de legumes. Depois que a terra se esgotou para plantação, foi abandonada. E a mata vai se recuperando desde então. O início do fenômeno já era apontado por Francisco Freire Alemão no relatório lido no IHGB. “Soberbas matas formam seu manto de verdura, já hoje em grande parte substituídas por lavras de café, que é de excelente qualidade”, escreveu. “O que a gente tem hoje na serra são ilhas de mata original. Onde há árvores imensas. São nesses nichos que a gente vai encontrar espécies únicas” diz Jucá.

Vegetação do sertão desfolhada. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

REGIÃO DO SERTÃO

Da exuberância das serras, os pesquisadores conheceram outra realidade ao mergulhar nos sertões. “À medida que avançavam interior adentro, sob a luz do céu flamejante, os viajantes surpreendiam-se diante da aspereza e melancolia das caatingas, várzeas e tabuleiros imersos na quietude da estivação. As próprias cidades se mostravam paradas e soturnas. As vilas e povoados, com a maioria das casas fechadas, cheiravam a tapera”, escreveu Renato Braga. Francisco Freire Alemão, em relatório ao IHGB, considera que a “região do sertão” abrange quase todo o Ceará. “(…) seu terreno montuoso, pedregoso, árido, é revestido de matas denominadas catingas. As árvores de ‘catingas’ são geralmente de pequenas dimensões, e largam as folhas no tempo seco”. Mas, há lugares com solo ainda mais pedregoso e mais árido, onde “os vegetais empobrecidos, tolhidos em seu desenvolvimento, fazem-se anões, aparrados, garranchosos, e se desfolham na estação seca”. “Esta é a vegetação chamada de carrasco, que com a de catingas constituem a região do sertão”.

Resiliência é a característica das formas de vida que habitam o Sertão. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

O POVO percorreu o Sertão Central de Ibaretama a Quixeramobim, de Banabuiú a Canindé. Foi pelos Inhamuns e o Sertão de Crateús até Sobral, na Zona Norte. E cortou o Centro-Sul, pelo Vale do Jaguaribe, até o Cariri.

A flora do litoral. (Foto: Julio Caesar/O POVO)
 

REGIÃO DO LITORAL

O litoral cearense por onde passou a Comissão Científica de Exploração é dominado por dunas móveis, conforme descreve Francisco Freire Alemão em seu relatório. “Toda a beira-mar da província (ao menos aquela que vi) é rasa, e na ‘arrebentação’ do mar bordada de dunas movediças, para dentro das quais se alargam mais ou menos ‘tabuleiros arenosos’, e cobertos duma vegetação baixa, rala, e sempre frondosa”.

A Comissão não se deteve muito sobre o litoral. Priorizou o Interior, onde se esperava encontrar minas e desenvolver atividades econômicas. Ficou em Fortaleza e imediações, foi por Aquiraz até Aracati e ali entrou pelos sertões. Enveredou também pelo litoral oeste até o Vale do Curu, Itapipoca, na barra do rio Mundaú, até Amontada. O POVO refez os caminhos por Aquiraz até Aracati, até a foz do Mundaú e, também, Fortaleza. Ainda há diversas regiões de dunas móveis, mas na capital elas foram emparedadas pela cidade e cobertas de asfalto e concreto. A Sabiaguaba, no extremo leste de Fortaleza, é resquício que permite vislumbrar a Fortaleza que os exploradores conheceram 160 anos atrás. Nos demais municípios, ainda há dunas móveis em considerável quantidade, mas disputando cada vez mais espaço com os grandes empreendimentos imobiliários.

Característica da vegetação remanescente no litoral próximo a Fortaleza. (Foto Julio Caesar/O POVO)
 

Francisco Freire Alemão destacava na flora litorânea as árvores frutíferas: cajueiros, cajazeiras, mangabeiras, além de manapuçás, uvaias, muricis, guajerus, cauaçus, janagubas, barbatimão, lacre, embiriba, batibutá, candea, jetaí, peroba, pau-ferro, paraíba, sambaíba entre outras. “É esta a cinta de terra que constitui a região do litoral”.

Hoje fácil de transpor pelas estradas, a rota era difícil de fazer em função dos rios que chegam ao mar. “(...) o caminho pelo Aquiraz tinha para o comboio inconvenientes, tendo de passar o rio Pacoti, que só oferecia uma trilha vadeável, sendo para os lados fundo; e enfim havia a passagem do rio Catu, inevitável indo por ali, e que só embarcando se fazia”. diários de viagem. p. 38

Aquiraz não foi de maior apreço à comissão. Freire a descreveu como povoação “pequena e decadente”. A casa de Câmara, definiu como “um pardieiro de telha vã”. 

O gosto extravagante por derrubar a vegetação

Por Érico Firmo

Os anos em que permaneceu a comissão no Ceará foram de boas chuvas. Os cientistas não conheceram uma seca de perto na província. Em 1877, 15 anos após o fim dos trabalhos de campo, teve início a mais terrível seca da história do Ceará: a “Seca dos Três Setes”, que atravessou os anos de 1877, 1878 e 1879. Aquela calamidade arrasou a então província e repercutiu na Corte como nenhuma outra antes dela. Nos debates políticos sobre como lidar com a situação, buscou-se o saber dos exploradores que percorreram o território década e meia antes.

Desmatamento e queimadas eram e ainda são uma constante nos sertões cearenses. (Foto: Aurélio Alves/O POVO)
 

Chefe da Seção Astronômica e Geográfica, Giacomo Raja Gabaglia escreveu “Ensaios sobre alguns melhoramentos tendentes à prosperidade da província do Ceará”, editados em 1877 pela Tipografia Nacional, no Rio de Janeiro. Ele narra que presenciou realidade presente ainda hoje. “Em 1859 transpus um espaço de quatro léguas, fumegando ainda, onde o pasto e os arvoredos se tinham convertido em um horizonte de cinzas e tocos negros. É sobremaneira extravagante o gosto, que por aqui se tem, de derribar as plantas e de esquecer sua utilidade presente e futura”. Gabaglia faz dura consideração sobre a natureza do egoísmo que testemunhou.. “Nem ao menos se sabe ser egoísta em uma época tão característica do eu, ou então, o egoísmo se acha já tão requintado que não só concentra-se no indivíduo, como que circunscreve-se à única hora do presente”.

Ele prossegue ao registrar o ato de derrubar a vegetação como hábito cultural. “Em clima quente como o da província se nota que o primeiro ornato ou aformoseamento que os moradores do campo procuram dar a suas habitações é isolar completamente as casas de tudo quanto é arvoredo: julgar-se-ia que, receosos de perder os primeiros e últimos raios crepusculares, buscam derrubar os obstáculos que a vegetação oferece, e, não só arrancam os arbustos e destocam o terreno contíguo à casa de vivenda como levam a destruição até bem longe”.

Gabaglia narra diálogo particularmente revelador dessa percepção. “Ao tratar semelhante assunto, lembro-me da conversação que tive com um morador do sertão, pessoa abastada e bem-intencionada com a qual travei conhecimento em jornada; ao apear-me no alpendre de sua casa e em seguimento de outros objetos me disse, ao mesmo tempo que estendia o braço apontando vários pontos no horizonte: ‘Veja, em poucos meses tenho feito bastante… como vê: tudo isto… tudo isto’. Olhei com curiosidade, perscrutando ao que se referia; mas, em vão: era noite e, diante de mim, divulgava a custo um amplo espaço que deixava ver ao longe duvidosos limites da estrada. ‘O quê? - perguntei de novo sem bem atinar ao que se aludia. ‘Não vê!! - retorquiu-me o interlocutor - pois não vê todo este limpo? Tudo isto era um matão e eu pus-lhe fogo que agora faz gosto de ver”.

O chefe da seção Astronômica então conclui: “Então percebi e vi que, além do malfeito, se julgava meritório serviço e trabalho benéfico o lançar-se o facho incendiário, o fogo sobre uma pilha de lenha”. Gabaglia salienta que não era episódio isolado. “Fatos análogos abundam, e provam quanto o povo por inclinação, gosto ou sistema é perseverante na destruição dos tesouros botânicos que a natureza formou”. (GABAGLIA, Giacomo Raja. Ensaios sobre alguns melhoramentos tendentes à prosperidade da província do Ceará. In: CAPANEMA, Guilherme Schurch de. A seca no Ceará. Escritos de Guilherme Capanema e Raja Gabaglia. Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Museu do Ceará, 2006. p.69-70).

A serra que a Comissão das Borboletas viu e que não existe mais

Por Érico Firmo

Foto: Aurélio Alves/O POVO
Interior do Ceará visto do Pico Alto, no Maciço de Baturité

O professor Levi Jucá aponta aspecto único nos registro da Comissão Científica de Exploração sobre a região entre as serras e Fortaleza. O período em que eles estiveram na província antecede etapa crucial na história do desenvolvimento do Ceará no século XIX - e também da destruição das matas. Eles percorreram o Ceará antes do início da construção da Estrada de Ferro de Baturité.

A primeira ferrovia do Ceará foi construída a partir de 1873, para escoar a produção de café do maciço para o porto de Fortaleza. Posteriormente, fez a conexão até Sobral e o Crato.

“Todo o percurso que a estrada de ferro foi destruindo, eles viram antes dessa destruição. A riqueza que era o sertão, a riqueza que era a caatinga e até mesmo essa região serrana próxima de Fortaleza como Aratanha, Maranguape, Baturité. Não se tem mais essa ideia”, diz Jucá.

 

As cidades da serra

Por Érico Firmo

Francisco Freire Alemão subiu a serra vindo do sertão, pelo lado de Mulungu e chega ao alto da serra, onde se hospeda na “insignificante povoação da Conceição”, que vem a ser o hoje município de Guaramiranga. “Esta Serra de Baturité, situada quase no centro da província, é uma de suas preciosidades. Ar benigno, solo fértil e banhado por arroios de água perene”, registrou Alemão em seu relatório ao IHGB. De lá, eles descem para “a recente cidade de Baturité, antiga vila de Monte-Mor Novo, situada na raiz da serra, entre seus contrafortes, e que vai florescendo à sua sombra”.

A ocupação das serras era difícil e ocorreu de forma tardia, pois era a única região do Ceará onde se conseguia plantar café, devido ao clima. Não era viável esse plantio no sertão nem no litoral.

Várias das cidades surgiram de antigas fazendas de café. Pacoti era o sítio Pendência, conta Levi. Mulungu era o sítio Mulungu. Aratuba era o sítio Coité. E Guaramiranga era sítio Conceição.

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A serra que encantou os exploradores %uD83E%uDD8B "Em 5 de fevereiro pusemo-nos em marcha, e no dia 6 estávamos em cima da serra, na insignificante povoação da Conceição", escreveu Francisco Freire Alemão, em 1861. Conceição, a "insignificante povoação", é a atual Guaramiranga. A serra encantou os visitantes. "Esta Serra de Baturité, situada quase no centro da província, é uma de suas preciosidades. Ar benigno, solo fértil e banhado por arroios de água perene". A seguir, dirigiram-se para a cidade que dá nome ao maciço. "Descemos para a recente cidade de Baturité, antiga vila de Monte-Mor Novo, situada na raiz da serra, entre seus contrafortes, e que vai florescendo à sua sombra. O estudo da vegetação desses lugares nos reteve ali por dez dias". O projeto Expedição Borboletas percorre caminhos pelos quais passou, há 160 anos, a Comissão Científica de Exploração. Três equipes de reportagem do O POVO viajaram pelo Estado de norte a sul, leste a oeste, em busca de rastros, vestígios, memórias e legados da "Comissão das Borboletas". No percurso, O POVO deparou-se com conhecimentos que se desdobram ainda hoje daquela experiência, assim como os saberes produzidos nos próprios locais por onde passou a comissão pioneira. Todos os dias, no Instagram do O POVO Online, você confere um pouquinho do que a Expedição encontrou. O especial completo será lançado em janeiro. Participaram da Expedição os repórteres Carlos Mazza, Érico Firmo e Henrique Araújo, os repórteres fotográficos Aurélio Alves e Julio Caesar e os motoristas Alexandre Rodrigues da Silva e Cilas Nunes. #ExpediçõesBorboletas

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O café que a Comissão das Borboletas trouxe

O café Bourbon, uma variedade do arábica, está entre os mais apreciados do mundo. Guilherme de Capanema trouxe ao Ceará algumas centenas de pés de cafezeiros da espécie e distribuiu a lavradores em Maranguape e Baturité. Também trouxe muitas mudas de canas das ilhas Maurícias. 

 

As culturas do Ceará província

Não era ouro a única riqueza que buscava a Comissão Francisco Freire Alemão faz inventário das plantas cultivadas no Ceará e dos usos que se podia fazer delas. Alguns exemplos:

 

Cajueiros – “do fruto se está hoje fabricando uma sorte de vinho, que já tem estimação, e que talvez sendo melhorado em sua manipulação e confeição, venha a constituir um bom ramo de indústria na província”. Era da cajuína que ele falava.

 

Jenipapeiro – “Dele se faz uma espécie de bebida com leite, que não é desagradável, e se reputa saudável. Também com ele se prepara um licor que denominam vinho de jenipapo, que não é de desprezar-se”. O licor de jenipapo é ainda hoje um dos mais apreciados. Têm produção afamada em Viçosa do Ceará.

 

Sapotizeiros – Freire Alemão provou do fruto do sapoti cearense e achou bem melhores que os da Corte. “Vi nos jardins da capital algumas destas árvores mui belas, e dando frutos muito superiores aos que se obtêm aqui no Rio”. Encontramos pés de sapoti na fazenda Inflação, em Quixadá.

 

Feijão - dizia ser cultivado em toda parte e de diversas espécies “com exceção do preto e do branco”. Mas, ele faz comentário algo assombroso: “Me pareceu também que o povo do Ceará não preza muito esta sorte de alimento”. A ser exata a impressão, muito mudou em 160 anos.

 

Bananas – “São de várias qualidades, e mui boas”.


Mamões – “É uma árvore preciosa, particularmente em alguns lugares da província, onde o seu fruto faz parte da alimentação do povo”.

 

Coco-da-praia (o coco) – “Pelos tabuleiros arenosos à beira-mar estão estas árvores por todo o ano indefectivelmente carregadas de grande quantidade de enormes frutos. Deles aproveitam, enquanto verdes, a água; seja para bebida, seja para confeição de vários manjares e doces; e, depois de maduros, a substância como alimento, ou para extração do seu excelente azeite”.

 

Mangueiras – “Estas árvores crescem aqui como em seu país natal, e dão abundantes frutas; mas em nenhuma outra parte da província vi mangas com tanta fartura, tão variadas e tão boas como no Crato”.

 

Melões e melancias – cultivados em condições semelhantes, mas o melão era mais apreciado, conforme Freire Alemão.

 

Abacaxis – “Pelas vizinhanças da capital os há excelentes”.

 

Pequizeiro – “Árvore corpulenta, muito abundante na Chapada do Araripe; seu fruto encerra uma substância butirosa e alimentícia, e sua madeira é procurada para várias obras”.

 

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