Pela Cidadania

Nas sutilezas da paisagem estão os abraços que Fortaleza dá e recebe. Um projeto que acolhe, uma atitude de respeito, uma cor, uma delicadeza cotidiana — carinhos de que a Cidade carece e retribuídos com sutis transformações e respiros. A cidadania necessita de generosidade e afeto.

Na Capital aniversariante, os abraços vêm e somem no ritmo de uma relação conflituosa e intensa como são as paixões. Ora somos fortalezenses encantados (e, assim, carinho), ora decepcionados e temerosos (e crítica). É nestes momentos de desamor que os afagos devem ser mais fortes para que possamos voltar a acreditar e a nos apaixonar pela Cidade. E assim tem sido. Rotineiramente, somos encantados por Fortaleza.

Nesta edição do especial de aniversário da Cidade, os jornalistas Paulo Renato Abreu e Henrique Araújo contam abraços em forma de arte e manifestações de rua — culturais, religiosas, artísticas, populares — na Cidade. São projetos individuais e iniciativas coletivas de ocupação de espaços carentes de atenção e transformação de vazios em locais de cor, esperança e vida. Aqui, viraram textos as ideias de gente que ocupa e abraça Fortaleza com spray, tinta, folia ou ioga. Todos buscando mais delicadeza no convívio, mais energia positiva nas experiências urbanas, mais afeto. Em muitas paisagens, isso foi conquistado. Tem muita Fortaleza abraçada. O desafio é ter braços mais longos.

 

 Fortaleza 290 Anos - DOC Matéria da TV O POVO

 

 

Meditação

Para fazer bem à cidade

Por Henrique Araújo

 

Três dias antes desta entrevista, Lúcia Rejane Araújo meditava a milhares de quilômetros do Brasil, num festival que reúne três milhões de pessoas realizado anualmente na Índia. Durante três dias, a ordem é desacelerar e reeducar a respiração. Finda a maratona, a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) embarcou num avião. Começava outra maratona: a de voltar para casa, empreitada que só se concluiria 48 horas depois, na madrugada de sábado.

Às 8 horas da manhã do mesmo dia, vestindo branco e calçando uma sandália de couro, Rejane surge no Parque do Cocó. Está sorridente. E, quando começa a chover, não faz menção de levantar-se. Quer falar sobre plenitude. Acha que Fortaleza tem tudo a ganhar com a ioga.

Responsável pelo aulão realizado no parque todos os sábados, a cearense impôs a si mesma uma tarefa gigantesca: estender ao restante da Cidade todos os benefícios que a prática propicia.

 

Foto: FOTOS: MATEUS DANTAS/ESPECIAL PARA O POVO
Lúcia Rejane: "Quanto mais pessoas meditam juntas, mais essa aura de paz, tranquilidade e solidariedade permanece nesta Cidade". FOTOS: MATEUS DANTAS/ ESPECIAL PARA O POVO


O POVO - Como surgiu a ideia de fazer uma aula de ioga num espaço público como o Parque do Cocó?
Lúcia Rejane Araújo - Esse projeto nasceu meio que casualmente. Ano passado foi instituído o Dia Internacional do Ioga. Foi uma iniciativa do governo da Índia. A Arte de Viver, organização da qual faço parte, participou ativamente desse dia internacional. Foi uma aula pública com cerca de mil pessoas. Foi a primeira vez. Foi um sucesso. De lá pra cá, a aula é feita semanalmente. Foi tão bom, um momento de muita beleza, paz e alegria. A gente pensou: vamos fazer um projeto contínuo. O gestor ficou interessado e hoje nós estamos aqui.

OP - Por que o Cocó?
Lúcia Rejane - A natureza traz tranquilidade. É um local de fácil acesso. E a gente achou que poderia dar certo. E deu. Antigamente, a gente fazia na praia. Mas aqui foi fantástico. Continua na praia, a cada lua cheia. E aqui, aos sábados, às 16 horas, final de tarde. Essa aula é dada principalmente por mim, mas tenho uma equipe de voluntários da Arte de Viver. A proposta é divulgar o que é o ioga. É muito mais do que apenas o exercício. Quanto mais pé atrás da cabeça, bem difícil, melhor. Mas a parte do exercício física é só a ponta do iceberg. Trabalha o físico, mas a intenção é trabalhar todas as dimensões, corpo e espírito. Tem a postura, mas fazemos meditação e atividades lúdicas. Jogos, brincadeiras, dança, imitação de animais. Fazemos uma combinação para que as pessoas conheçam a experiência de paz interior.

OP - A senhora promove esta busca de plenitude num espaço precioso da Cidade. Que tipo de benefício uma aula pública leva, não apenas para as pessoas que praticam, mas para a Cidade também?
Lúcia Rejane - Hoje se sabe que, quando muitas pessoas meditam juntas, muda a qualidade espiritual do ambiente. O que a gente pretende é que as pessoas possam fazer sua experiência interior, a Cidade mude essa energia de conflito e violência e possa ser uma Cidade mais específica. Isso é possível. Quanto mais pessoas meditam juntas, mais essa aura de paz, tranquilidade e solidariedade permanece nesta Cidade. Estamos nessa intenção ao lado de outras cidades.

OP - Essa melhoria pode se refletir no trânsito, por exemplo.
Lúcia Rejane - Em todos os aspectos. A vida é vibração, e essa vibração se espalha. A gente quer que Fortaleza seja uma Cidade mais vivível — não sei nem se existe essa palavra. Queremos a vida em dimensão maior.

OP - Essa atividade integra muitas esferas da sua vida. Trabalho, rua, casa, trânsito. A senhora disse que muita gente diferente vem pra cá. Que cidades se encontram aqui?
Lúcia Rejane - De muitas partes. É recompensador. A gente vê no olhar. É disso que as pessoas precisam. É redescobrir que nós já somos essa paz, esse bem-estar. Esquecemos porque vivemos neste mundo acelerado e esquecemos de cuidar da espiritualidade.

OP - É possível abraçar a cidade de forma diferente?
Lúcia Rejane - Sim. Você começa a se relacionar com o mundo de forma diferente, mais amorosa, mais integrada. Isso se estende para a natureza e a cidade. As pessoas passam a ter mais cuidado, mais responsabilidade, mais consciência do que são e do que estão fazendo aqui. Isso desperta o sentido do pertencimento.

OP - O fato de a aula ser feita no espaço público reforça o vínculo?
Lúcia Rejane - Sim, porque as pessoas sentem que este espaço também é delas e elas se sentem muito à vontade aqui. Dizem que nem parece Fortaleza. E é Fortaleza. Elas têm um novo olhar para esse ambiente e de como podem usufruir isso.

OP - Que outros lugares merecem uma aula de ioga?
Lúcia Rejane - Cada praça merece uma aula de ioga. Daria mais facilidade para as pessoas. A praia poderia abraçar. Até o Centro. Fazer uma aula na Praça do Ferreira... Taí uma boa ideia.

 

WebDoc Abraçar

 

Arte urbana

Cor para a Cidade

Por Henrique Araújo


Naquela manhã, nem a chuva fina impediu que cada participante da oficina de grafite se agarrasse a uma das 24 letras da frase que funciona como cartão de visitas da comunidade: “Quadras: o coração da Aldeota”. Aos poucos, vogais e consoantes foram se cobrindo de tinta de spray ou pincel. Umas, apenas verde, como uma folha de alface. Outras, imitando o arco-íris ou com arabescos estilosos.

Era o último módulo da atividade desenvolvida pelo artista plástico e grafiteiro Gleison Luz, 38 anos, com apoio de uma empresa responsável pela construção de duas torres residenciais ao lado de um enclave popular numa região nobre da Cidade.

Foto: FOTOS: CAMILA DE ALMEIDA
No muro, os jovens grafitaram após oficina com Gleison Luz. FOTOS: CAMILA DE ALMEIDA


Ao cabo de uma hora e meia, uma dezena de crianças e adolescentes havia preenchido o conteúdo das palavras com aquilo que traziam de vida e o que tinham aprendido de janeiro até agora. Levaram para as ruas as lições sob forma de desenho no muro da esquina entre as ruas Beni de Carvalho e Vicente Leite.

Aos 13 anos, Daniel Pereira, por exemplo, compusera a própria pintura em casa mesmo, antes de chegar. Não criaria nada na hora. Acordou cedinho, tomou banho, penteou-se com esmero, pôs camiseta e bermuda e foi pra comunidade. Com pincel, rabiscou na parede um mosaico que lembrava o aglomerado onde morava, um conjunto de 447 casas conjugadas numa das áreas de metro quadrado mais caro de Fortaleza. “Sempre gostei de desenhar, mas fazer isso no muro é diferente. Mais gente pode ver”, disse.

E vê mesmo. Enquanto os meninos desenhavam, o marceneiro Augusto Gomes, 51, que se ufana de ser o criador da frase que agora assumia contornos coloridos, assistia a tudo do outro lado da rua, entre lixas e latas de verniz. “Isso aí levanta a autoestima das pessoas”, falou. Augusto conta que a frase agora pintada nasceu como slogan de campanha ainda nas eleições municipais de 2012, nas quais concorreu como candidato a vereador.

Foto: FOTOS TATIANA FORTES
Artista plástico e grafiteiro Gleison Luz realizou oficina de grafite nas quadras. FOTO TATIANA FORTES


Ao todo, o marceneiro conseguiu 1.200 votos — 800 deles na Comunidade das Quadras, que tem cerca de 4 mil moradores. Foi uma campanha franciscana. Não se elegeu. Augusto diz que, ao descobrir que a sua criação havia ido parar no muro em frente à oficina onde trabalha há mais de três décadas, tomou um susto. “Quando vi, achei estranho. Lá vai... Não sabia se ficava chateado ou se ficava alegre. Mas não custa nada copiar o que é bom.”

Era o que Marcélio Araripe fazia. Copiava. E não tinha vergonha. Na verdade, nem se importava. Carros passavam devagar para ver a meninada em ação numa rua em que, normalmente, os veículos aceleram naquele trecho da comunidade. Na parede, o adolescente desenhava caprichosamente.

Tinha entrado na oficina por acaso, quase a contragosto. Agora, sentia-se 99% grafiteiro. Mas ainda mantinha aquele 1% de esperança de se tornar ator de teatro ou cantor. Ou artista, apenas. Para o jovem de 16 anos, entretanto, o grafite tinha um sabor diferente. “É felicidade. No começo, nem me interessava tanto, mas depois fui gostando. O modo como o professor Luz explicava tudo, a alegria... E o grafite é isso, alegria, felicidade. É também uma forma de largar o preconceito”, ensinava. E isso, com certeza, todo mundo podia copiar. Sem medo.


A cidade-painel


Foto:  FOTOS TATIANA FORTES
Narcélio Grud e o Mara Hope. Colorido por ele, o abandonado passou a ser notado na paisagem. FOTO TATIANA FORTES


O painel se estende por seis metros de largura por 20 de altura, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, Praia de Iracema. Ao meio-dia, Narcélio Grud, o pai da criatura ao fundo, sobe no muro que dá para uma das entradas do equipamento e posa para as fotos. Está suando em bicas. Enquanto espera o fim da sessão, admite: “Minha relação com Fortaleza é de amor e ódio”.

Não é uma boa maneira de começar a desejar feliz aniversário para uma cidade. Porém, assim como os trabalhos de Grud, em que a tinta do grafite rompe um circuito de signos esgotados, a frase tenta repor uma questão: é possível amar uma cidade sem rasurar o seu corpo? Mais: rasurando-a, esse gesto também será amoroso?

Eis o trabalho de Grud: identificar partes desse corpo urbano à margem da atenção coletiva. Casos do Mara Hope e do farol velho, mas também de uma parede como a do centro cultural. O primeiro, carcaça de navio abandonado depois de peregrinar e antes de chegar a conserto. Ficou pelo caminho, encalhado. Com o passar do tempo, foi ganhando camadas de ferrugem enquanto se tornava marco visual e afetivo numa Fortaleza habituada a substituir freneticamente o velho pelo novo.

Colorido por Grud durante o Festival Concreto de 2015, o Mara Hope, sem deixar de ser ruína, ganhou estatuto de obra completa, e o que estava à margem agora pertence ao campo visual. É um olhar inclusivo esse que devolve às coisas, sejam muros ou praças, uma luz que haviam perdido. É também um modo de amar a Cidade.

O mesmo vale para o farol velho. Símbolo de arquitetura e memória, mas abandonado pelo poder público, foi motivo de alvoroço quando, em 2013, em outra edição do Festival Concreto, Grud convidou artistas para grafitá-lo. Logo surgiram as vozes contrárias. O farol é tombado pela Secretaria da Cultura do Estado. Rasurá-lo é desamor. O grafite não fez mais do que vandalizá-lo.

Três anos depois, a despeito da polêmica, o farol permanece esquecido. O gesto inicial, entretanto, permanece. No farol, no muro ou no barco encalhado e comido pela ferrugem, o grafite restituiu, ainda que provisoriamente, uma camada de afeto que custará a se perder. Amar/odiar Fortaleza é ferir-se e sarar permanentemente, num aprendizado sem fim. “Aqui a gente aprende a ter o couro grosso”, diz Grud.

Alegria no muro


Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Grafiteiro Cauê Páscoa de Castro: "Parece tinta, mas não é só tinta. Interferir na vida dos outros, mesmo sem eu estar lá, me inspira. Isso transforma a vida das pessoas". FOTO CAMILA DE ALMEIDA

 

Tem alguma coisa que você gostaria de pintar na sua casa?”, pergunta o grafiteiro Cauê Páscoa de Castro, 30 anos. Tem, sim, responde a moradora. Escreva aí: “Fé”. E Cauê, cujo sobrenome simboliza renascimento e esperança, rabisca a palavra que, ao lado de gratidão, é uma das que mais empresta às paredes de uma cidade que chega aos 290 anos com o desafio de se tornar mais amorosa.

É assim que começa um dia de visita na comunidade do Gengibre, na Cidade 2000. Passando de casa em casa, assuntando as novidades com os moradores e descobrindo que cada pessoa deseja a mesma coisa. “Cores”, responde o artista. E que, feita a pintura, cada pessoa reage quase sempre do mesmo jeito: sorrindo. É assim no Gengibre. É assim na Comunidade das Quadras. Um muro altera a rotina, conclui o jovem.

Ágata Cristini concorda. Um muro faz toda a diferença. Uma das inscritas na oficina de grafite das Quadras, a adolescente de 14 anos afirma que, caso tivesse uma parede inteirinha à sua disposição, não pensaria duas vezes. Pintaria “um desenho que faça a pessoa sorrir”. Qual? Qualquer um, desde que transformasse o estado de espírito de quem passa na rua.

Exatamente como pensa Gleison Luz, 38, e o muro das Quadras. Responsável pela oficina de grafite no local, Luz explica por que uma parede colorida altera a rotina da Cidade — a cor desestabiliza a normalidade do olhar. Logo, estar na rua deixa de ser uma atividade regida pelo automatismo. A cor é um gesto de sensibiliza. É assim que o grafiteiro costuma escolher os espaços que servirão de tela para os trabalhos próprios — são lugares que precisam de outro regime de cor. Um outro gesto. Isso vale “tanto para os locais esquecidos quanto para os que têm pouca atenção”, afirma.

A mesma preocupação está na base dos trabalhos de Cauê em Fortaleza. Se Luz esculpe figuras quase surrealistas, rasgando painéis no labirinto de rotina, Cauê é minimalista. Numa parede sem reboco do Gengibre, por exemplo, satisfaz-se com a palavra “Alegria”. Noutra, “Gratidão”. “Parece tinta, mas não é só tinta. Interferir na vida dos outros, mesmo sem eu estar lá, me inspira. Isso transforma a vida das pessoas.” A ponto de fazê-las olhar o mesmo muro de muitas maneiras diferentes.

 

Celebrações

Um ano todo de abraços

Por Paulo Renato Abreu


Durante a contagem regressiva para o novo ano chegar, a advogada Ana Marta Macêdo, 40, olha o céu esperando as luzes e formas que vão colorir a Praia de Iracema. Quando janeiro dá as caras, ela dança (e despenca) no Mercado dos Pinhões, ao som do bloco Luxo da Aldeia. E, assim, o ano segue, com o calendário ajudando a indicar qual é o próximo abraço que Ana e Fortaleza compartilharão. “O fortalezense não permite que a Cidade se apague com a situação delicada da violência e, por isso, vai às ruas para mostrar a alegria e o brilho das pessoas que realmente amam Fortaleza”, comemora. Para ela, é preciso lembrar que os problemas urbanos não podem ser uma desculpa para que o cidadão seja tão apartado do lugar onde vive.

Além da alegria, a advogada pondera que é preciso ter cuidado com o município que agora celebra 290 anos. “Percebo um pouco de falta de conscientização por parte da população em relação a manter a cidade limpa. Após eventos com o Réveillon, a praia e a rua ficam muito maltratadas com o lixo”, reclama. Ela, que mora no Parque Manibura, sabe que Fortaleza guarda diferentes possibilidade de celebração em cada bairro e durante os 12 meses do ano.

Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
O Mercado dos Pinhões é palco de festas carnavalescas e juninas. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA

Com o estandarte do Bloco das Trepadeiras na mão, a estudante universitária Frida Popp, 20, também encontra nas festas de Pré-Carnaval e o Carnaval forma de se apropriar da Capital. “Parece que o que importa (durante o Ciclo Carnavalesco) é a alegria e euforia que irradiam das pessoas e dos cantos da Cidade. E como seria bom se isso fosse cotidiano”, reflete. Para ela, que mora no bairro Benfica, a preparação para a folia e o Carnaval propriamente dito são uma “experiência atípica” que proporciona à população deixar de lado o medo. “Para mim, hoje não tem Olinda que substitua o Luxo da Aldeia no Mercado dos Pinhões e o Sanatório Geral na Praça da Gentilândia. Não tem o que substitua a energia da embriaguez de corpo e alma nos lugares que nos são cotidianos — e isso é ressignificar esses lugares”, analisa.

Cadeira cativa no Bar da Mocinha durante o período momino e fora dele, o ator e pesquisador Gyl Giffony avalia que a ocupação do espaço público na Capital durante todo o ano é “uma possibilidade autônoma e digna de vida que se dá no encontro”. Gyl, que é também mestre em Memória Social com pesquisa sobre o Centro Cultural Bom Jardim, defende que a sensação que toma a Cidade durante o Carnaval pode ser replicada em outras ações. “Nas manifestações, nas cadeiras nas calçadas, nas rodas de samba, nas expressões culturais”, enumera.

Para Gyl, assim como as festas, eventos culturais que ocupam terminais de ônibus, praças e praias são também peça-chave para provocar esse abraço que o fortalezense dá no lugar onde vive. “Os artistas de rua nos comunicam diretamente que aquele espaço é nosso, que o espaço público é um lugar histórico e afetivo da nossa expressão enquanto coletividade. A rua é espaço de interferências, acordos e cruzamentos, portanto, acumula diversas histórias, referências e sentidos em suas texturas”, elabora. As celebrações que correm a Cidade durante todo o ano, aponta ele, mudam o jeito de olhar Fortaleza. “Isso mostra características tornadas invisíveis em meio ao dia a dia e lança um olhar outro para o espaço corriqueiro e banalizado”.

Arraiá e outras surpresas

 

Foto: FOTOS RODRIGO CARVALHO
Festa junina, Réveillon e procissão são encontros da Cidade com a rua. FOTO RODRIGO CARVALHO


Alavantu e anarriê são expressões que atravessam o linguajar do produtor cultural Marcelo Ricarte, 28, durante todo o ano. As palavras de origem francesa, que são usadas como comando pelos animadores de quadrilha junina, ajudam a traduzir Fortaleza para o jovem integrante do Arraiá do Bairro Ellery. “Muita gente não sabe, mas as quadrilhas acabam sendo pontos de cultura nos bairros da periferia. Muitos jovens de comunidades em Fortaleza encontram nos grupos uma das poucas referências de cultura”, aponta.

Há 18 anos em atividade, a companhia Arraiá do Bairro Ellery agrega gente do Álvaro Weyne, Pirambu, Carlito Pamplona, entre tantos outros bairros. Ricarte, inclusive, mora no Jardim Iracema e encontra no festejo junino um outro caminho para viver a Cidade. “A gente se apresenta no Centro Dragão do Mar, mas antes, os ensaios começam em dezembro e vão até junho”, afirma, destacando que o produto final, a apresentação, é só um dos momentos de um movimento cultural que se espalha pela Cidade o ano todo em quadras de escolas públicas.

Apesar de achar importante a visibilidade ganha nas apresentações em espaços mais centrais de Fortaleza, ele cobra investimentos em festas nos bairros para que a parte da população que não pode se mover até a Praia de Iracema consiga desfrutar das belezas de arraiá. “É uma tradição na história de Fortaleza”, defende.

Quem faz coro a Ricarte é Kiko Sampaio, presidente da União Junina, associação que congrega mais de 100 quadrilhas. “Isso faz parte da identidade do povo fortalezense e tem tudo a ver com a Cidade. É uma grande festa, mas também tem uma importância social e econômica que precisa ser visibilizada”, pondera. Segundo os números da entidade, Fortaleza tem anualmente 130 eventos voltados à tradição junina, envolvendo mais de 35 mil bailarinos e coreógrafos, além de músicos e técnicos. “Espero que nos próximos anos a gente comemora que a festa junina está mais reconhecida como símbolo da Cidade”, projeta Kiko.

Rua pela rua

Admirador da tradição junina e um “frequentador assíduo” de festas em locais públicos da Capital, o estudante universitário Zé Neto, 21, destaca que o fortalezense surpreende nos abraços que dá na Cidade. Ele lembra que mesmo quando não há uma sugestão do calendário, a Capital é festejada de modo espontâneo em áreas como a Rua dos Tabajaras e a Praça da Gentilândia, que se impõem mesmo sem programação oficial. “Temos muitas formas de fugir da rotina. Mesmo sem uma atração, acaba havendo uma programação feita pelas próprias pessoas em seus grupos”, defende. Morador do bairro Rodolfo Teófilo, Zé pondera que as gestões públicas precisam estar atentas às ocupações voluntárias para, assim, potencializar as formas de viver a Cidade. “Fortaleza é muito rica de possibilidades”, agradece.

A fé que envolve a Cidade


Foi uma promessa pela saúde do filho mais velho que aproximou a professora Fátima Furtado, 57, da santa com quem compartilha o nome. Desde então, “há mais de 20 anos”, todo 13 de maio é dia de procissão entre a Igreja do Carmo e a Igreja de Fátima. São quase três quilômetros da Cidade que anualmente são tomados pela fé de quem caminha todo de branco.

“Vou todos os anos e vejo que, a cada ano que passa, mais gente está lá. Tem pessoas que vão para pedir e outros que vão para agradecer”, conta.

Assim com a professora, Fortaleza já incorporou ao seu calendário a celebração para a santa que, segundo a tradição cristã, apareceu para as crianças Lúcia, Francisco e Jacinta em 1917, em Portugal. Por aqui, o evento em torno dela movimenta quase uma centena de agentes de trânsito e ocasiona bloqueios de avenidas e alteração nas linhas de ônibus, tudo para garantir a tranquilidade de quem caminha pela Cidade. “É muito lindo ver esse monte de gente louvando”, emociona-se Fátima.

A filha mais nova dela, a enfermeira Glenda Furtado, 24, segue com a tradição na família. Ela tinha oito anos quando saiu em procissão pela primeira vez. “Todo dia 13 tem as missas na igreja e vou também todo domingo”, conta. Para ela, que também abraça a Cidade em ocasiões como o Pré-Carnaval, o que diferencia a procissão é a solidariedade entre fortalezenses que a fé desperta. “Na (rua) Barão de Aratanha, as senhoras abrem as portas de casa e oferecem água e apoio para quem passa”, conta. A celebração, diz Glenda, ensina para a Cidade a importância de não desistir de ocupar a Capital.

Artigo

Meu Interior

Por Rui Aguiar


Quem como eu chegava em Fortaleza nos anos 1980, era recebido na Cidade com a mais filosófica das perguntas: “Qual é o seu interior?”. Aos poucos fui encontrando outras pessoas que haviam ou continuavam a responder diariamente à mesma pergunta, entendendo com elas que esta cidade é uma federação de municípios. Em vários de seus bairros ainda encontramos o ar e os personagens das cidades do interior do Ceará. Embora mais raras hoje, cadeiras nas calçadas e alguns costumes sertanejos denunciam algo que trouxemos na bagagem quando chegamos aqui.

Este ecletismo cultural faz de Fortaleza uma capital singular, provendo-a de elegância, sotaque e humor próprios, transformando em pretendentes à sua cidadania todos que não nasceram aqui. O meu interior é frecheirinhense, o do meu vizinho é caririense, o de outra vizinha é serrano... A cada passo em suas ruas vamos descortinando pessoas com interiores cheios de Tauá, Jaguaribe, Amontada, Sobral ou de cada um dos 183 interiores que podem se multiplicar em mais de mil, se contarmos os distritos e vilas cearenses com mais de quinhentos habitantes. Todos compartilhamos desejos interiores de vivermos aqui nossos sonhos, oferecendo a quase três milhões de vizinhos o melhor que temos dentro de nós.

Foto: FOTOS TATIANA FORTES
Rui Aguiar é chefe do Escritório do Unicef para o Ceará , Rio Grande do Norte e Piauí. FOTOS TATIANA FORTES

Romântico, não é? Mas a mesma cidade que pergunta e acolhe nosso interior é capaz também de ignorá-lo e segregá-lo em casas e assentamentos urbanos onde falta tudo, até mesmo a identidade. Muitos adolescentes em Fortaleza ignoram suas raízes interioranas e chegam a negar seu pertencimento ao bairro ou comunidade em que moram com medo de serem discriminados ou ouvir um “arre...” que demonstra o espanto de um interlocutor ao saber onde vivem os meninos. A cidade foi ocupada em ondas de expansão do Centro para o Sertão.

Círculos concêntricos traçados a partir da Praça do Ferreira podem ser usados para demarcar cada uma das décadas de ocupação da Cidade desde a grande seca de 1877, quando talvez tenham sido criadas as primeiras zonas de exclusão periféricas, onde concentram-se grandes grupos humanos de baixa renda e baixa escolaridade, integrados à Cidade mais pelo trabalho do que pela cidadania.

Hoje o grande círculo que rodeia a Cidade é representado pela avenida Perimetral, com uma área de expansão que vai daquela avenida ao Anel Viário. De certa forma, a Perimetral abraça Fortaleza. Alguém também poderá dizer que a cinde. No interior do circulo entre Perimetral e Centro, há infraestrutura urbana e identidade; entre a Perimetral e o Anel Viário há aglomerados urbanos que buscam ainda o título de cidadania. É nesta área que mora grande parte das crianças e adolescentes que precisam ser incorporados à vida da Cidade.

Como os que chegaram nos anos 1980 e aqueles que aqui aportaram em cada uma das décadas passadas, estes meninos e meninas não têm dinheiro no bolso, nem parentes importantes e vêm do interior do estado ou dos quase 900 assentamentos urbanos de Fortaleza onde estão os excluídos de hoje. Duzentos e noventa anos depois a pergunta ainda é a mesma. Como sempre, a resposta se atualiza, como se atualiza a desigualdade. Na Fortaleza de hoje, qual é o seu interior?

 

 

Abraçar

Especial Abraçar

4º caderno em comemoração ao aniversário de 290 anos de Fortaleza