Cultura do cancelamento revela as fragilidades de um mundo personalizável

Por Ana Beatriz Caldas Data de publicação 25 de Março de 2020

Nas primeiras cenas de Ultracrepidário, espetáculo da Cia. Teatral Acontece com texto de Neto Sier e direção de Felício da Silva, um grupo de sapateiros se dedica à atividade laboral de forma repetitiva e harmoniosa enquanto conversa sobre suas crenças e certezas acerca do mundo. Em determinado momento, uma das integrantes do corpo cênico, situada no topo de uma arquibancada móvel com ares de tribunal, ao perceber que um dos companheiros não se comporta exatamente como os demais e questiona a validade do que dizem, determina, aos gritos: “Ele não merece estar na nossa manada!”.

 

Em seguida, os demais sapateiros concordam com a gravidade da situação e começam a também entoar palavras de rejeição contra o companheiro. A crítica inicial vira, portanto, ponto de partida para uma série de agressões verbais e físicas, que culmina na completa exclusão do integrante. Ao questionar por que os colegas tomam ações desmedidas contra sua postura, o sapateiro recebe a sentença final. “Você não sabe resolver os problemas da humanidade. A gente sabe”, decreta a sapateira que realizou a denúncia, enquanto a vítima do expurgo é carregada para longe do grupo.

A situação toda acontece em uma espécie de antipalco - o espetáculo cearense, ainda sem data de estreia, ganhará forma em um box de crossfit ao invés de um teatro, propositalmente -, mas poderia ter acontecido no Twitter, Instagram, Facebook ou qualquer outra rede social que permite espaço para troca de ideias. É que, além de se inspirar em obras de Shakespeare e Bauman, os autores usaram a internet como campo de pesquisa para a criação do espetáculo, cujo mote principal é a cultura do cancelamento.

Foto: (Foto: Priscila Smiths/Especial para O POVO)
Cena do espetáculo Ultracrepidário (Foto: Priscila Smiths/Especial para O POVO)

Eleita a expressão de 2019 pelo dicionário Macquarie, o termo cultura do cancelamento se refere à tendência de boicotar pessoas - muitas vezes famosas, e comumente através das redes sociais - por motivos que vão de posturas preconceituosas dos “cancelados”, como propagação de discurso de ódio e machismo, a motivos menores e aparentemente inofensivos, como o compartilhamento de opiniões, fotos ou explanação de gostos pessoais dos “expurgados”. 

Essa “categoria” de cancelamento torna possível, atualmente, a contestação e problematização de praticamente qualquer conteúdo pelo autoimposto tribunal da internet. Exemplo recente é a enxurrada de comentários negativos que a cantora carioca Letrux recebeu no Twitter, no início de fevereiro deste ano, após afirmar que se emocionava ao ouvir Bach quando criança. Acusada de elitista, a cantora comunicou aos fãs a decisão de se afastar da rede social por tempo indeterminado, devido às reações desproporcionais que têm recebido e observado com frequência no site. 

Foto: (Foto: Ana Alexandrino)
Cantora Letrux foi acusada de ser elitista (Foto: Ana Alexandrino)
 

Para Alessandra Oliveira, professora de Comunicação e Cultura Digital da Unifor (Universidade de Fortaleza), a cultura do cancelamento é produto das mudanças ocasionadas pelo uso contínuo e frequente da internet, como a criação de um novo ambiente - o ciberespaço. "A gente já tinha essa necessidade de rápido descarte, de manter laços de maneira frágil, e a internet tornou tudo muito próximo, muito perto.

Essa falta de distanciamento e a própria dinâmica das redes sociais permitem que exista um comportamento desrespeitoso com o outro", explica.

Redes como o Twitter têm sido palco para diversos “linchamentos” virtuais especialmente após as eleições presidenciais de 2018, quando se tornaram espaço para debates rápidos, agressivos e extremamente polarizados ocasionados pela disputa entre partidos de direita e esquerda. Desde então, aponta Alessandra, o ambiente digital tem ficado cada vez mais violento, o que traz consequências principalmente para os usuários mais jovens.

"A geração dos nativos digitais é a mais afetada nesse sentido, porque ela fica mais tempo online e tem a internet como uma questão fundamental na criação e manutenção de relações sociais. Nas redes, tudo é passageiro, mas muito intenso; quando você é ‘expulso’ do seu lugar predileto, pode haver uma sensação de que não tem mais jeito, que não há como escapar dessa chuva de ódio, que você não pertence mais. Quem participa desse comportamento de manada de ‘cancelar’ o outro nem pensa sobre isso, porque se sente apenas mais um entre muitos, e portanto, não acha que possui responsabilidade sobre aquilo", pontua. 

Vigiar a todo o tempo - e punir ainda mais

Por Ana Beatriz Caldas

Certamente, um dos motivos pelos quais a edição atual do programa Big Brother Brasil tem batido recordes de audiência e movimentado tanto as redes sociais é a formação de elenco do reality, pela primeira vez composto por um mix de influenciadores famosos e gente “comum”. Mais do que isso, desde as primeiras semanas de exibição, nota-se uma separação simbólica entre os ditos cancelados - homens machistas, com atitudes problemáticas (e até criminosas), e mulheres que os apoiavam de algum modo - e as “fadas sensatas” - grupo de integrantes conscientes, com pensamentos progressistas que visam a igualdade entre todos.

Com o passar das semanas, no entanto, a divisão moral realizada pelo público em relação aos participantes tornou-se cada vez mais fluída: a cada dia, brothers diferentes eram considerados bons ou maus, sendo vários deles cancelados, a exemplo da influencer Bianca Andrade, a Boca Rosa, considerada conivente com os jogadores machistas da casa. Além da rejeição do público e da perda do grande prêmio, as ações de Bianca a fizeram perder milhares de seguidores e parcerias comerciais - ainda que sua marca de maquiagem tenha faturado três vezes mais do que o usual após sua saída do programa, mesmo durante o ápice do cancelamento. 

Mesmo com a maior parte dos integrantes cancelados fora da casa, novas questões morais têm surgido e mantido o clamor por boicote vivo no BBB 20. Acusações que vão de arrogância e falsidade a racismo têm sido frequentemente designadas aos jogadores que sobraram através de comentários nas redes, e, diariamente, o fluxo de participantes que pertence ao lado “bom” é alterado. 

De acordo com a professora Alessandra, essa dinâmica não difere da política de cancelamento virtual para usuários comuns, sem fama ou fã-clube nas redes. "Nas redes sociais, acabamos gerando conteúdo acerca de nós mesmos com muita frequência e, com isso, podemos ser 'vigiados' o tempo inteiro, mesmo que ainda haja algum filtro”, completa. 

Foto: (Foto: André Nunez)
A blogueira Bianca Andrade, "cancelada" no BBB (Foto: André Nunez)
 

Agressões verbais na internet podem evoluir para ameaças e alterar rotina de vítimas

Por Ana Beatriz Caldas

O cancelamento do produtor cultural e DJ Márcio Peixoto ocorreu em junho de 2019 e deu origem a uma série de problemas fora das telas. Após declarar que não iria tocar funk em uma festa por considerar que os sucessos do ritmo, à época, possuíam conotações "misóginas, machistas e LGBTfóbicas", Márcio foi acusado de racismo e classismo por outros produtores em posts no Facebook. Depois, as acusações e xingamentos migraram para o Instagram e o Twitter e, a partir disso, ele teve sua participação como DJ cancelada na festa que tocaria ainda naquele mês, e acompanhou diversos pedidos de boicote a organizadores de outros eventos onde trabalharia também pela internet.

“As proprietárias do bar onde iria acontecer a festa ficaram receosas, durante todo o processo, de contrariar de alguma forma os acusadores e serem 'canceladas' por associação, então acabaram aderindo de forma totalmente acrítica à narrativa”, conta. Amigo de duas pessoas que também haviam sido canceladas à época, Márcio acabou tendo outras acusações acopladas à primeira, segundo ele, por pessoas que “aproveitaram o linchamento”. 

A punição virtual, que durou cerca de três dias, causou tantos danos que Márcio teve medo de frequentar o bairro onde estudava por semanas, pois sabia que muitos dos agressores também o frequentavam. Durante o período, recebeu ameaças de agressão física e psicológica - inclusive com o aviso de que havia um vídeo íntimo seu circulando nas redes sociais e a ameaça de ser exposto sexualmente. 

"A sensação de impotência e de injustiça é estressante, especialmente por entender que a lógica de um 'cancelamento' não é o diálogo, não é a conversa, é a punição e a imposição de um processo disciplinar por meio do uso da violência simbólica e da humilhação”, lamenta.

(Foto: Reprodução)

Após os ataques, o produtor cultural reuniu provas e chegou a realizar boletins de ocorrência, com o intuito de processar os autores por calúnia e difamação. Diante da burocracia que envolvem casos cibernéticos e com medo de novos ataques, porém, acabou desistindo. Hoje em dia, quase um ano depois, afirma não se esquecer das acusações. 

(Foto: Reprodução)
 

"Na época, eu evitei me pronunciar nas redes, e acho que essa é uma boa estratégia porque na dinâmica do ódio há sempre um 'novo cancelamento' e, consequentemente, você se torna passado. Os danos morais, no entanto, permanecem. Vidas são destruídas com esse tipo de prática, especialmente diante de acusações graves e criminosas como esta", ressalta. 

(Foto: Reprodução)
 

(Foto: Reprodução)
 

Performance do cancelamento revela novos paradigmas sociais

Por Ana Beatriz Caldas

Em grande parte dos casos, é seguro afirmar que a premissa do cancelamento é a mesma da máxima “bandido bom é bandido morto”, proferida à exaustão por incrédulos quanto à possibilidade de ressocialização de pessoas que cometeram delitos. No entanto, muito mais do que uma prática que busca o apagamento do indivíduo ao invés da resolução do problema, o ato de cancelar revela efeitos graves da alta personalização de conteúdos gerada pela internet e pelo conceito on demand.

"Se tudo é mercantilizável, tudo é descartável. Se não gosto mais do que estou consumindo, eu troco por outra coisa. O cruel da cultura do cancelamento é que estamos falando de pessoas, e pessoas podem ser ambivalentes, entrar em contradição. Lembra um pouco a história d'O Alienista, em que o personagem principal interna todos da cidade, até sobrar apenas ele", explica Yasmin Curzi, doutoranda em Sociologia e pesquisadora do Centro de Tecnologia da FGV Direito Rio.

Para a pesquisadora, a prática do cancelamento ou linchamento virtual é comumente colocada no mesmo guarda-chuva de situações mais graves, como a campanha #primeiroassedio, organizada pelo coletivo feminista Think Olga, mas é possível - e necessário - pontuar as diferenças práticas entre as denúncias e os cancelamentos.

"O cancelamento de fato não acho que tenha algo de positivo. As pessoas tentam colocar casos como essa campanha no guarda-chuva de 'cultura do cancelamento' justamente para minimizar os fatos que essas pessoas passaram nas suas vidas. Nesses casos, não estamos falando de cancelamento, estamos falando de pessoas que cometeram crimes e saíram impunes durante muito tempo. Esse tipo de denúncia não somente é positivo, como também é totalmente desejável", explica. 

O que fazer quando se é cancelado na internet?

Por Ana Beatriz Caldas

Se você costuma fazer stories sobre o que acontece no mundo quando loga no Instagram, compartilha conteúdo sobre política no Facebook ou troca ideias com amigos, colegas e desconhecidos no Twitter, suas chances de ser "cancelado" eventualmente são grandes, ainda que você não seja um artista, político ou influenciador famoso. Mas o que fazer se você for cancelado ou perceber que algum ente querido pode estar sofrendo agressões na internet?

De acordo com Yasmin Curzi, ofensas proferidas contra os cancelados podem ser tratadas através dos chamados crimes contra a honra. “É necessário observar caso a caso, mas se houver calúnia (um fato falsamente atribuído à vítima do cancelamento), difamação (algo que ofenda a reputação da vítima) ou injúria (alguma ofensa à dignidade da vítima), o judiciário pode ser acionado para que essa pessoa tenha seu direito restabelecido. Também é possível solicitar a remoção das postagens através da moderação de conteúdo das próprias plataformas digitais, uma opção que costuma ser menos demorada e burocrática”, lembra a pesquisadora. 

Outra questão importante a ser observada em um caso de cancelamento é a possibilidade de efeitos psicológicos da agressão. A coordenadora do Programa de Ações Integradas pela Vida da Universidade Federal do Ceará (PÃIM/UFC), Michelle Steiner, ressalta que a supressão pública de uma pessoa pode se tornar um ato de violência e, como tal, ocasionar traumas profundos que impactam diariamente no cotidiano da vítima.

"É possível que algumas das pessoas canceladas passem a desenvolver dores psicossomáticas em decorrência de sentimentos autodepreciativos, além de alterações nos padrões de alimentação, sono, concentração e atenção. Nos casos mais extremos, orienta-se que a família fique atenta a possíveis dificuldades de comunicação, alterações abruptas de comportamentos ou a um discurso verbal mais sombrio, pois não somos peças que podem ser substituídas, trocadas ou canceladas sem impactos profundos em nosso sentido humanitário”, aponta. 

Para acompanhar:

Programa de Ações Integradas pela Vida (PÃIM/UFC): @paim_ufc

Para ler:

Em Humilhado - Como a era da internet mudou o julgamento público, o jornalista Jon Ronson fala de maneira bem humorada sobre o impacto das redes sociais no ato de tentar envergonhar pessoas como punição. Também é possível conferir, no YouTube, a palestra How one tweet can ruin your life, concedida por Ronson no TEDTalks 

Para ouvir:

Tom Zé - Tribunal do Feicebuqui

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