O outro lado do boi

Entenda o que vem mudando no mercado de carnes no Brasil e, em especial, no Ceará. Descobriu-se que os cortes da parte dianteira do boi têm seu valor e que estão na categoria de carnes nobres

Por Gabriel Barbosa, Larissa Viegas, Lia Rodrigues e Lua Santos (Textos) Por Camila de Almeida (Fotos)

A relação do homem com a carne não é de hoje. Estudos mostram que o produto está no cardápio há mais de dois milhões de anos! Em uma relação tão duradoura, é comum acontecer descobertas, mudanças e adaptações. Muito mais do que matar a fome, o ato de comer envolve também questões culturais, históricas, econômicas, ambientais e fisiológicas.

No Brasil, mesmo em um período de crise - com escassez de gado bovino para abate e recuo no consumo em 27 quilos de carne bovina per capita em 2016 (em 2015, o consumo foi de 30 quilos per capita), segundo dados da MB Agro -, há sinais de retomada do mercado, com recomposição do rebanho nacional e crescimento dos abates. Segundo Maurício Nogueira, da Agroconsult, estima-se que a produção de carne bovina no País crescerá de 7% a 11% em 2017, estimulando, assim, o consumo. Já o aumento previsto pela MB Agro é de 3%, algo entre 250 mil e 300 mil toneladas a mais de produção em 2017.

A importação, em paralelo, se mantém, mas com foco em um outro público. “Para você ter uma ideia do valor do mercado de carne de qualidade: o Brasil importa 1.100 toneladas de cortes especiais dos Estados Unidos e da Austrália. Isso significa entre 30 mil e 38 mil bois por mês”, afirma Antonio Carmadelli, da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).

Nos últimos anos, o Ceará passou também a integrar essa segunda estatística, ligada ao perfil do produto importado, graças às novas tendências, juntamente com novos paladares e uma nova cultura. A conhecida carne de primeira, localizada na parte traseira do boi, era a preferência do brasileiro. A suculência e a gordura de tais peças, ao contrário das “dianteiras”, garantiam esse gosto. Agora, fala-se em T-bone, bife de Chorizo e Ribeye. Quer conhecer esses cortes nobres? Acompanhe nossa apuração sobre as carnes que chegaram para fazer a cabeça (e o paladar) dos cearenses.

A nobreza da carne

A tendência do consumo de cortes mais sofisticados ultrapassou o conceito de açougue. A casa Cort Carnes Nobres, por exemplo, nasceu em Fortaleza em julho de 2016, com o intuito de proporcionar aos seus clientes sabores que antes ficavam restritos ao eixo Rio-São Paulo, além dos países europeus. “Isso me fez ver a necessidade de abrir uma casa com produtos de primeira linha, que tivessem um trabalho genético, uma manipulação digna do produto oferecido. Assim nasceu o Cort, com a intenção de oferecer ao mercado local a verdadeira carne premium”, afirma Raul Lira, proprietário do local.

Carne de primeira e carne de segunda
O consumo do brasileiro, culturalmente, centraliza-se na parte traseira do boi, como a picanha, a alcatra, e a maminha, considerados os cortes mais macios extraídos do boi de produção nacional. A parte dianteira, dita menos nobre por ser mais rígida, como o acém e o peito, considerados como “carne de segunda”, costuma ser utilizada para preparos caseiros, como carnes de longo cozimento, diferente da “carne de primeira”, que por sua maciez e suculência não demanda um preparo mais demorado, podendo ser grelhada ou servida como churrasco.

Para Lucas Fernandes, sócio-proprietário do Butcher’s 746, aberto em Fortaleza em dezembro de 2016, os cortes do traseiro “são carnes que somos acostumados a comer. Sempre dividimos entre carne de primeira e de segunda, o que quando você começa a trabalhar com bois mais nobres, se vê que não existe. Existe boi de primeira e boi de segunda, e do primeiro, você consegue aproveitar todos os pedaços de carne”.

Para que seja possível fazer esse aproveitamento, é preciso trabalhar com bois de raça, que são mais gordos e criados em confinamento, com alimentação e cuidados especiais que lhe conferem “outro tipo de maciez e de marmoreio, o que acaba resultando em uma outra experiência de comer carne”, afirma Fernandes.

Mas, afinal, o que são carnes nobres?
“Começa pela raça. É muito difícil alcançar esse status trabalhando com um animal que não tenha tanta [qualidade] genética. É uma ciência para chegar nisso. São cruzamentos de raça, toda uma questão de ter um banco de dados sobre que animal cruzado com que animal vai dar um produto final diferente. Não medimos esforços para deixar esse produto da forma mais adequada para o consumidor. Temos um laço bem estreito com quem nos fornece e isso faz com que o produto que chega até a nossa loja seja um produto realmente selecionado”, explica Lira.

Quem também aposta nesse novo conceito é o Meat N’ Beer Boutique, inaugurado em novembro de 2016, que une duas paixões do brasileiro: a carne e a cerveja. Com grande variedade de rótulos de ambos os produtos prontos para levar para casa, a loja aposta não só em cortes tradicionais, mas também nos premiuns. Dentre as opções de carne nacionais estão os da raça Nelore enquanto as internacionais se dividem entre Angus (de origem escocesa) e Wagyu (japonês), além de suas derivações, que são cruzamentos. “A Red Angus é 25% Angus e 75% Nelore. A Black Angus é 75% Angus e 25% Nelore”, explica Daniel Timbó, sócio e proprietário da empresa.

Para os que preferem experimentar tais cortes já prontos para consumo, o Butcher’s 746 possui em seu cardápio pratos com preparos exclusivos. O restaurante também dá preferência pelas raças européias e japonesas. Para Lucas Fernandes, sócio-proprietário da casa, a ideia é apostar em uma nova cultura. “Quando eu trago para cá um estilo diferente de servir carne, na verdade não é algo inovador. Apenas trouxe algo que fora é comum e aqui a gente não é acostumado.”

Açougue X boutique

Há tempos, a tarefa de ir ao açougue para comprar carne ganhou uma "nova cara". Esqueça as lojas com peças penduradas por ganchos, com cheiro forte e atendentes com aventais brancos sujos de sangue. O consumidor aumentou sua exigência e o comércio tem a necessidade de acompanhar esse movimento, oferecendo serviços cada vez mais diferenciados. Surge o mercado de carnes premium no Brasil, com boutiques.

Essas lojas, normalmente comandadas por especialistas em carnes, trazem uma experiência diferente para a compra do alimento. São estabelecimentos que comercializam cortes extraídos de bois de raças importadas. São locais climatizados e planejados por arquitetos, com atendimento de qualidade e oferta de outros produtos, como temperos especiais, molhos, bebidas e artigos para o preparo da carne.

Os favoritos
Dos quatro cantos do mundo para as cozinhas e churrasqueiras brasileiras, os cortes nobres têm se popularizado por fatores como suculência, marmoreio (ver quadro), maciez e, claro, sabor. Em formato de "T", o T-bone é composto por uma porção de filé mignon e outra de contrafilé. Segundo Fernandes, "é uma carne bastante comum, mas que há cinco anos você não via [no Brasil]."
Outros cortes citados pelo empresário que não eram vistos são o Porterhouse, muito parecido com o T-bone, mas com uma porção de filé mignon e contrafilé maior, e o Shoulder, parte do ombro do boi. Bife Ancho, Chorizo, Prime Rib (o corte mais nobre da costela), Short Rib (corte do dianteiro com osso, extraído entre a primeira e a quinta costela) são outras "estrelas".

Como mármore
Conforme explica Timbó, uma das principais características da carne nobre é o seu nível de marmoreio, um efeito proporcionado por um processo químico em que o animal produz uma gordura que fica entremeada na carne e bastante presente nos bois da raça Wagyu. "Ela sofre um processo que é o mesmo do azeite. Essa gordura é uma gordura boa, não é igual ao LDL [low-density fat – gordura de baixa densidade], que é uma gordura ruim, é um HDL [High-density fat – gordura de alta densidade]", diz.

O nível de marmoreio varia entre 0 e 12. “O 12 é uma carne que vai custar R$ 2,5 mil, R$ 3 mil, o quilo. E são raríssimos os marmoreios que conseguimos tirar 12 no Brasil. No Japão, eles chegam bem facilmente", completa. Tal fator se dá por conta da criação do boi, o que envolve desde a alimentação até o clima.

No Brasil, o Wagyu chegou há cerca de 15 anos, mas foram nos últimos anos que o "churrasco gourmet" se popularizou. "Quando eles mandam pra cá [Fortaleza], sempre perguntam: 'Mas vocês realmente vendem aí?' 'Acho que é porque fica com aquele preconceito contra o nordestino", diz Timbó. Hoje, o acesso ao corte é mais fácil, mas ainda raro.

A arte de cozinhar a carne com fogo

Tamanho cuidado na criação e seleção de bois para o abate deve refletir-se na hora do preparo. Afinal, seria quase um pecado preparar um corte de qualquer carne nobre de forma desleixada. E a opinião entre todos é unânime: a melhor forma de obter o máximo de sabor de um corte é através do churrasco. “Quando você trabalha uma carne nobre em um cozido, você já tem uma verdura, uma coisa que começa a dividir o sabor e mesmo o status do prato. Se trabalha com molho, já tem um queijo que já rouba um pouco do sabor e do status. O prato vai ficar bom? Vai. Mas, em um churrasco, é a forma mais crua, por assim dizer, de obter o sabor dela e do sal”, explica Raul, do Cort Carnes Nobres.

Segundo Daniel Timbó, do Meet N’ Beer, para quem está começando a se aventurar no mundo das carnes premium, ele busca oferecer qualidade e preço, o que é possível de obter a partir de um bom churrasco de Angus “Esse boi é um boi tão nobre, tão bom, que é quase impossível não acertar um ponto que seja “comível.”

Escolhido o corte, é hora de preparar. E aqui também é importante saber escolher o método. “Aqui [no Butcher’s], eu tenho duas maneiras: tenho a salamandra, que é como se fosse um forno, com uma chama de cima pra baixo, e tenho a grelha. Mas em casa, você consegue fazer uma carne dessas em uma frigideira grossa e funda. A grelha é o melhor jeito de fazer e quando você faz no carvão, fica bacana. Eu, particularmente, gosto [do uso do carvão] pelo sabor defumado”, destaca Lucas Fernandes.

Para um bom churrasco
Fazer churrasco não tem regras, mas engana-se quem pensa que, para isso, basta colocar fogo no carvão e a carne em cima do fogo. “Pôr uma carne na labareda é um crime. A carne vai ficar com um gosto ruim e vai ficar seca. O ideal é você fazer um braseiro bem forte, não pode economizar. Existe um cálculo que fala que para cada quilo de carne tem que ter um quilo a um quilo e meio de carvão. Quanto mais carvão você tiver para fazer esse fogo e jogar na churrasqueira como brasa, melhor. A altura depende do ponto que vai querer. Fogo demais prejudica, e de menos também”, destaca Raul Lira. Preparado o fogo, é hora de preparar a carne. Os especialistas ressaltam: o melhor é utilizar apenas sal ou, melhor ainda, a flor de sal. E o mais importante é salgar apenas no momento em que for colocar a carne para assar.

Mas isso também não é uma regra inviolável. “Tempero é muito pessoal”, ressalta Lucas Fernandes. Daniel Timbó compartilha da opinião. “Esse também não é o único processo correto, não existe só uma maneira de fazer churrasco. Tem gente que salga antes, faz crosta de pimenta, coloca ervas finas.”

E para não ter como errar na hora de fazer o churrasco, três especialistas em carnes dão várias dicas que vão desde como preparar o fogo até que cervejas harmonizam com os tipos de carnes.

Curiosidades e dicas do churrasco

Pode não parecer, mas preparar um bom churrasco não é nem um bicho de sete cabeças. Confira algumas dicas e curiosidades e surpreenda a todos:

 

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