Adoção Tardia

Amor e famália livres de idade

Em um cenário nacional e local onde crianças e adolescentes têm dificuldade de conseguir um novo lar, a adoção tardia, com a data de 25 de maio como apoio ao tema, é ferramenta capaz de levá-los a uma família, garantindo a chance de um desenvolvimento pleno

Por Hamlet Oliveira Por Camila de Almeida (Fotos)

São 102 anos de história oficial. Registrado pela primeira vez no Brasil em 1916, o processo de adoção nacional passou por modificações relevantes na trajetória de um século que percorreu. Se, hoje, a idade mínima para entrar no processo para adotar é de 18 anos, durante a primeira metade do século XX só era possível cogitar adoção legal quem estivesse acima dos 50. Além disso, foi apenas na Constituição Federal de 1988, em vigência, que foram dados aos filhos adotivos os mesmos direitos legais dos biológicos. Com um processo mais seguro, entretanto lento, o País caminha para facilitar o acesso dos pretendentes às crianças e jovens na fila de adoção.

Por definição, o ato de adotar se dá pela afiliação de um adulto a um jovem, sem que haja ligação natural entre eles. Por lei, no Brasil, é possível adotar uma pessoa de até 18 anos, desde que haja diferença mínima de 16 anos entre as partes. Entre os milhares de jovens que vivem nos acolhimentos em todos os estados brasileiros, a maioria é de crianças e adolescentes acima dos três anos de idade. Caso o processo de afiliação ocorra a partir dessa idade, a adoção passa a ser considerada tardia, que tem no dia 25 de maio uma grande bandeira: O Dia Nacional da Adoção.

Pelo fato da adoção tardia fugir do perfil mais buscado pelos pretendentes, esse tipo de adoção se enquadra na definição de “adoções necessárias”, que englobam a vinculação de irmãos, crianças com deficiências ou doenças crônicas, e as inter-raciais.

Aprovado em 1990, por meio da lei n. 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é considerado também um marco para a criação e a manutenção dos direitos básicos dos jovens brasileiros. Nos 267 artigos que o compõem, se explicita os direitos que tanto Estado quanto família devem garantir à população mais nova. Nesse aspecto, caso a família biológica não seja capaz de prover o mínimo para a vida de uma pessoa, ocorre o recolhimento da criança para acolhimentos municipais ou estaduais. Dessa forma, o principal trabalho do poder público é o de restituir aquele indivíduo ao seu lar de nascença. Somente em último caso é que a adoção é considerada.

Adoção moderna
Já o processo moderno de adoção surgiu em 2008, com a implantação do Cadastro Nacional de Adoção (CNA). A plataforma de cadastro busca, por meio digital, facilitar o acesso dos pretendentes — que querem adotar — às crianças disponíveis em todo o País. Integrado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ferramenta possibilita acesso aos dados brutos de quantidades de crianças em cada Estado, como também dos pretendentes, raça, faixa etária e outros aspectos. A partir dessas informações, ocorre o cruzamento de dados para agilizar a busca dos pretendentes.

No relatório público disponível no CNA, cujas informações são referentes ao Brasil, é possível ver o perfil de interesse dos pretendentes. No País, são 43.565 cadastrados para adotar. Desses, 20.945 aceitam crianças até os três anos. De quatro aos sete anos, o valor é de 19.034. Dos oito anos em diante, apenas 3.429 demonstram interesse. No âmbito cearense, existem 661 candidatos cadastrados, sendo 288 em Fortaleza. De acordo com o CNA, o número de pretendentes que aceitam crianças acima dos sete anos é de apenas 35 em todo o Ceará.

Até o dia 16 de maio de 2018, 263 crianças constavam como cadastradas no Ceará por meio da ferramenta, o que representa 3,01% do total nacional. De acordo com o promotor de justiça do Cadastro em Fortaleza Dairton Oliveira, a chegada do sistema trouxe mais critério para saber quem estava adotando. “Antes, quem chegasse primeiro no abrigo, levava. Quem tinha prestígio adotava, quem não tinha, não adotava”, conta. Até então, diz Dairton, a prática de “levar para casa e criar” era muito popular, algo que poderia resultar no uso das crianças para trabalhos domésticos.

Foto: Infografia: Isac Bernardo

 

Os acolhidos
Assim como no CNA, é possível ter acesso aos dados dos acolhimentos em todo o Brasil por meio do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), criado em 2009. No Brasil, o número é de 47.950. No Ceará, esse valor é de 1.243, de acordo com relatório gerado em maio deste ano. Os dados, no entanto, podem não corresponder à realidade. Pela falta de registro de alguns jovens, bem como de fugas e saídas, o valor atualizado, de acordo com Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e Juventude (CAOPIJ), vinculado ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), é de 831 nas 59 unidades de acolhimento disponíveis no Estado. A maioria está em Fortaleza, que soma 392 jovens nessa condição.

O equipamento responsável no Governo do Estado do Ceará pelo trabalho nos acolhimentos é a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), por meio da Coordenadoria de Proteção Social Especial. Conforme a pasta, 50 crianças e adolescentes retornaram às famílias de origem em 2017. Em todo o Ceará, a STDS cuida de 323 vagas nos acolhimentos, em parceria de cogestão com as entidades Instituto de Assistência e Proteção Social (IAPS), Associação dos Moradores do Conjunto Tancredo Neves (AMCTN) e Associação Shalom.

No âmbito municipal, a responsabilidade é da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), que, ao todo, dispõe de 80 vagas para acolhimento dos jovens, distribuídos entre quatro locais. De acordo com nota da Secretaria, os acolhimentos possuem quartos, brinquedotecas, cozinhas, refeitórios, área externa e sala. Até o fechamento da reportagem, a SDHDS havia informado que, nesses espaços, 72 vagas encontravam-se preenchidas. Dessas, 71 crianças estão na faixa etária entre três e 17 anos. A secretaria ressalta que nem todos estão disponíveis para adoção pelo fato de a Destituição do Poder Familiar (DPF) não ter sido realizada.

Conceito abrigo
De acordo com Luciano Tonet, promotor da 6ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude do Ceará, o termo “abrigos” caiu em desuso, com “acolhimentos” sendo a melhor forma de se referir aos espaços que recebem jovens que não podem retornar aos lares de origem. Sobre o tempo de estadia das crianças e adolescentes, o promotor explica que “o tempo médio hoje é de três anos. O que acontece é que, com quanto mais idade se entra no acolhimento, mais demora para sair dele. No caso de uma criança acolhida com 12 anos, por exemplo, é muito difícil que queiram adotá-la. As pessoas querem crianças de até seis anos”, fala.

Foto: Infografia: Isac Bernardo

 

Evolução das adoções no Estado
Como mostra o quadro acima, o número de adoções no Ceará teve um crescimento considerável a partir de 2015. Questionado, Dairton ressalta que o aumento ocorreu com a capacitação dada aos profissionais para acompanharem os processos de adoção. Entre as ações destacadas pelo promotor está a interiorização das adoções, no sentido de levar conhecimento para outros municípios do Ceará. "Percebemos que o conselheiro tutelar, o juiz, que está na comarca trabalhando, não faz o sistema funcionar porque não tem instrumento e ele não recebeu capacitação. Desde 2016, estamos levando essa capacitação para o interior [do Estado]."

Outro motivo para que as adoções tardias se desenvolvam é a atuação dos grupos de apoio à adoção. Um dos motes, diz o promotor, é o de “você não precisa esperar um filho, precisa conhecer um filho”. Contudo, um dos entraves para isso ocorre pela demora no processo de DPF. Como o trabalho prioritário do Estado é o retornar os jovens aos lares de origem, a estadia nos acolhimentos acaba se estendendo, evitando que eles sejam cadastrados no CNA.

 

Convívio saudável durante a espera

Por Ester Coelho

O acolhimento familiar é uma modalidade prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que permite a uma criança de até 18 anos, em regime de acolhimento institucional, participar de um núcleo familiar como alternativa à estadia em abrigos. Quando afastadas temporariamente de sua família de origem como medida de proteção e à espera de retornar ao lar ou ter um encaminhamento judicial definido, o acolhimento familiar é uma opção. Famílias interessadas em receber essas crianças podem assim fazer por um período pré-determinado. Só não podem estar inscritas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), já que o processo não consiste em adoção definitiva.

De acordo com o ECA, a modalidade é prioritária, pois permite convívio familiar e acompanhamento de perto da criança. Para a professora de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Soleane Bezerra, o processo permite pensar em uma “desinstitucionalização” da criança, que passa pela readaptação à realidade familiar, que não é possível nos abrigos. "São várias crianças no mesmo quarto [nos abrigos], há somente um cuidador para muitas. Por mais que a instituição queira se aproximar, não consegue."

A psicóloga Lidia Weber, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autora de diversos livros sobre adoção, também reforça que os vínculos afetivos desenvolvidos no acolhimento familiar são bons. Ela explica que, apesar de a criança ter que se distanciar da família que a acolhe, os laços criados permanecem e podem ser levados pela criança ao ser adotada. "A família acolhedora passa a fazer parte da sua família extensa. O pior é não ter vínculos afetivos como ocorre quando se está em uma grande instituição."

Outros países, como os Estados Unidos, já aplicam o acolhimento familiar. Com o termo em inglês foster care, o processo lá fora permite que crianças saiam de abrigos institucionais para a casa de pessoas que queiram recepcioná-las, recebendo um auxílio mensal do governo para cobrir os cuidados necessários.

No Brasil, o acolhimento já faz sucesso no Sul do país, especificamente, em Cascavel, Paraná. Com o programa Família Acolhedora, o processo chegou até mesmo ao Ceará. O município de Eusébio, na região metropolitana de Fortaleza - a partir da lei municipal  nº 1.430, aprovada no final de 2016 – instalou o programa por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS). Desde o início de 2017, a ação capacita famílias para receber crianças. Atualmente, três famílias estão inscritas e o processo jurídico para o primeiro acolhimento está em andamento.

A coordenadora da iniciativa no município, Katiana Moura, explica que quando a criança é afastada judicialmente da família de origem, esta também é acompanhada por uma equipe multidisciplinar de psicólogos e assistentes sociais. "Isso acontece porque a intenção é que a criança retorne [para a família de origem]. Se o juiz entender que isso ainda não é possível, a criança será encaminhada ou para adoção ou para outra família."

No Ceará, ainda não existe lei que regulamente a modalidade. Luciano Tonet, promotor de justiça da 6ª Promotoria da Infância e da Juventude, afirma que, desde 2014, existe uma demanda para criação de lei sobre o tema e um projeto já está em trâmite. A expectativa é de que até o final de 2018 o tema avance mais. Em março de 2018, 13 municípios do interior do Estado assinaram uma cooperação técnica visando a regionalização do Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. De acordo com a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) estadual, uma vez que a lei seja aprovada, o acordo prevê atendimento a 40 crianças na modalidade de Família Acolhedora. A intenção é de que a medida seja executada nos municípios de Araripe, Guaramiranga e Barroquinha, servindo desde essas localidades a mais 11 municípios.

Para garantir direitos

Por Lia Rodrigues

No Brasil, o processo de adoção é regido pelo ECA (Lei 8069/1990) e pela Lei Nacional da Adoção (Lei 12010/2009). Podem habilitar-se à adoção os maiores de 18 anos, devendo ser respeitada a diferença de 16 anos entre o adotante e o adotado. Pessoas solteiras, viúvas ou que vivem em união estável também podem adotar uma criança ou adolescente. A adoção por casais homoafetivos ainda não está estabelecida em nenhuma lei, mas já foram proferidas, pelo Poder Judiciário, decisões favoráveis nesse sentido.

De acordo com a defensora pública do Núcleo de Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude (Nadij) Ana Cristina Teixeira, o tempo do processo depende do perfil escolhido. "Acontecem as visitas, supervisionadas pela equipe do acolhimento e pela equipe multidisciplinar do Fórum. É feito um relatório para verificar se realmente é aconselhável a adoção da criança por aqueles pretendentes", explica.

Com o parecer favorável e a tramitação do processo de adoção, tem início o estágio de convivência, quando o relacionamento entre as duas partes é firmado e, se tudo correr bem, o processo tem continuidade e a guarda provisória pode ser solicitada enquanto a família aguarda o fim da ação. É nesse período que pode haver a desistência, pois, após a sentença ser proferida, a adoção é irrevogável.

Entraves para a adoção
De acordo com Ana Cristina, não é o processo de adoção em si que demora, mas sim o tempo que leva para que a criança chegue à disponibilidade no CNA, por meio da Destituição do Poder Familiar (DPF). "Nem pode ser tão rápido nem tão demorado, a ponto de perder o que a gente chama de janela, para não gerar a adoção tardia", explica. Ela afirma que a morosidade do processo pode ser explicada pela falta de aparelhamento estatal. "Temos uma única vara na comarca de Fortaleza. Nas comarcas do interior, a maioria não tem vara especializada. Os processos de destituição e de adoção acabam em segundo plano nessas comarcas, misturados a outros processos que também demandam urgência", aponta.

Como saída para o problema da morosidade de todo o processo, a defensora defende o aumento no número de varas especializadas e de equipes técnicas, além da mudança no perfil escolhido pelos pretendentes. "Não podemos forçar as pessoas a adotarem crianças um pouco mais velhas, mas podemos tentar abrir a visão para as janelas de possibilidades", afirma.

A Lei Federal 13509/17 também apresentou soluções para dar mais celeridade ao processo em algumas situações. É o caso dos pretendentes que aceitam adotar crianças ou adolescentes com deficiências, doenças crônicas ou necessidades específicas de saúde, além de grupos de irmãos, que terão direito à prioridade na fila de adoção. Outro ponto positivo é a determinação de prazo máximo de 120 dias para o término do processo de adoção.

Para Ana Cristina, essa legislação "gera uma reflexão por parte do Poder Judiciário e dos demais órgãos do sistema de justiça de que, realmente, é preciso ter uma visão mais especializada para a infância. A demanda é muito grande. Então, não é possível que a gente continue com a mesma estrutura diante dessa situação."

Acolhimento
Determinado o acolhimento institucional, a responsabilidade do Estado é ampliada, pois a criança ou adolescente passa a estar sob cuidados e tutela integral e permanente dele, ainda que estejam em entidade não-estatal. Conforme o ECA, a permanência em programa de acolhimento institucional não deve ser superior a 18 meses, salvo comprovada necessidade. Além disso, a situação do acolhido deve ser reavaliada a cada, no máximo, três meses. Nesse período, a prioridade é a reintegração familiar, seja na família natural ou na extensa. Não sendo possível o retorno ao lar de origem, após a finalização do processo de DPF, o menor é encaminhado ao CNA para que possa encontrar uma família substituta.

Quanto à fiscalização das entidades de acolhimento, fica a cargo do Poder Executivo Municipal, Poder Judiciário e Ministério Público. "[A fiscalização visa] evitar e, se for o caso, reparar eventuais violações dos direitos básicos aos acolhidos, como estar em ambiente e estruturas adequadas e salubres, alimentação equilibrada, atendimento multidisciplinar por equipe própria e qualificada, acesso aos serviços de educação, saúde e assistência social", aponta o promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul Neidemar José Fachinetto, autor do livro "O Direito à Convivência Familiar e Comunitária: contextualizando com as políticas públicas (in)existentes".

O menor em acolhimento institucional deve frequentar a escola mais próxima da entidade, dentro da rede de educação do município. De acordo com o promotor de justiça, a maior dificuldade enfrentada no campo do ensino é o aproveitamento escolar, por conta de “fatores limitantes, como questões cognitivas, longo período de afastamento, infrequência [escolar] e defasagem entre a idade e o ano/série”, por exemplo.

Direitos em risco
Por melhores que sejam as condições oferecidas pela entidade às crianças e aos adolescentes acolhidos, uma vez que o objetivo do programa de acolhimento é resguardar os direitos fundamentais do menor, o prolongamento da institucionalização já constitui uma ofensa a tais direitos. Fachinetto defende que a permanência em ambiente institucional por longo período “afronta a mais elementar condição de formação do ser humano, ligada ao pertencimento a um grupo, com trocas de afetos, experiências e aprendizados contínuos, e ao desenvolvimento de sentimentos de solidariedades e mútua ajuda, habilidades para a formação de indivíduos capazes de se tornarem adultos autônomos e mentalmente sadios".

A colocação em programa de acolhimento institucional é destinada a jovens de até 18 anos. Diferente do que prevê o artigo 19 do ECA, que determina o prazo máximo de 18 meses em acolhimento, muitos menores passam um período superior a esse, algumas vezes chegando até o ponto de passar toda a infância e adolescência institucionalizados.

“Por isso que as entidades devem, ao elaborar ou revisar, a cada seis meses, o plano individual de atendimento, prever todas as alternativas e facilidades para um exitoso desacolhimento, inclusive com medidas de incentivo à autonomia, responsabilidade e independência dos jovens, apoio na obtenção de trabalho e renda, de moradia e, principalmente, no acompanhamento e viabilização de projeto de vida em família, se possível e viável, ou comunitária, com amigos ou conhecidos”, afirma o promotor.

Entrega voluntária
A defensora pública Ana Cristina acrescenta que a entrega de crianças para adoção não é crime. “Muitas vezes, as pessoas não sabem e acabam abandonando ou entregando as crianças para outras pessoas, fora da fila, achando que entregar uma criança para adoção é crime, por vergonha ou por medo de acontecer alguma coisa. O que é crime é você abandonar”, explica.

O artigo 19-A da Lei 13509/17 prevê a situação ao dispor que a gestante ou a mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, deve ser encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. “Quando a criança nasce, [a mãe] entrega a criança, assina um termo de entrega voluntária e ela é entregue para o primeiro da fila do CNA. Dá-se início ao processo de adoção formal e, até a juíza dar a sentença final, a mãe pode se arrepender, mas em nenhum momento ela vai sofrer um processo criminal ou ser acusada de abandono”, explica a defensora. “Muitas vezes a entrega é um ato, um gesto de amor. Você vai entregar para quem vai, realmente, cuidar”, finaliza.

 

Adoção à brasileira
A expressão "pegar uma criança pra criar" é comum. Uma prática antigamente considerada normal no Brasil, hoje, a ação é considerada crime. Contudo, famílias encontraram uma maneira de atualizar o ato. Em entrevista, o promotor Dairton Oliveira diz que esse tipo de "adoção" ganhou novas vertentes, como forma de burlar o sistema legal brasileiro.

Funciona da seguinte maneira: um casal entra em contato com uma mulher grávida; ela abdica da criança de maneira informal; após o nascimento, o homem registra aquele filho como se fosse dele, colocando a mãe biológica na posição de amante falsa. Assim, apenas a cônjuge precisa registrar a adoção, um processo muito mais ágil, chamado de adoção unilateral. "Isso é crime. Isso é descoberto com denúncias porque o pessoal da fila [de adoção] fica sabendo. Os grupos de apoio à adoção começaram a perceber isso. Ocorre uma investigação e as pessoas costumam se entregar", conta Dairton.

Preparando-se para a nova família

Por Gabriela Custódio

A chegada de um filho exige pais e famílias preparados para as mudanças que virão com o novo integrante. Assim como acontece durante os nove meses antes do parto, o tempo entre a entrega dos documentos necessários e o início do processo de vinculação com a criança ou adolescente — variável, de acordo com o perfil escolhido pelo pretendente — também é repleto de dúvidas e medos.

A preparação de quem quer adotar começa antes mesmo da sua inclusão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), quando passa pelo curso preparatório psicossocial e jurídico de pretendentes à adoção, previsto nos artigos 50 e 197-C do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Porém, é indicada a complementação dessa fase com participação em encontros de Grupos de Apoio à Adoção, além de leituras sobre o assunto.

Se antes os interesses dos adotantes sobressaiam-se aos das crianças, atualmente, essa visão mudou. Hoje, a prioridade é encontrar uma família para elas — e não buscar um filho para um casal que não pode tê-lo biologicamente.

A boa preparação dos pretendentes à adoção, logo, ajuda a combater essa mentalidade e a fazer os futuros pais compreenderem o processo atual e a realidade das instituições de acolhimento brasileiras — que têm, em sua maioria, crianças mais velhas.

Dúvidas e receios dos futuros pais, inclusive, podem gerar resistência à adoção tardia e necessária, segundo afirma a psicóloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Lidia Weber. "É preciso entender que a adoção chamada moderna ou atual existe em função da criança que necessita uma família e não mais tem o objetivo de procurar bebês para pessoas inférteis como era no passado. O interesse é sempre da criança e é por ela que todo o sistema jurídico e social deve estar atento", reforça.

Entender o funcionamento e os processos da adoção é passo necessário para sua efetivação e para a construção de vínculos sólidos, segundo Diogo Cals, assistente social, doutorando em sociologia e membro do grupo de apoio à adoção Rede Adotiva, de Fortaleza. "O casal ou pretendente que não compreende essa dimensão, que é complexa, vai ter uma dificuldade muito grande se não for bem orientado. Ele não vai entender o processo, vai se frustrar e tentar buscar uma adoção ilegal", afirma.

Construção de vínculos
Medos "frágeis" dos adotantes podem ser desfeitos, segundo a pesquisadora, quando se busca estudar sobre como a adoção é tratada cientificamente. Entre esses receios estão de que a criança seja traumatizada pelo abandono, tenha herdado caráter dos pais biológicos ou já tenha personalidade formada. Além disso, há, ainda, o de não a amarem ou de não serem amados. “As famílias adotivas possuem dinâmica familiar e estabelecem vínculos afetivos de maneira semelhante às famílias genéticas. Nossas pesquisas revelam que a escolha da criança não determinou maior ou menor qualidade no relacionamento afetivo", explica a psicóloga.

O assistente social acrescenta que, apesar de o processo de vinculação, ao adotar, partir de situação "diferenciada", é possível construir laços afetivos. "O passado dessa criança existe, não vai desaparecer e precisa ser trabalhado e compreendido. Quando existe essa consciência, as coisas conseguem se resolver, você consegue chegar a consensos e construir, com o tempo, esse sentimento. Até nossos sentimentos biológicos não são constituídos a priori."

Juliana Beviláqua, assistente social da Casa de Apoio Sol Nascente na Capital cearense, explica que nem sempre a criança vai estar "de braços abertos" para uma nova família, pois, muitas vezes, a instituição de acolhimento pode ser a única referência dela de moradia e de família. Dessa forma, a ligação com os pretendentes não acontece de forma instantânea. "O vínculo é trabalhado, mas os pretendentes precisam ter a paciência de aguardar o tempo da criança."

Formação obrigatória
Previsto no ECA, o Curso Preparatório Psicossocial e Jurídico para Pretendentes à Adoção é oferecido, em Fortaleza, pelo Juizado da Infância e da Juventude, junto ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e à Defensoria Pública e em parceria com Organizações Não Governamentais (ONGs) de apoio à adoção, como a Rede Afetiva. A cada dois meses, é realizado o encontro de um dia no qual são abordadas as fases do processo, do primeiro contato ao pós-adoção.

Para Deusimar Rodrigues de Alencar, chefe do setor do Cadastro de Adoção do Fórum Clóvis Beviláqua, a participação no curso é importante pela necessidade de se trabalhar o conceito de adoção legítima e romper preconceitos e tabus sobre o tema no País. "O curso tem, portanto, como objetivo também aproximar a criança real da criança idealizada pelos pretendentes, evitando a devolução de crianças na fase de estágio de convivência e contribuindo para evitar conflitos familiares após a adoção."

Desde o final de 2017, o MPCE realiza uma visita técnica a instituições de acolhimento. De acordo com o promotor Luciano Tonet, responsável pela 6ª Promotoria da Infância e da Juventude, antes da visita, os pretendentes conversam com a equipe multidisciplinar e com o coordenador da instituição sobre como se portar com as crianças. Ao final, podem tirar dúvidas. Segundo o promotor, essa etapa é realizada para os pretendentes confirmarem ou ampliarem o perfil previamente escolhido. "É justamente para que eles tenham certeza de que aquele perfil que eles falaram é o que eles querem e para que desmistifiquem uma ideia equivocada que possam ter."

Apoio complementar
Criados nos anos 1980, os Grupos de Apoio à Adoção (GAA) são formados, muitas vezes, por pais adotivos e voluntários em busca de disseminar a cultura da adoção. Na Capital, existem dois deles: o Acalanto Fortaleza e o Rede Adotiva. Neste último, é realizado o "Papo na Rede", encontros mensais com os pretendentes nos quais são tratados temas diferentes a cada reunião.

"Com o pretendente, fazemos uma preparação para que, quando ele estiver sendo vinculado, por exemplo, a rejeição a essa criança seja menor", explica Diogo Cals. A iniciativa aborda assuntos como o conceito de adoção, o processo de vinculação, o que é a vida no acolhimento institucional, as dificuldades para se adotar no País, o que são o CNA e a fila de adoção e quais são as etapas do processo.

O Rede Adotiva realiza também o "Amor Maior", encontro mensal voltado para os que já são pais adotivos. Neste momento, outras demandas são atendidas, tratando-se questões como o relacionamento da criança na família e assuntos escolares. Além dessas iniciativas, a ONG realiza palestras, rodas de conversa e círculos de leitura. "Nosso objetivo é construir o que chamamos de nova cultura da adoção, em que ela possa ser vista de maneira idêntica a qualquer outro tipo de formação familiar, sem preconceitos", afirma.

Segundo a assistente social Juliana Beviláqua, a atuação desses grupos tem impactado de maneira positiva a preparação dos pretendentes assistidos pela Casa de Apoio Sol Nascente na fase de vinculação com uma das crianças. “Percebemos que eles já sabem mais ou menos como vai acontecer o processo. Muito embora, quando eles chegam aqui, na prática, ainda surjam outras inseguranças e outros medos. Principalmente em relação à adoção tardia, mudou muito a cabeça das pessoas", avalia.

 

Possíveis dificuldades

Conforme explica Diogo Cals, a tendência é os primeiros meses de convivência serem “complicados”, por conta de conflitos — comuns às relações familiares, e não restritos à adoção — e porque os filhos podem testar os pais. "Quando eu digo testar, digo que eles podem dizer ‘você não é minha mãe’, em um momento de raiva. Ele pode pegar as coisas todas e bagunçar a casa. [...] Nosso trabalho é fazer o possível para que os pais compreendam essas atitudes que essas crianças podem vir a ter, compreendam que aquilo não é um problema de caráter e tenham paciência com o processo."

Ainda segundo Cals, o trabalho do assistente social nas diferentes etapas do processo busca evitar situações como a devolução dos filhos adotivos durante o período de convivência. "A ideia da devolução, para a gente, é muito nefasta. É algo muito ruim para a criança, que muito provavelmente já passou por outras formas de desvinculação e que se vê diante de uma realidade difícil de conhecer uma família, vincular-se e não dar certo."

Entre os motivos para as devoluções, Lidia Weber cita habilitação e preparação deficitárias, conflito com filhos biológicos dos adotantes e diferentes expectativas entre os cônjuges. "As consequências podem ser trágicas e perdurar por toda a vida, como a falta de confiança, baixa autoestima e a incapacidade de relacionar-se afetivamente com outros", pontua. Como prevenção, elenca, entre outros aspectos, transição cuidadosa do abrigo à nova família e acompanhamento formal pós-adoção, além de apoio e formação para práticas educativas parentais.

Dar voz a quem precisa ser ouvido

Por Joyce Oliveira

Ter sido adotada aos três anos de idade foi um dos fatos que levaram a designer visual Simone Uriartt, 29, a abraçar a causa e passar a apoiar adoções tardias. A partir de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRS), em 2014, Simone criou o site Adoção Tardia com o objetivo de dar voz a crianças por meio de depoimentos que encorajassem esse tipo de adoção.

"Meus pais sempre falaram abertamente sobre esse assunto e eu sabia que tinha uma história e irmãos que não tinham sido adotados", conta ressaltando que na época em que foi adotada, em 1992, era costume as pessoas esconderem das crianças suas origens. O caminho escolhido por Simone, logo, foi propagar o contrário, dar voz pelo projeto às crianças.

"Não foi só a adoção que me motivou a abrir o projeto, mas tudo que aconteceu na minha vida depois disso. Como minha família lidou, todas as oportunidades que tive por ter crescido com pessoas que me davam apoio material, psicológico e que sempre estavam na minha torcida. Eu queria retribuir à sociedade tudo de bom que tive", pontua. Hoje, seis pessoas trabalham no projeto Adoção Tardia.

Laços de sintonia e entrega

Por Joyce Oliveira

Comprar roupinhas de bebê e olhar para a casa imaginando as gargalhadas de uma criança: estes são desejos comuns daqueles que aguardam a chegada de um filho. Enquanto uma gestação convencional demora nove meses, a do psicólogo Cláudio Almeida e a do coordenador pedagógico Roberto Damasceno aconteceu em cerca de um ano. Juntos há mais de duas décadas, o casal decidiu entrar, em 2011, na fila de adoção. O desejo de adotar uma criança sempre esteve presente na vida de Damasceno. No entanto, Almeida sempre relutou a essa vontade.

"Pelo ofício que a gente tem, eu não sabia como seria a vida dessa criança e tinha muito receio", conta. No entanto, o sentimento de ser pai começou a surgir após assistir, em um programa de TV, a um promotor de justiça explicando que um casal homoafetivo pode sim adotar uma criança. A partir de então, a ansiedade fez morada na vida dos dois e, no dia seguinte, eles iniciaram a etapa de documentação necessária ao cadastro de adoção.

"Ficamos ansiosos. Tentávamos comprar roupas, mesmo tendo escolhido o perfil de uma criança de ambos os sexos, de três a cinco anos de idade", lembra o psicólogo.

Em 2012, o telefone tocou. "Ligaram para a gente. Fomos até o serviço de adoção e eles disseram que tinham uma menina. Nós fomos levados até lá e a conhecemos, que hoje é o amor da vida da gente", afirma emocionado. Atualmente com nove anos, Vitória Régia, com seu jeito sapeca, alegra a casa e a vida do casal.

Ligação de corações
O primeiro contato foi essencial para definir a relação de Almeida e Damasceno com a futura filha. "A gente se apaixonou. Foi como se Deus tivesse feito uma ligação rápida no coração da gente. Quando olhamos, não queríamos ir embora", recorda Damasceno sorridente. A partir de então, o caminho para a casa de acolhimento Lar Batista, em Fortaleza, era trilhado todos os dias.

A vontade de possuir a guarda da pequena — que aos quatro anos de idade possuía nove quilos (números da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que essas medidas equivalem ao peso mínimo de uma criança de dois anos de idade) — era enorme.  “Ela era uma menina bem pequena e tinha passado por severas dificuldades, principalmente na parte da saúde”, diz Almeida.

Com as devidas orientações, o casal conseguiu, em pouco mais de um mês, sua guarda provisória. Em 2013, a menina saía definitivamente do Lar Batista e passava a conhecer sua nova casa e os outros familiares. O casal, que dispensa o termo ‘pais adotivos’, conta que esse é um sentimento único. "Ser chamado de pai é tão intenso. Todo sentimento que um pai e uma mãe têm pelo filho biológico nós temos por ela. O que fala mais alto aqui não é o sangue, é o amor. E é isso que faz sentido."

Enquanto seus pais contavam a este especial sua história, o olhar de Vitória era tímido e atento. Após a entrevista, ela mostrou à reportagem suas bonecas e seus desenhos com Almeida e Damasceno segurando sua mão. O fato de ser filha de dois homens nunca gerou desconforto à pequena, embora já tenha sido alvo de perguntas no colégio. Quando questionada por outros colegas de sala, Vitória, com sua pouca idade, surpreendeu a todos: “Sou filha de dois homens, mas eu sou feliz, porque eles me dão amor”, relembram o casal. 

O pedido de uma irmã
Hoje, Vitória já sonha com a chegada da irmã. Almeida e Damasceno já aguardam na lista de espera há dois anos. Para o novo trâmite de adoção, o casal traçou um perfil: uma menina — a pedido de Vitória. A ideia é que ela tenha entre três e sete anos de idade.

O casal lamenta o processo de adoção ser repleto de entraves e, por isto, demorado. "Tem uma lista de crianças e uma lista de pretendentes e a gente sabe que essa fila não se cruza. Mas a gente fica lutando para que ande mais rápido", pontuam Almeida e Damasceno, que frequentemente buscam o Ministério Público para saber do andamento da futura irmã de Vitória.

Além disso, o psicólogo coloca em questão os problemas que as casas de acolhimento enfrentam. "A gente sabe a dificuldade que esses locais estão passando. A maioria não recebe auxílio governamental. Sabemos que eles não têm condições de cuidar individualmente dessas crianças. Isso quem pode dar são os pais", finaliza.

" Vidas precisam se encontrar "

Por Paulo Emanuel Lopes

O casal de professores Edinete Lima e Jorge Castro caminhava pelos corredores da Casa de Apoio Sol Nascente, em Fortaleza. Após seis meses de habilitação no CNA, eles estavam prestes a conhecer aquela que seria sua primogênita, Érika, então com sete anos. No local, aproximaram-se de uma garota de costas, brincando. Edinete não teve dúvidas: "É esta!", comentou com o esposo que, naquele momento, não lhe deu muita atenção. "Vidas precisam se encontrar. Outros sete casais procuraram Érika antes de nós e não a adotaram. Acontece que ela era minha."

Dois anos passaram-se e Érika, já no novo lar com os pais, começou a pedir um irmão. Assim começa a história de João Gabriel na vida do casal. "Com a Érika, eu tinha especificado uma menina e com o João nós não delimitamos. Mas eu sabia que viria um menino. Conhecemos o João com três anos e, em nossa primeira saída, ele já me chamou de mãe", emociona-se. Hoje, Érika e João Gabriel têm, respectivamente, 11 e cinco anos.

Superação
Edinete e Castro relatam não ter tido problemas de adaptação com João Gabriel e que, no entanto, com Érika foi um pouco difícil. "Ela era uma menina calada, não falava. Nos seis primeiros meses, todos os sábados, nós a levávamos para o antigo abrigo (sic) pra reencontrar os amigos. É uma instituição com poucas crianças. Então, eles eram a família dela", recorda a mãe. O primeiro Natal junto à pequena foi difícil. "Conhecemos a Érika em dezembro e decidimos convidá-la para passar o Natal conosco. Foi um erro. Era nossa vontade, mas não a dela, que preferia ter passado com os amigos."

Sua filha apresentou ainda dificuldade para dormir sozinha: como era acostumada com quarto cheio de crianças, demorou um pouco até que topasse passar a noite a sós. A alfabetização é outro aspecto que, à época, pesou um pouco no novo cotidiano da família. "Ela são sabia ler nem escrever, mas eu disse às senhoras da instituição que nós conseguiríamos resolver", conta a mãe, professora de ensino fundamental. "Fui investigando suas poucas palavras, até descobrir que ela não gostava de falar por um trauma na escola. A professora pedia que ela lesse em voz alta, mas ela não tinha coragem de dizer que não sabia."

Adversidades e preconceito

Apesar de poder ter filhos biológicos, Edinete optou pela adoção. Sua história de vida ajuda a explicar: aos seis anos, ela perdeu o pai, que deixou sua mãe com a missão de criar, sozinha, nove filhos. Edinete foi entregue aos cuidados de uma amiga da mãe, que se tornou sua mãe adotiva. "Fui criticada pela minha família, que me aconselhava: 'Você pode [engravidar]. Tenha seus filhos', porém eu argumentava: 'Eles serão meus filhos! Não é porque vou adotar que deixarão de ser meus'."

O casal, que integra o grupo de apoio à adoção tardia no Ceará Rede Adotiva, defende: "Nossos filhos são maravilhosos, não dão trabalho. Os filhos adotados dos nossos amigos da Rede Adotiva também não. Eu penso que não há problemas com adoção, tardia ou não, mas sim com a educação que oferecemos aos nossos filhos", defende o pai.

Amor á primeira vista

Por Joyce Oliveira

Algumas coisas na vida simplesmente acontecem. Para Ruth Souza, o sentimento materno surgiu involuntariamente. Embora nunca tivesse pensado em adotar, a fisioterapeuta resolveu juntar-se a um grupo de pessoas para realizar trabalhos voluntários destinados a crianças em casas de acolhimentos. Após um tempo, os integrantes resolveram criar a Acalanto Fortaleza, Grupo de Apoio à Adoção (GAA). De acordo com Ruth, em meio a tantas histórias expostas nas reuniões do grupo, existia a de uma criança chamada Janaína: devido a uma desistência na adoção, com consequente retorno da pequena à casa de acolhimento, a Acalanto estava auxiliando no processo que decidiria se ela voltaria para a cidade natal ou se ficaria em Fortaleza. "Em um belo dia, o grupo apresentou a foto dessa criança. Quando olhei, falei: é a minha filha. Comecei a chorar, entrei em desespero", relembra.

A partir desse dia, Ruth não foi mais a mesma. "Sai correndo para a casa. Cheguei, olhei para o meu esposo e disse: 'Encontrei nossa filha'. E ele, sem entender nada, pegou, olhou a foto e disse: 'É, até parece comigo'", conta sorridente. A partir de então, Ruth e seu marido, Igor Ribeiro, começaram a planejar suas vidas com a pequena. Embora estivessem querendo adotar Janaína, entretanto, o casal não estava na fila de adoção. "Eu decidi entrar para o cadastro de adoção e falei com Deus. Eu disse: 'Deus, eu sei que ela é minha filha, mas é o Senhor quem sabe'. Fomos lá [no Fórum], demos entrada na papelada e começamos nossa saga."

Em meio a tantas expectativas, o processo, que durou um ano e oito meses, foi repleto de altos e baixos. "Entrei no cadastro e coloquei tudo que puxasse a Janaína: negra, da Bahia e idade. Mas tinham 40 pessoas na nossa frente. Mas continuei." Com o passar do tempo, algumas famílias foram visitar Janaína e iniciaram o processo de vinculação. No entanto, o procedimento nunca era finalizado. Em meio a essas possíveis adoções, Ruth apagava-se em sua fé.

Certo dia, um casal resolveu levar Janaína para casa. "Nesse dia, do meu trabalho para cá, parecia que tinha abortado. Eu chorava tanto, era um dor tão grande. Parecia que a tinham tirado de mim", relata. A tristeza tomou conta da vida da fisioterapeuta. Porém, após três meses, o casal desistiu da adoção e Janaína voltou para a casa de acolhimento. Em decorrência dessa e de outras devoluções, a menina foi retirada por um tempo do CNA para passar por tratamento com profissionais. Nesse período, Ruth e Ribeiro continuaram na fila. Depois de oito meses, Janaína voltou para o cadastro de adoção e a fisioterapeuta, finalmente, recebeu a ligação que tanto sonhou. "Gabriela [responsável, à época, pelo cadastro de adoção] me ligou e disse: 'Você quer conhecer uma menina?' Respondi: 'Só se o nome dela for Janaina'. Gabriela, então, disse: 'É ela mesmo'."

A boneca é o elo entre as duas
O símbolo do início da relação entre Ruth e Janaína é uma pequena boneca. "Comecei o vínculo com ela levando uma bonequinha negra. A gente cuidava dela juntas todos os dias. Ela sempre falava para eu levar a boneca para casa e a colocava na minha bolsa. Era como se ela se transportasse junto comigo", diz. Após alguns meses, Janaína começou a passar os finais de semana com o casal, mas tinha que retornar aos domingos para a casa de acolhimento. "Era desesperador. Você imagina pegar sua filha e deixá-la em um canto." Após sete meses de espera, Ruth e Ribeiro ganharam a guarda definitiva de Janaína, quando a pequena tinha cinco anos de idade. "Em 2015, ela veio para a gente", finaliza a mãe. Hoje com oito anos, Janaína Ribeiro vive ao lado de seus pais, sua irmã paterna Ellen Ribeiro, sua cachorrinha Ronda e sua coelha Leleca.

Um sorriso para a vida toda

Por Paulo Emanuel Lopes

Aquele era um dia chuvoso. Eliane Carlos de Oliveira, funcionária pública estadual, regularmente levava doações a um abrigo de acolhimento para crianças. Seu esposo, o representante comercial Itamar Fernandes, acompanhava-a pela primeira vez. As crianças brincavam e se divertiam com a chegada dos voluntários até que uma menina calada, com um simples sorriso, chamou a atenção de quem viria a ser seu pai - o problema de locomoção que Raissa Fernandes enfrenta impedia-a de estar serelepe em meio aos seus pares.

"Há sete anos, nós não imaginávamos que iríamos adotar uma criança. Eu já conhecia Raissa na instituição, mas foi com o apoio de Itamar que nós decidimos tentar [a adoção]", relembra Eliane. A mãe biológica de Raissa, diz a funcionária pública, não possuía residência fixa e procurou o abrigo porque não tinha condições de criar a menina, à época, entre três e quatro anos de idade.

Eliane e Fernandes conheceram a filha antes do processo de adoção e decidiram acompanhar Raissa mesmo que à distância. "Tornamos-nos padrinhos da Raissa, que ainda não era batizada. O padre foi até a instituição, uma sugestão nossa já que havia outras crianças nessa situação, e houve um batismo coletivo", conta Eliane. Com a proximidade ao casal, a mãe biológica, dada a sua incapacidade de cuidar da pequena, segundo Eliane, pediu que fosse realizada uma adoção consentida – modalidade em que os pais biológicos, em geral a mãe, "escolhem" uma pessoa para ser a nova família da criança ou adolescente.

Posteriormente, os dois entraram para o cadastro do CNA. "Foi feita a destituição familiar junto ao nosso cadastro [no CNA]. É todo um procedimento como é feita a outra [adoção]. Nós fomos ao Fórum, entregamos a documentação, recebemos visita da assistente social, da psicóloga, participamos do curso. Tudo isso enquanto corria o processo de adoção direcionado a Raissa. Nove meses no total. No caso de crianças com necessidades especiais, existe na lei dispositivo que oferece agilidade."

Nova rotina, novos passos

Eliane explica que a chegada da filha alterou a rotina do casal. "Quando Raissa chegou tivemos que fazer algumas adaptações. Por exemplo, restaurantes que frequentávamos, por questão do espaço físico ou do cardápio mesmo, deixamos de ir. Passamos a viver um mundo infantil de buffets, reunião de escola. Eu tive que reviver isso [Eliane já era mãe com a chegada de Raissa]. Para o Itamar, foi tudo novo. Ele nunca tinha vivido isso."

Com letra bonita e, na escola, boas notas em disciplina como história, Raissa, hoje com nove anos, pratica natação e tem aulas de teatro. Até ano passado, praticava balé. Ganhou recentemente uma Medalha de Gentileza no colégio onde estuda. Para o futuro, a garota deseja ser atriz, modelo e veterinária, mas, enquanto esse dia não chega, gosta mesmo é de assistir a desenhos animados. "Três espiãs demais é o meu favorito."

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