Os avanços tecnológicos permitiram novos meios para a distribuição de histórias, vivemos a era do streaming onde o público tem acesso cada vez mais fácil a uma grande variedade de narrativas. A partir dessa nova realidade surge o projeto Arquivo Aberto, que tem como proposta contar histórias utilizando diferentes tipos de plataformas. A proposta principal dessa iniciativa são os conteúdos em áudio, que derivam para conteúdos em texto, vídeo e imagem.
Formato em ascensão na cultura podcaster, o storytelling reúne uma série de técnicas narrativas para contar histórias. O conceito toca a primeira temporada, que tem como tema o caso Marielle, trazendo detalhes do assassinato da vereadora carioca ocorrido em 2018. Os quatro episódios que integram a primeira temporada estarão disponíveis nas plataformas; Deezer, Spotify, iTunes, Spreaker e nos principais agregadores de podcast. Os últimos passos da vereadora e toda a cronologia que envolveu o crime serão recontados nos dois primeiros episódios, que também abordam a primeira etapa da investigação comandada pela Polícia Civil e Ministério Público do Rio de Janeiro.
Os episódios iniciais também exploram outros aspectos que envolvem o caso. O perfil e a identidade dos acusados, o processo de planejamento do crime e a arma utilizada para executar Marielle. O terceiro e quarto episódio focam na vida e legado político deixado pela vereadora carioca.
A cronologia do crime
PARTE I
Após um ano das execuções, muitas investigações foram realizadas e um primeiro passo foi dado. A pergunta que agora insiste em ecoar é: quem mandou matar Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes? A primeira temporada do podcast arquivo aberto conta o caso de um dos crimes que mais abalaram o Brasil nos últimos anos. O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, juntamente com o seu motorista Anderson Gomes, desperta os mais variados sentimentos, um caso que se tornou guerra cultural e pautou o discurso político em uma país tão polarizado.
17:24
O dia a dia de Marielle era no Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara de Vereadores do Rio, foi lá onde ela apresentou seus projetos e desenvolveu trabalhos voltados a proteção dos direitos humanos. No dia do crime a sessão no plenário da Câmara teve fim às 17h24. As imagens do circuito interno mostram Marielle e outros vereadores se dirigindo a porta de saída do plenário. De lá, a vereadora tomou o elevador até o seu gabinete, onde permaneceu por cerca de uma hora, até sair do prédio.
18:39
Imagens do circuito interno da Câmara mostraram a vereadora se dirigindo a um dos portões de saída, precisamente às 18h39. A gravação também mostra, em outro ponto, a movimentação do lado de fora do prédio. Anderson Gomes, que substituía um amigo no cargo de motorista da vereadora, aparece pela primeira vez nas imagens caminhando até o carro estacionado na rua Álvaro Alvim, que dá acesso a um dos portões laterais da casa. Em seguida, Anderson entra no carro e vai em direção a Marielle que já o espera calçada da Câmara.
Ali mesmo na calçada do prédio, Marielle embarca como de costume no banco da frente do veículo ao lado de Anderson. O destino agora é a Casa das Pretas onde acontece o encontro “Jovens Negras Movimentando as Estruturas” promovido pelo seu mandato. A distância entre a Câmara de Vereadores do Rio e a Casa das Pretas é de cerca de 1,5 km. É nesse primeiro trajeto que surge a primeira dúvida da investigação. Os assassinos estariam seguindo o veículo de Marielle a partir desse ponto? As imagens do circuito interno do local e de prédios vizinhos não comprovam se outros veículos estariam seguindo Marielle e Anderson.
18:58
A Rua dos Inválidos, local onde fica a Casa das Pretas, é uma via típica de um centro urbano, estreita e de mão única, onde carros ficam estacionados rente a calçada e do outro um curto espaço para que os carros transitem. Às 18h58, exatamente 19 minutos após Marielle e Anderson deixarem a Câmara dos Vereadores, o veículo utilizado pelos criminosos aparece nas imagens de câmaras de segurança. Sem vagas para estacionar, os assassinos param o carro ao lado de um beco, próximo a Casa das Pretas.
19:00
Dois minutos após o veículo dos assassinos chegar ao local, é a vez do carro de Marielle e Anderson surgir no vídeo. Ainda sem vagas para estacionar, Marielle desembarca no meio da via em frente a Casa das Pretas, enquanto Anderson dá marcha ré e busca um local mais apropriado para estacionar. Nesse movimento ele quase chega a colidir com a lateral do carro dos assassinos ali parado.
Durante toda a participação de Marielle no evento, que durou cerca de duas horas, os criminosos se mantiveram dentro do carro sem sair do veículo em nenhum momento. Porém um único movimento de troca de assento de um dos criminosos, deixou brechas para embasar as investigações da polícia.
Sem imaginar a presença dos seus algozes ali tão perto, Marielle inicia o evento, que recebeu a presença de diversas mulheres, entre elas estudantes, publicitárias, cineastas e jornalistas para discutirem políticas públicas voltadas às mulheres negras.
19:09
O movimento no local começa a diminuir e a primeira vaga de estacionamento surge. O carro guiado pelos assassinos logo é estacionado mais a frente, ainda mais próximo da porta de entrada da Casa das Pretas, mais precisamente a dois carros de distância da entrada do local. O veículo para posicionando o lado do motorista paralelo à calçada. A visão do motorista é perfeita, é possível observar todo o movimento em frente a Casa das Pretas, onde Marielle está.
19:32
Outra vaga surge bem a frente do carro dos assassinos, é justamente nesse local que Anderson estaciona. Apenas um carro separa o veículo de Anderson da porta de entrada da Casa das Pretas. Na vaga de trás, os criminosos acompanham atentamente a manobra de Anderson.
19:54
Durante a espera pelo término do evento, as câmeras de segurança filmam Anderson circulando pela Rua dos Inválidos, possivelmente se dirigindo a estabelecimentos comerciais ali próximos. A pé, o motorista caminha pela rua usando o celular e chega a passar mais uma vez ao lado do carro dos criminosos.
21:03
O encontro chega ao fim e Marielle volta a surgir nas câmeras. A vereadora deixa a Casa das Pretas e caminha em direção ao carro se despedindo de algumas pessoas ali na calçada.
21:04
Marielle, Anderson e a assessora Fernanda Chaves embarcam no veículo após o término do evento. Desta vez, a vereadora que sempre andava no banco da frente ao lado do motorista, decide naquela ocasião ir no banco de trás, acompanhando a assessora.
21:05
Com faróis apagados o veículo dos criminosos estacionado logo atrás acompanha toda a movimentação e sai logo em seguida, iniciando a perseguição às vítimas.
21:12
A perseguição se intensifica. Por cerca de 4km os criminosos perseguem o carro da parlamentar sem que as vítimas percebessem que estavam sendo acompanhadas. Ao longo do percurso os carros passam por 11 câmeras de trânsito, câmeras essas que seriam decisivas no curso das investigações. Segundo informação do Jornal Hoje da TV Globo, as câmeras de segurança fizeram parte de um pacote doado pelo Governo Federal para o monitoramento das vias cariocas durante as Olimpíadas do Rio de 2016. Por falta de manutenção cinco dessas câmeras não estavam funcionando no momento do crime, inclusive a do local exato da execução.
As últimas imagens do carro de Marielle em movimento foram vistas a cerca de 400 metros do local onde a vereadora foi executada.
Devido a ausência de câmeras, não há precisão exata do momento do crime. As investigações apontam que o carro dos criminosos tenha emparelhado o carro de Marielle disparando com os dois veículos ainda em movimento.
Os dados iniciais da investigação revelaram que ao todo os criminosos dispararam 13 vezes a uma distância de 2 metros. O atirador acertou o local exato onde a vereadora estava sentada, no canto direito do banco traseiro. quatro tiros atingiram Marielle e três Anderson. A assessora de Marielle que a acompanhava no banco de trás sobreviveu ao crime, sendo apenas atingida por estilhaços de vidro do veículo.
Armas e munições
PARTE II
Somente um ano após o crime surgem as primeiras informações concretas sobre quem são os responsáveis pelas execuções. O tempo de investigação se deve a complexidade do caso, além de uma série de precipitações na perícia do crime: a primeira diz respeito a munição utilizada pelos assassinos.
Na sexta-feira 16 de março, dois dias após as execuções, Raul Jungmann, ex-ministro da defesa do então presidente Michel Temer, concedeu entrevista coletiva para falar sobre o crime. Segundo as informações do ministro, a munição utilizada para executar Marielle e Anderson teria sido furtada de uma agência dos Correios no Estado da Paraíba. As munições faziam parte de um lote destinado à Polícia Federal.
Não demorou muito para a declaração ser contestada. No dia seguinte, a Polícia Federal e os Correios da Paraíba se manifestaram contra as declarações de Jungmann. A superintendência dos correios do estado da Paraíba informou não ter conhecimento sobre qualquer furto de munição. O sindicato da Polícia Federal também se manifestou, alegando que não realiza o transporte de munições através dos Correios.
De fato, a munição utilizada é de um lote vendido a Polícia Federal de Brasília em 2006. Porém a afirmação de roubo declarada pelo ministro não é verdadeira, o que ajudou a tumultuar ainda mais o caso. A declaração de Jungmann repercutiu tanto ao ponto do próprio ministério se pronunciar através de nota, reformulando a fala do ministro e reconhecendo o erro. A verdade é que balas do mesmo lote foram encontradas após um assalto a uma agência dos Correios na Paraíba – ou seja, foram usadas pelos participantes da ação e não furtadas na ação.
Munições desse mesmo lote foram utilizadas em outras duas ocasiões; a primeira na maior chacina do estado de São Paulo, ocorrida em 13 de agosto de 2015 nas cidades de Osasco e Barueri. Na ocasião 17 pessoas foram mortas em apenas uma noite. 3 policiais militares e um guarda-civil foram condenados pelas mortes. O segundo registro da utilização dessas munições ocorreu em São Gonçalo-RJ entre 2015 e 2017, durante disputas de território entre facções rivais, onde 5 pessoas foram mortas.
Qual a arma utilizada no crime?
O segundo erro inicial das investigações é referente a arma utilizada no crime. As primeiras investigações apontaram o uso de uma pistola 9mm acoplada com kit rajada, capaz de disparar vários tiros por segundo. Até agosto de 2017 o uso desse armamento era restrito a agentes da Polícia Federal e das Forças Armadas.
Em 7 de agosto de 2017, sete meses antes do crime, o Comando do Exército autorizou através de portaria, a compra desse armamento para uso pessoal por Agentes de Segurança de todo Brasil. A partir de então, Policiais Civis, Militares, Bombeiros e agentes das polícias legislativas, tiveram a autorização de possuir o armamento.
Mas afinal, a arma utilizada no crime foi realmente uma pistola 9mm? Essa foi a hipótese inicial levantada pela perícia. No domingo 6 de maio de 2018, quase dois meses após o crime, surge a primeira reviravolta do caso. Uma reportagem exclusiva do programa Domingo Espetacular da TV Record, revelou erros importantes na perícia e informações que até aquele momento estavam mantidas em sigilo.
O repórter Vinícius Dônola, narrou informações importantes sobre o caso e que logo iriam ser confirmadas pela Polícia Cívil do RJ. A Divisão de Homicídios analisou os restos de munições encontrados no local do crime e constatou que a arma utilizada não foi uma pistola 9mm. Os agentes da DH examinaram os estojos expelidos pela arma no momento dos tiros, esses estojos são os cartuchos sem pólvora e sem projétil. Ao realizar um tiro, todas as armas deixam marcas nos cartuchos que são expelidos, essas marcas são como impressões digitais. Mesmo sendo da mesma marca ou do mesmo calibre, cada modelo de arma deixa uma característica diferente. E foi através de ranhuras nas bordas dos cartuchos colhidos no local, que se descobriu a arma utilizada; uma submetralhadora HK MP5, capaz de de disparar até 13 tiros por segundo. A informação divulgada pela reportagem foi confirmada posteriormente pela Polícia Civil carioca.
A HK MP5 é uma arma de fabricação alemã e seu uso é ainda mais restrito que a pistola 9mm. Segundo informações do programa Domingo Espetacular da TV Record, no estado do Rio de Janeiro somente algumas unidades estão disponíveis e o uso é exclusivo das forças militares. De acordo com as informações apuradas pela reportagem da TV Record, cerca de 40 armas como essa estão em poder da Polícia Cívil e um outro lote ainda menor em poder de forças especiais da Polícia Militar, como o BOPE. Outro dado importante levantado pela reportagem sobre a metralhadora MP5, diz respeito às suas apreensões. Nos últimos 10 anos, pouco mais de 10 unidades foram apreendidas nas mãos de criminosos.
A equipe de investigação que comandou a primeira fase da Operação Lume é extensa, reunindo integrantes da Divisão de Homicídio, Ministério Público do Rio de Janeiro e do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado, o GAECO. Os grupos trabalharam em conjunto para chegar aos dois acusados.
A equipe de promotoria do Ministério Público foi formada por 4 mulheres: Letícia Petriz, Simone Sibilio, Eliane Pereira e Elisa Fraga. A presença das quatro mulheres a frente da investigação foi bem recebido pela família de Marielle, dialogando com as lutas e o protagonismo feminino defendido pela parlamentar.
Na outra da ponta da investigação os trabalhos foram realizados pela Divisão de Homicídios, comandada pelo Delegado Giniton Lages.
A equipe de investigação que comandou a primeira fase da Operação Lume é extensa, reunindo integrantes da Divisão de Homicídio, Ministério Público do Rio de Janeiro e do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado, o GAECO. Os grupos trabalharam em conjunto para chegar aos dois acusados.
A equipe de promotoria do Ministério Público foi formada por 4 mulheres: Letícia Petriz, Simone Sibilio, Eliane Pereira e Elisa Fraga. A presença das quatro mulheres a frente da investigação foi bem recebido pela família de Marielle, dialogando com as lutas e o protagonismo feminino defendido pela parlamentar.
Na outra da ponta da investigação os trabalhos foram realizados pela Divisão de Homicídios, comandada pelo Delegado Giniton Lages.
A prisão dos acusados
PARTE IV
Policiais e viaturas, uma cena atípica chama a atenção no Condomínio Vivendas da Barra, em plena 4h30 da manhã. O lugar de alto padrão, tem casas avaliadas em até 4 milhões de reais, conforme informações de sites especializados em vendas de imóveis. O sol ainda nem havia clareado quando o policial reformado Ronnie Lessa tenta sair do condomínio onde mora. Informados sobre uma possível fuga dele, Policiais da Divisão de Homicídios já o aguardavam dentro do condomínio com um mandado de prisão expedido em seu nome.
Ao se encaminhar a saída do condomínio, o policial reformado é preso, sem esboçar qualquer tipo de reação. No momento da prisão, Lessa carregava consigo 3 celulares, todos em modo avião. De maneira informal o acusado chega a comentar com os agentes responsáveis, que havia sido alertado sobre a ação. Esse detalhe do momento da prisão foi revelado por uma peça importante da investigação, a Coordenadora do GAECO, Simone Sibílio.
Imagens da portária do condomínio
Naquele mesmo momento, há 21 km dali, o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz também é preso sem esboçar reação. A prisão aconteceu na Rua Eulina Ribeiro no Bairro Engenho de Dentro, nas proximidades de sua residência.
As prisões fizeram parte da primeira fase da Operação Lume, deflagrada pela Polícia Civil e Ministério Público do Rio de Janeiro. O nome faz referência a Praça Mário Largo, localizada no centro do Rio e que é popularmente conhecida como Buraco do Lume.
Imagens da Praça Mário Largo
O lugar tem um valor simbólico para a história de Marielle. Considerado um espaço tradicional de manifestações políticas, a praça acolheu o movimento Lume Feminista, que realiza intervenções de conscientização e debates sobre os direitos das mulheres. Marielle, assim como outros integrantes do seu partido, o Psol, foi uma das idealizadoras do projeto.
A primeira fase da operação pegou muita gente de surpresa, logo pela manhã, equipes de TV abriram os noticiários com informações ao vivo da portaria do Condomínio de Ronnie Lessa, enquanto a polícia ainda vasculhava a residência dele. Imagens aéreas mostravam a movimentação dos policiais no local. Um detalhe chamou a atenção e inflamou as discussões sobre o assassinato da vereadora nas redes sociais. Aquela não foi a primeira vez que repórteres gravavam passagens em frente ao Condomínio Vivenda da Barra.
A portaria do prédio, situado na Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, tornou-se popular durante a cobertura das eleições de 2018, devido a um dos seus mais ilustres moradores, o presidente da república Jair Bolsonaro. O presidente possui duas casa no local, uma delas bem próxima à residência de Lessa. Diante da repercussão do fato, o delegado Giniton Lages, responsável pela investigação do caso naquele momento, informou que não há qualquer tipo de relação entre o presidente e o acusado.
Perfil dos acusados
PARTE V
Acompanhe agora um breve perfil sobre os dois acusados, quem são eles, onde atuaram e como as suas ligações com atividades ilegais, os corromperam e os desviaram do real trabalho realizado pela polícia.
As investigações apontaram que Ronnie Lessa foi o responsável pelos tiros que atingiram as vítimas. Ele tem 49 anos e está ligado às atividades militares desde a sua juventude. A porta de entrada foi exército, em 1988.
Aos 19 anos integrou a associação militar Scuderie Detetive Le Coq, organização extra-oficial criada em 1965 por militares, que tinham como objetivo vingar a morte do detetive Milton Le Coq, assassinado em atividade no Rio de Janeiro. A organização foi também considerada um dos mais famosos grupos de extermínio carioca, extinta no começo dos anos 2000.
Em 1991, Ronnie ingressou na Polícia Militar, onde pouco tempo depois integrou o quadro do Batalhão de Choque, permanecendo até maio de 1993, antes de finalmente alcançar seu grande objetivo, tornar-se um caveira, jargão utilizado para designar agentes do Batalhão de Operações Especiais.
De 1993 a 1997, fez carreira vestindo a farda negra do Bope, mesmo sem nunca ter feito o curso preparatório para integrar a equipe, um oficial do grupo revela em reportagem à Revista Época que a prática era comum no passado, quando o batalhão costumava agregas oficiais da PM.
Após esse período foi realocado em diversos batalhões da Polícia Militar, até ser cedido a Polícia Civil nos anos 2000. Esse foi o último posto ocupado pelo acusado na Polícia. Em 2 de outubro de 2009, um atentado mudaria para sempre a carreira do ex-policial. Uma bomba foi detonada dentro do seu carro, fazendo com que ele perdesse a perna esquerda. Desde então o acusado está aposentado por invalidez.
O outro acusado pelo crime é o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, que tem 46 anos. Ele é acusado ter sido o motorista de Ronnie Lessa durante a ação. Segundo informações do Jornal O Globo, Élcio atuou como piloto de escolta de cargas na PM, o que pode indicar uma certa experiência na função. Em 2011, o ex-policial foi um dos 45 denunciados na Operação Guilhotina, deflagrada pela Polícia Federal para prender policiais civis e militares acusados de corrupção.
Entre os crimes denunciados pela Operação Guilhotina estão: formação quadrilha, peculato, corrupção passiva, comércio ilegal de arma, extorsão qualificada e outros delitos. A partir de então as coisas não caminharam bem para Élcio, comprovado o seu envolvimento em ações ilegais, ele chegou a ser preso de forma preventiva, além de ser expulso da corporação. Em 2017, a Justiça carioca negou em segunda instância um pedido feito pela defesa do ex-militar para reverter a decisão que o expulsou da PM.
Além de prender os dois responsáveis pelo crime, a Operação Lume também realizou 32 mandados de busca e apreensão. No mesmo dia da prisão dos acusados, policiais da Divisão de Homicídios realizaram uma batida na casa de Alexandre Mota de Souza, amigo de infância de Lessa. Na residência foram encontrados 117 fuzis do modelo M-16, o armamento estava desmontado e armazenado em caixas de papelão. Segundo o Secretário da Polícia Civil, Marcus Vinicius Braga, essa foi a maior apreensão de armas da história do Rio de Janeiro.
Como a investigação chegou aos acusados?
Parte VI
A emboscada realizada pelos criminosos durante a espera por Marielle na Rua dos Inválidos resultou em um importante deslize na ação dos criminosos. Ao parar o carro próximo a um beco, enquanto aguardava vagas para estacionar, Élcio posicionou o veículo bem próximo a uma das câmeras de segurança do local.
No curto período a qual eles se mantiveram ali a câmera pôde flagrar duas ações:
A primeira foi um provável movimento de troca de assento realizado pela pessoa que estaria no banco de trás. Nesse momento foi possível visualizar em frames do vídeo uma parte do braço do ocupante do banco traseiro, quando ele o estende por cima do assento. Esse pequeno detalhe foi decisivo para a investigação.
Somente pela imagem do braço não é possível identificar quem é a pessoa que está no veículo. A promotora Elisa Fraga explicou durante a coletiva sobre o caso que essa parte da investigação analisou as imagens por meio de câmeras de infravermelho. Com o auxílio da tecnologia foi possível constatar a presença de marcas escuras no braço do atirador. Essas manchas podem ser interpretadas como tatuagens, que ao serem confrontadas com os desenhos e as características físicas do braço de Ronnie, apresentaram diversas semelhanças.
Antes dos peritos chegarem à conclusão de que o braço das imagens era o de Lessa, o nome dele já havia surgido na investigação devido a uma denúncia anônima. A denúncia relatou que o policial reformado havia recebido 200 mil reais pelo crime. Junto com essas informações, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), apurou uma movimentação suspeita na conta do acusado.
Imagens obtidas com exclusividade pelo telejornal RJ2, da TV Globo, mostraram Lessa em 9 de outubro de 2018 entrando em uma agência bancária junto com outra pessoa. No vídeo é possível identificar que ele retira um envelope da mochila do acompanhante e entrega ao gerente no caixa. A investigação aponta que na ocasião ele realizou o depósito de 100 mil reais. Movimentação atípica e incompatível com os 7 mil reais mensais recebidos por ele de aposentadoria.
A segunda ação flagrada dentro do carro enquanto os criminosos aguardavam as vítimas, mostra uma claridade no interior do veículo. No momento em que o carro para uma luz acende próxima ao painel. Nas imagem é possível deduzir que seja a tela de um aparelho celular, acoplado a um suporte veicular instalado ao lado esquerdo do volante. A luminosidade sofre alterações, o que indica o uso daquele aparelho. É aí o X da questão e uma das principais brechas deixadas pela dupla.
Todo e qualquer aparelho telefônico em uso, exceto aqueles que são utilizados em modo avião, emitem sinais que são captados e arquivados por Estações Rádio Base mais próximas. Essas estações são antenas de telefonia, geralmente pintadas de laranja e branco. Não é difícil se deparar com várias dessas em qualquer cidade do país. Cada estação dessa possui uma identificação e fica responsável por realizar a cobertura de uma determinada área.
Mesmo que os indivíduos não utilizem o aparelho celular para realizar ligações, essas estações conseguem captar sinais emitidos por eles. Para chegar até o celular que estaria sendo utilizado naquele momento, a investigação mapeou 2.428 estações, espalhadas entre a câmara de vereadores e o local do crime.
O cruzamento desses dados foi uma tarefa complexa, além disso as informações captadas por essas estações são sigilosas. Para obter o acesso foi necessário a quebra do sigilo de comunicação das torres. Mesmo com a autorização da justiça, o trabalho foi árduo. Ao todo 33 mil linhas foram captadas. Para se chegar ao aparelho exato que estava sendo usado dentro do carro aquela noite, a investigação buscou os celulares utilizados naquela região específica, próximo a Rua dos Inválidos e no mesmo horário indicado nas câmeras. Esse refino diminui o número de linhas para 318.
O cerco então começava a se fechar. Dessas 318 linhas telefônicas investigadas, uma chamou atenção. A tal linha manteve contato uma pessoa ligada a Ronnie Lessa, que nessa altura já estava sendo investigado. As informações bateram e o quebra cabeça ganhava forma. Essa constatação motivou um pedido de quebra do sigilo telemático de Lessa. Essa ação representa o acesso aos dados de internet do acusado: histórico de acesso, buscas realizadas através do google, sites acessados, troca de e-mails e conversas, tudo esses dados foram disponibilizados para investigação graças a quebra.
Os rastros digitais deixados por Ronnie Lessa
PARTE VII
Com a autorização em mãos a investigação teve acesso aos rastros digitais deixados por Lessa antes do crime. As buscas realizadas por ele na internet o expôs, dando indícios da sua participação nos assassinatos. A lista de conteúdos pesquisados pelo acusado é vasta, nela é possível identificar as datas e os horários de consulta. Armas, silenciadores, manuais para a montagem de armamentos, rastreadores para veículos, locais visitados por Marielle, endereços de parentes e perfis pessoas ligadas a partidos de esquerda, tudo isso foi buscado por ele.
O conteúdo das buscas
Segundo dados da investigação, no dia 2 de março, 12 dias antes do crime, Lessa pesquisou no Google informações sobre o curso de inglês a qual Marielle estudava. O local fica no Bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio. Naquele dia a vereadora esteve no curso no período da manhã, porém o endereço do local pesquisado pelo acusado não estava correto, o que pode ter causado um primeiro desencontro com a vítima.
Já no dia 6 de março, Lessa mais uma vez consultou o Google, desta vez em busca do endereço de um campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O acusado buscou a localização do campus da Praia Vermelha, que fica no Bairro da Urca. Informações colhidas da agenda de Marielle confirmam que ela participou de uma aula no período da noite, só que em outro campus, o do Largo do São Francisco, no centro da cidade. A partir dessa informação podemos constatar um segundo desencontro entre Ronnie e Marielle.
Uma das pesquisas que mais intrigaram a polícia foi feita por Lessa no dia 12 de março, 2 dias antes do crime. Ele consultou o Google Maps e buscou por imagens de uma residência localizada no Bairro do Rio Comprido. A casa é o antigo endereço de Marielle e hoje pertence ao seu ex-marido, Eduardo Alves. Na manhã daquele dia a vereadora esteve no local, por cerca de 3 horas, a informação foi confirmada por Eduardo e consta no relatório da investigação.
A informação sobre o antigo endereço de Marielle chama a atenção. Uma matéria publicada pelo G1, no dia 14 de março de 2019, explica que o endereço pesquisado está cadastrado no Sistema de Dados de Inteligência Estadual como “Residência de Marielle Franco”. Até o momento não foi confirmado se os criminosos tiveram acesso a esse sistema de dados ou se alguma informação foi vazada de lá.
A denúncia realizada pelo Ministério Público e encaminhada à Justiça, constam as buscas realizadas por Ronnie Lessa no Google. Além de procurar por informações relacionadas a rotina da vítima, o acusado também comprou pela internet equipamentos que possivelmente o auxiliaram na ação.
Bloqueadores de sinais de GPS e celulares foram adquiridos meses antes do crime, assim como um dispositivo que impede que radares eletrônicos possam captar a placa de veículos. Além do mais, uma caixa impermeável para enterrar armas de até 114 cm foi adquirida pelo acusado através da internet.
Perfis de outras pessoas buscadas pelo acusado
Diante das pesquisas realizadas por Lessa, a investigação traçou um perfil sobre a sua personalidade. Os agentes detectaram uma certa repulsa a pessoas ligadas a esquerda no espectro político. Junto com as buscas pelos endereços ligados a Marielle, o acusado também realizou pesquisas sobre outros políticos e militantes de partidos de esquerda. Uma matéria do Estadão do dia 20 de março de 2019, revelou alguns alvos das buscas do acusado.
Entre os nomes pesquisados estão o do Deputado Federal Marcelo Freixo, amigo e companheiro de partido de Marielle. Freixo é um dos principais nomes no combate ao crime organizado. Em 2008 ele presidiu a CPI das milícias no Rio de Janeiro, que resultou em 226 indiciados, entre eles políticos e policiais. Outro nome pesquisado é da socióloga Julita Lemgruber, que realiza trabalhos com ênfase em violência e criminalidade. A socióloga também foi ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e ouvidora da Polícia Militar no Rio.
Seguindo a lista de nomes buscados por Ronnie Lessa na internet, chegamos ao da antropóloga Alba Zaluar. A pesquisadora desenvolveu trabalhos relacionadas a violência doméstica, policial e urbana, vinculadas ao tráfico de drogas. Além da antropóloga, duas pesquisadores da ONG Redes da Maré, tiveram seus perfis pesquisados.