AI-5: 50 anos do golpe dentro do golpe

Prisões, perseguições e futebol: os primeiros dias no Ceará após o AI-5

Por Carlos Mazza (reportagem) Por Fred Souza (pesquisa histórica)

“Presidente baixa novo ato institucional: decretado recesso do Congresso”. A manchete, que estampa capa do O POVO de 14 de dezembro de 1968, registra primeiras horas do Ato Institucional nº 5, editado no dia anterior. Em Fortaleza, quartéis do Exército entravam em prontidão, mas vendiam clima de “calma e ordem” na versão oficial. O outro lado do ato, que deu plenos poderes ao ditador Costa e Silva para fechar o Legislativo e cassar direitos políticos, viria à capa do jornal dois dias depois: “circulam rumores da prisão de dois estudantes em Fortaleza”. Chegava no Ceará o mais duro período de repressão da Ditadura Militar.

Capa do O POVO em 14 de dezembro de 1968, com a notícia do AI-5

Se em todo o País surgiam relatos da prisão de líderes políticos e jornais sob censura, em Fortaleza o assunto era um só – futebol. No dia seguinte ao AI-5, a cidade vivia véspera de Clássico-Rei, com partida decisiva entre Ceará e Fortaleza pela final da I Copa Estado do Ceará, no estádio Presidente Vargas. O Fortaleza, campeão na fase inicial do torneio, jogava por um empate, mas o Ceará trazia a força do azarão que cresceu na reta final da disputa.

O POVO de 16 de dezembro, com notícias sobre prisões e Clássico-Rei

"O atacante Gildo fez chute espetacular entre Carneiro e William e a pelota penetrou nas redes, num verdadeiro gol decorativo"

Crônica esportiva narra Clássico-Rei dias após o AI-5. Partida não chegou ao fim por quedas de energia

15 de dezembro de 1968. Contrariando todos os prognósticos, Gildo desbanca a zaga do Leão e marca pelo Ceará. Tropas do Exército vão às ruas de Fortaleza e prendem as estudantes Nancy Lourenço e Ruth Lins Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará (UFC), acusadas de participar de congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE) dois meses antes.

O jornalista Edmundo Maia, correspondente do jornal carioca "Última Hora", desaparece na Capital sem dar notícias à família. Em Iguatu, o agricultor e líder sindical Manuel Alves de Oliveira, o “Jesus”, é preso sob acusação de ser subversivo. De volta ao PV, decepção: com quedas de energia, o clássico é suspenso antes do fim.

Notícias das primeiras prisões do AI-5 no Ceará surgiram de forma esparsa e lenta, sem confirmação oficial das autoridades à imprensa. Nos dias que seguiram a ruptura institucional, nem mesmo as famílias saibam do paradeiro dos presos. Na edição do O POVO de 17 de dezembro de 1968, cinco dias depois do AI-5, o coronel Edilson Moreira da Rocha, secretário de Polícia do Ceará, inicialmente se recusa a confirmar prisões políticas em Fortaleza. Sob pressão, acaba cedendo em uma única informação: “Realmente duas moças estão presas no quartel da Polícia Militar” (pg. 6) diz, sem confirmar nomes.

Prisão de Edmundo Maia é confirmada pela família, que relata batida de tropas do Exército na casa do jornalista carioca. “Um tenente e outros soldados apanharam, ontem, às 7 horas da manhã, seus objetos de uso pessoal, como pasta, sabonete, etc; A esposa tentava, na manhã de hoje, obter comunicação com ele”. Já prisão de Jesus é confirmada pela Federação de Trabalhadores Rurais do Ceará. Outros dois estudantes da UFC, Assis Aderaldo e José Wilson Aderaldo, também são “dados como presos” – novamente sem confirmação oficial.

"Com a Ditadura, ficou muito difícil se fazer militância sindical, operária, porque os sindicatos foram ficando muito visados pelo governo. Então um dos únicos espaços que você tinha de resistência era a universidade, o movimento secundarista. Por isso foi uma grande mobilização, inclusive com muitos estudantes acabando optando pela luta armada”, explica o historiador Airton de Farias. 

Matéria do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, registra expulsão de estudantes da Universidade Federal do Ceará, mesmo sem confirmação oficial

Presa em dezembro, Ruth Lins Cavalcante seria expulsa do curso de Filosofia da UFC dois meses depois, em fevereiro de 1969. Junto com ela, tiveram matrícula cancelada pelo Conselho Universitário outros sete estudantes, entre eles o ex-deputado José Genoíno Neto, um dos fundadores do PT e preso no escândalo do Mensalão, e Bergson Gurjão Farias, preso em 1969 que integrou a luta armada e foi morto na Guerrilha do Araguaia em 1972.

(Foto: O POVO.doc)
 

No Congresso, a edição do AI-5 provocou a cassação por subversão de dois deputados federais cearenses, José Martins Rodrigues e Padre Antônio Vieira (ambos do MDB). Na Assembleia, foram cassados os “subversivos” Doria Sampaio, Cordeiro Leite e Luciano Magalhães (todos do MDB).

Cedendo a pressões do jornalista Carlos Lacerda, que acusou o Ceará de ser polo de contrabando, a Ditadura cassou oito deputados estaduais do Arena acusados de corrupção, sem direito a julgamento. Entre eles, está Murilo Rocha Aguiar, que batiza hoje o centro de comissões da Assembleia. 

"Àqueles que constituem reconhecida minoria"

Se o impacto devastador do AI-5 sobre os direitos individuais parece claro 50 anos depois, autoridades da época minimizavam – quando não se omitiam de qualquer julgamento – o teor ditatorial das mudanças baixadas pelo governo militar. Nos dias seguintes à edição do decreto, membros do regime e líderes políticos evitavam comentar as primeiras notícias de prisões arbitrárias e de “sumiço” de opositores dos militares. 

Na imprensa, oficiais do governo reafirmavam tese de calmaria e ordem

“A situação em todo o território nacional é tranquilíssima”, disse em 15 de dezembro, em declaração oficial, o ministro da Justiça e um dos signatários do ato, Gama e Silva. Àquela altura, três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já haviam tido processos de aposentadoria compulsória abertos, vários deputados de todo o País presos e alguns jornais – incluindo O Estado de São Paulo – impedidos de circular.

A primeira declaração oficial da Ditadura ao Ceará só viria dias depois, registrada na edição de 19 de dezembro do O POVO. Comandante do IV Exército e responsável pelo comando militar do Nordeste, o general Alfredo Souto Malan também reforçou tese de calmaria. “Àqueles que constituem reconhecia minoria, advirto que encontrarão pela frente a totalidade dos brasileiros autênticos e, entre eles, soldados da Pátria, decididos e dispostos, todos, a cumprirem seus sagrados deveres”. E conclui: “Unamo-nos todos pelo bem do Brasil”.

Na mesma página do jornal, é noticiada a prisão em Teresina de um sósia de Márcio Moreira Alves, pivô da crise que levou ao AI-5 após um discurso crítico à Ditadura no plenário da Câmara dos Deputados. “O comando da guarnição federal foi avisado por um funcionário do aeroporto e imediatamente entrou em ação, localizando o rapaz em um dos hotéis de Teresina (...) Era um agente comercial”. O Márcio real, que provocou a ira do regime após sugerir boicote da população ao desfile de 7 de setembro e que mulheres não namorassem oficiais do Exército, já havia fugido para o Chile. 

Exceção da exceção: os doze artigos do AI-5

O Ato Institucional nº 5 provocou ruptura da ordem jurídica no Brasil. A Constituição de 1967 e as eleições parlamentares continuaram existindo, mas a mudança na lei foi tão brusca que garantiu um Legislativo domesticado. Todo político “não-cooperativo” passou a estar sujeito à cassação em qualquer hora e por qualquer motivo, sem chance de defesa.

Capa do O POVO de 20 de dezembro

A suspensão de garantias constitucionais levou a uma verdadeira hipertrofia do Estado sobre os direitos individuais, que resultou na institucionalização de práticas como a tortura e prisões arbitrárias. O Supremo Tribunal Federal (STF), até então pouco atingido pelos decretos militares, teve suspensos os poderes de revisar decisões do presidente e de conceder habeas corpus em crimes "políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social".

Não foram só políticos de esquerda ou pessoas ligadas à luta armada que foram vítimas da perseguição. Com a classificação genérica sobre o que era subversivo, a Ditadura passou a usar os poderes do AI-5 para perseguir políticos, imprensa e até o Judiciário. Ministros do STF contrários às medidas, como Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, foram aposentados compulsoriamente. Em solidariedade, os também ministros Lafaiete de Andrade e Antônio Gonçalves de Oliveira pediram aposentadoria. Os demais aquiesceram.

O "golpe final" à democracia veio através da imposição da censura prévia. Com critérios vagos, ficou instituída a possibilidade de censura total e sem chance de recurso da imprensa e de qualquer obra artística. A medida era aplicada amplamente na música, cinema, teatro e televisão. Até mesmo obras simpáticas ao regime militar, mas que não se encaixassem aos critérios de “moral e bons costumes” do censor, estariam sujeitas a cortes.

OS SIGNATÁRIOS:

 

No primeiro pronunciamento público após o decreto, o presidente Costa e Silva defendeu a artimanha jurídica do AI-5, que classificou como “direito revolucionário”. “(O governo militar) deu prova de tolerância e espírito democrático e, ao invés de utilizar indevidamente as armas que o povo lhes confiou, procurou os recursos que a lei lhe facultava”, disse. 

A reação armada ao AI-5

Fortaleza, 16 de março de 1970. Um carro-forte do London Bank deixa o terminal do Mucuripe rumo ao Centro de Fortaleza. O trajeto, que deveria transportar 200 mil cruzeiros para a sede do banco, é interceptado por volta das 17h40min por um corcel verde. A bordo, três homens armados com revólveres, que tomam a camioneta e fogem do local. Não era um assalto comum, mas sim uma ação orquestrada pelo Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), grupo terrorista que atuava no País.

A história, narrada no livro “Além das Armas: Guerrilheiros de esquerda no Ceará durante a Ditadura Militar”, do historiador cearense Airton de Farias, mostra um dos episódios mais marcantes da luta armada no Estado. Nos meses que seguiram o AI-5, grupos de esquerda que tentavam derrubar a Ditadura Militar radicalizaram o combate ao governo federal, optando por ações violentas em todo o País, inclusive Fortaleza.

Em 1968, movimento estudantil faz ato no Rio de Janeiro (Foto: Evandro Teixeira)
 

Um dos casos mais marcantes foi um assalto tocando pela Aliança Libertadora Nacional, fundada pelo guerrilheiro Carlos Marighella, ao Banco Mercantil, situado próximo ao Mercado São Sebastião. Outra ação, que não obteve êxito, foi a tentativa de guerrilheiros de estourar uma bomba no curso de línguas do Ibeu, “símbolo da cultura norte-americana no centro de Fortaleza.

“Mesmo com o início da Ditadura e com a repressão ocorrendo, seguiram ocorrendo articulações, principalmente greves. Com o AI-5, cada vez mais os militantes acabaram investindo na luta armada. O Ceará chegou inclusive a ser ponto de treinamento, os guerrilheiros treinavam aqui e iam para a Guerrilha do Araguaia (...) na maior parte estudantes”, diz Airton de Farias.

Apesar das reações violentas, o historiador destaca pouca repercussão do movimento contestador à Ditadura no Ceará. “Em geral as elites apoiavam. Aqui era um estado muito frágil, pequeno, e havia um centralismo muito grande”, diz. Ele destaca ainda a relação forte do governador à época, Plácido Castelo, com o governo federal. “O MDB era um partido inexpressivo aqui, os outros estavam presos, na clandestinidade ou partido para a luta armada”.

Manifestantes queimam veículo (Foto: Evandro Teixeira)