O poder da identificação

Por Isabel Costa

Will, Mike, Dustin, Lucas e Eleven são os responsáveis pelas aventuras da série DIVULGAÇÃO/NETFLIX

Mike, Lucas, Dustin, Eleven e Will formam um grupo coeso, divertido e sagaz. As crianças de “Stranger Things” - série que ganha a segunda temporada na sexta-feira, 27 de outubro - arremataram corações desde a estreia da produção, em julho de 2016. A fórmula criada pelos irmãos Matt e Ross Duffer é simples: uma cidade pequena, um monstro para combater, um mistério para solucionar, uma família para salvar e adultos que “embarcam” no dilema infantil. Construiu-se o sucesso, que transformou a série na queridinha da plataforma de streaming Netflix.

Segundo dados da empresa, “Stranger Things” é a décima série mais assistida na plataforma, posição superada no Brasil, onde ela é a oitava mais maratonada. Além do interesse do público, a produção foi aplaudida pela crítica especializada, acumulando 21 prêmios e 76 indicações, segundo cálculo do Internet Movie Database (IMDb).

Para quem não lembra, o fenômeno da Netflix conta a história do menino Will Byers (Noah Schnapp), de 11 anos, que desaparece misteriosamente, provocando uma busca desenfreada de seus amigos, Dustin (Gaten Matarazzo), Mike (Finn Wolfhard) e Lucas (Caleb McLaughlin), e família. Com elementos de horror e aventura, a trama segue as crianças na procura, que tem mortes, criaturas fantásticas, mundo invertido e uma corporação de experimentos científicos. Ao fim, familiares e policiais se envolvem na busca. No caminho, os garotos criam amizade com Eleven (Millie Bobby Brown), uma menina misteriosa e cheia de poderes.

“Nem sempre as crianças podem ter a percepção correta sobre o que o diretor está tentando construir. Isso fica muito mais fácil quando você exige delas que elas ajam como qualquer criança, criando algo que nos parece muito mais natural. Isso é muito perceptível em tela”, explica Kevin Alencar, integrante do blog Quarto Ato, ressaltando as semelhanças de “Stranger Things” com obras com clássicos “da Sessão da Tarde” como “Conta Comigo” (1986) e “Os Gonnies” (1985). “Na série da Netflix, elas xingam, brigam umas com as outras, o que acaba gerando uma identificação com o público, que também foi criança”, pondera Kevin.

Obra derivada

O escritor Stefano Sant'anna acredita que a trama de “Stranger Things” atinge pessoas de diversas idades. “O primeiro ponto são as crianças colocadas como centro das atenções, atraindo um público infantojuvenil que é difícil de capturar”, pontua Stefano, lembrando que, apesar da presença do grupo de atores mirins na produção, a história tem elementos e características "pesadas".

“Tem o mistério sobrenatural com protagonistas jovens, essa é uma fórmula interessante para captar públicos de diferentes idades e com diferentes gostos". Stefano é organizador da coletânea de contos “Mundo Invertido”, que será publicada pela Editora Wish, poor meio de financiamento coletivo. “Eu assisti a série toda em dois dias e, quando acabou, fiquei pensando: ‘tenho que fazer algo relacionado a isso’”. O livro, ele explica, trará histórias diversas sobre um dos elementos mais impactantes da série: o universo paralelo no qual reside a monstruosidade apelidada de “Demogorgon” e onde o personagem Will Byers (Noah Schnapp) fica preso durante a primeira temporada.

Stefano lembra que, ao longo da trama, as personagens lutam por um objetivo em comum e pela resolução do mistério que envolve seres sobrenaturais, grandes corporações e uma menina com poderes incalculáveis. “As personagens têm uma causa e é uma causa muito importante para se lutar. Isso move o público em direção à produção", acredita o escritor.

Elenco infantil

MIKE

MIKE

Finn Wolfhard, intérprete de Mike Wheeler, é canadense e tem 14 anos. Além de Stranger Things, participou de It - A Coisa (2017) e de The 100 (2014).

LUCAS

LUCAS

Caleb McLaughlin, intérprete de Lucas, é americano e é o mais velho do elenco mirim, com 16 anos. Fez participações em produções como Forever (2014), Shades of Blue (2016) e Law & Order: Special Victims Unit (2012).

ELEVEN

ELEVEN

Millie Bobby Brown tem 13 anos. Ela nasceu na Espanha e foi criada no Reino Unido. Coleciona participações em Grey's Anatomy (2014), Intruders (2014), NCIS (2014) e Once Upon a Time in Wonderland (2013). Na série, ela interpreta Eleven.

DUSTIN

DUSTIN

Gaten Matarazzo interpreta o cativante Dustin. O ator é portador de uma doença que afeta os ossos da face, a displasia cleidocraniana. Por conta disso, ele tem problemas no desenvolvimento da arcada dentária e já passou por cirurgia para que os dentes possam nascer normalmente. Ele é norte-americano e tem 15 anos.

WILL

WILL

Noah Schnapp interpreta Will, personagem que desaparece logo no início da primeira temporada de Stranger Things. Ele é americano e é o casula do grupo, com 13 anos.

MAX

MAX

Sadie Sink entra na série para reforçar o grupo de crianças. Poucas informações foram divulgadas sobre sua personagem, chamada Max. A atriz tem produções de peso na filmografia - como a série 'American Odyssey' (2015), e os filmes 'Punhos de Sangue' (2016) e 'O Castelo de Vidro' (2017). Ela tem 15 anos.

Entre Spielberg e Stephen King

Por Camila Holanda

Uma mistura das produções de fantasia infantil de Steven Spielberg com o horror de John Carpenter e os contos de Stephen King. Assim se pode (tentar) definir uma das facetas de “Stranger Things”. A primeira temporada mostrou que a série é uma verdadeira colagem de referências ao universo da cultura pop, e parte do sucesso pode ser atribuído a este perfil nostálgico. Entre os filmes que inspiraram os irmãos Matt e Ross Duffer – criadores do seriado – a desenhar personagens, narrativas e plot twists, “E.T – O Extraterrestre” (1982) é um dos mais evidentes.

Nas inúmeras referências ao longa de Spielberg, estão as crianças que vivem nos anos 1980 correndo em cima de bicicletas para salvar amigos em apuros. Uma das cenas mais icônicas que liga as duas produções é quando Eleven (Milly Bobby Brown) precisa se disfarçar com vestido elegante e peruca loira, tal e qual E.T fez em 1982.

Outro longa com a assinatura de Spielberg e que surge em “Stranger Things” é “Os Goonies” (1985), de Richard Donner a partir de história original do mestre do cinema de fantasia. A aventura leva ao centro da trama um grupo de amigos que encontra o mapa do tesouro do pirata Willy Caolho e começa a seguir as pistas indicadas pelo papel, o que os leva a um mundo subterrâneo permeado por passagens secretas e armadilhas.

Outros filmes que formam o quebra-cabeça de referências da série são o horror “Poltergeist: O Fenômeno” (1982), de Tobe Hooper e com roteiro de Spielberg, “Alien – O Oitavo Passageiro” (1979), de Ridley Scott, “Conta Comigo” (1986), de Rob Reiner e baseado em obra de Stephen King, “Chamas da Vingança”, de Mark L. Lester, a partir de obra de King, e “O Enigma de Outro Mundo” (1982), de John Carpenter. A opção por trazer Winona Ryder para a trama também remete às décadas de 1980 e 1990, quando a atriz fez bastante sucesso ao estrelar filmes, como “Os fantasmas se divertem" (1988), de Tim Burton, "Edwards Mãos de Tesoura" (1990), de Tim Burton e "Alien – A Ressurreição" (1997), de Jean-Pierre Jeunet.

Para a segunda temporada, foram renovadas as referências, que datam anos próximos a 1984, época em que se ambientam os nove episódios da trama. Em trailers e cartazes que anunciam a segunda temporada de “Stranger Things”, os criadores mostram que os episódios criados para este 2017 mantêm a mesma linha da temporada anterior. No embao da música “Thriller”, de Michael Jackson, que também inspira cena da série, imagens preliminares do novo ano do seriado á referenciaram o game “Dragon's Lair”, clássico de 1983, e que está presente no dia a dia do quarteto de amigos Dustin, Mike, Lucas e Will.

O filme “Os Caça-Fantasmas” também ganha homenagem em cenas dos novos episódios. Dirigido por Ivan Reitman, o longa foi lançado nos cinemas em 1984 e mostra uma equipe de cientistas que perde o emprego e decide virar “caçador de fantasmas”, encontrando uma porta de entrada para outra dimensão. A referência liga os protagonistas da série dos anos 2010, na qual um grupo de crianças encontra relação com a realidade alternativa (até que alguma teoria prove o contrário) do Mundo Invertido.

O conto de Stephen King chamado "O Nevoeiro", que deu origem ao filme de Frank Darabont de 2007 e a série homônima original da Netflix de 2017, também é ícone referencial presente nesta nova temporada. Em cena de trailer lançado pela produção, é possível ver clara alusão, quando Eleven aparece fugindo de uma fumaça escura que parece perseguí-la. Além disto, Will, que voltou do Mundo Invertido com diversos lapsos espaço-temporais, consegue enxergar o monstro Demogorgon em meio a uma nuvem de fumaça, uma referência a cena do longa-metragem de 2007.

O conto de King traz ao centro da trama uma cidadezinha norte-americana que, de repente, fica envolta por uma densa e misteriosa névoa, que esconde tragédias e monstros do outro lado. Mais recentemente, nos cinemas, foi possível perceber as semelhanças propositais que os irmãos Duffer pinçaram do conto “A Coisa”, também de autoria de Stephen King, que rendeu um filme para TV em 1990 e um longa para o cinema deste ano. “It: A Coisa”, de Andy Muschietti, conta inclusive com o ator Finn Wolfhard, o Mike, de “Stranger Things”, no elenco.

“Stranger Things” é uma homenagem bem estruturada a clássicos da cultura pop, que passa, principalmente, pelo cinema, mas atravessa outras linguagens, como música e literatura. Apesar de ser permeada por referências, a série consegue encontrar fôlego para ter autonomia e vida própria, utilizado os clássicos como alimento para uma trama original, que capta e segura a atenção do público.

Marcas para além do saudosismo

Ao mesmo tempo em que "Stranger Things" agradou por seu apelo nostálgico, outros diriam que a produção não passa de uma grande cópia dos clássicos dos anos 1980. Mas podemos dizer que a série, de forma bem sucedida, retrata o imaginário de uma época que deixa muitas saudades para fanáticos da cultura pop de diversas gerações, até mesmo de quem não viveu o período.

Para além da discussão sobre referências, a série tenta, em alguns momentos, subverter o estilo, quebrando estereótipos de alguns personagens. Um exemplo claro é Steve Harrington (Joe Keery), que faz o típico garoto popular da escola com atitudes questionáveis, para, ao fim, se redimir e se livrar, ainda que parcialmente, dessa definição.

A série não é apenas nostálgica em termos de obras passadas, mas também por nos fazer recordar da tecnologia da época, por lembrar o que era ser criança em um tempo que não havia internet e todos os novos rituais sociais que vieram com ela. Isso tudo sem dispensar a qualidade visual em nível de produções audiovisuais mais recentes.

Original ou não, Stranger Things entrega, de forma competente, o que o público pede. A segunda temporada da produção promete oferecer ainda mais dessa grande dose de saudosismo que conquistou o coração de tantos espectadores (Alice Falcão, produtora de conteúdo do canal Bacontástico).

Vídeo

O que diabos � o Mundo Invertido?

Por Henrique Araújo

Uma das teorias mais em voga sobre Stranger Things diz respeito à natureza do Mundo Invertido (MI), essa segunda camada sob a qual se esconde o monstro com o qual Eleven e a turma de garotos se defrontam.

Resumidamente, ela propõe que o MI é o futuro de Hawkins e não apenas uma outra dimensão, como um avesso. E sugere ainda que El é o Monstro. A primeira proposição é pouco consistente. Para a segunda, há farto material, que a própria série se encarrega de oferecer. Todas as pistas estão lá, fáceis de achar.

Aqui, trato apenas do Mundo Invertido. A premissa dessa teoria teria impacto gigantesco sobre os personagens e o desenrolar da história. Para tanto, o autor da ideia coletou indícios ao longo dos oito episódios. É interessante. Não deixa de ser. É como rever ST sob a lente de uma nova leitura.

Pessoalmente, tenho uma preocupação com o risco de ST se perder nos meandros da viagem no tempo, como “Lost” ou outras ficções, tais como o universo de “Exterminador do Futuro”, no qual toda hipótese de racionalização, ainda que livre e cheia de amarras, seria totalmente ociosa diante da imensa licença poética que os filmes já utilizaram em quase 40 anos desde sua estreia nos cinemas.

Viajar no tempo é arriscado, principalmente na ficção. Quase desaconselhado.

Mas não é por isso que acho desinteressante a teoria. Nem porque considero infantil a saída estética e teórica para a fenda no tempo, que acaba funcionando como um vaso comunicante entre os dois mundos, sejam eles de diferentes dimensões, sejam temporalmente apartados (futuro e passado), e também como corredor para o Monstro.

Acho desinteressante porque a viagem no tempo é uma solução comum, já amplamente explorada, desgastada, que está no DNA de qualquer ficção científica e, salvo uma grande novidade, não traria grandes contribuições para a série.

Entre viajar no tempo e o câncer de Will, fico com o câncer (a teoria também especula sobre uma doença que acomete o personagem).

Para mim, duas perguntas são primordiais para entender ST e seu universo bifurcado no qual um universo é o espelho bizarro do outro.

1. Qual é a natureza do Monstro – de onde veio, do que é feito, para onde vai?

2. O que é o Mundo Invertido?

Minha opinião continua sendo a de que o MI é uma dimensão paralela, avessa à nossa. Não o futuro. Mas um aspecto da realidade que procuramos recalcar, como os traumas de Eleven. Lembrando: há o salão escuro e o MI propriamente dito. O salão é o ambiente das interações psíquicas de El com outros personagens, quando se projeta durante as experiências do doutor Brenner. Sua aparência é a da anti-paisagem.

Enquanto o MI é, digamos assim, o habitat do Monstro, uma espécie de Hawkins degradada, mas não futurista. Ele vive numa realidade que contamina a nossa e causa efeitos físicos, como fica provado no final, quando Will retorna, mas, depois da ingestão de matéria orgânica do outro lado, ou seja, da mesma natureza do monstro, acaba oscilando entre os dois mundos. Ora enxerga uma realidade, ora outra.

Pergunta: nesse ponto, Will também passa a viajar no tempo? Está apenas delirando? Ou as duas coisas?

Pergunta: e quando, antes de Will, sua mãe, Joyce, vê deformar-se uma parede de casa, ela também está delirando? Está testemunhando uma viagem no tempo? Ou vendo uma dimensão afetando fisicamente outra, com o MI e a realidade de Joyce imbricando-se?

Pergunta: esqueletos no MI indicam que outras pessoas estiveram lá antes dos habitantes de Hawkins ou apenas que o Monstro pode ter caçado noutras cidades?

Eleven não viaja no tempo. Ela se projeta. Nos experimentos da organização-fetiche, uma ideia tipicamente kafkiana, estimulada por câmaras de privação sensorial, é como se sua consciência se estendesse a outro lugar. Mas nunca a outro tempo.

Em resumo: a hipótese de viagem no tempo não encontra guarida na série. Procurem sinais de que algo ou alguém viajou no tempo. Não vão encontrar. Procurem sinais de que o Monstro vem do futuro. Não há. Procurem evidências de que Hawkins está ameaçada de ser engolida por uma fenda. À exceção do laboratório e da gosma no depósito nos fundos da casa do Will, não acharão nada.

Logo: o portal não se expande a ponto de engolir a cidade, devorando-a. Ele é uma fenda. Uma porta. Sua função é comunicar.

Embora cause perturbações no campo magnético, a gosma no depósito não aumenta nem diminui de tamanho.

Conclusão: a ameaça não se dá porque a matéria do MI fagocita a matéria do nosso mundo, mas porque a contamina. A ameaça deriva de dois pontos: o Monstro é predador; 2. Seu universo infecta o nosso.

No entanto, temos de lembrar sempre que estamos falando de uma série que fez desaparecer uma das personagens sem que isso resultasse em qualquer tipo de preocupação para as pessoas. Ninguém procurou Barb. Nem mesmo Nancy, sua melhor amiga. Logo, há muitos buracos. E não são buracos no tempo. São no roteiro mesmo.

Stranger Things com cartazes de filmes clássicos