O POVO Online aproveitou a deixa do lançamento do livro Soldados da Borracha: Os Heróis Esquecidos, da jornalista Ariadne Araújo e do historiador Marcos Vinícius Neves, para conversar com sobreviventes daquela guerra inglória. Você é nosso convidado a seguir a história de Marcelina da Costa, 82, e, também, o conteúdo que o jornal O POVO publicou sobre a saga dos arigós cearenses na floresta durante a 2ª Guerra Mundial
Por Demitri Túlio
Vinte e cinco mil reais de indenização pagam pela vida e pela sina de um soldado da borracha desterrado de casa para o inimaginável da floresta amazônica? “Paga não”, responde de pronto a rondoniense Marcelina Teixeira da Costa, 82. Viúva do “arigó” cearense Raimundo Cláudio da Costa, conta que se soubesse não teria dado cabimento ao cortejo e, meses depois, ao casamento com Raimundo.
Não por falta de bem querer e desejo de fazer rebentar uma família ao lado dele. Mas porque as promessas do governo Getúlio Vargas, em meio às negociatas com os EUA durante a 2ª Guerra Mundial, não incluíam (de verdade) um futuro recompensador para quem, de boa intenção, aceitou deixar o Ceará para se alistar no exército de seringueiros pela “vitória dos aliados” contra Adolf Hitler. Raimundo, com 19 anos, foi tirado de Jaguaruana, no Semiárido cearense, em 1945.
“Nada era bom no seringal”. Faz pausa Marcelina. Não havia vizinho no oco da floresta para onde foram mandados para sentar praça. Apesar de os navios terem saídos carregados de arigós da Ponte dos Ingleses, em Fortaleza, para Rondônia, a mata desmedida sumia com as levas de soldados da borracha. Tudo parecia sem fim. Tão assim, que as estradas d´água do rio Cautário ficavam não menos de duas horas de caminhada da casa de madeira de Raimundo e Marcelina. O barco tinha dia marcado para buscar a produção.
Eram o rio e o pensamento as rotas de fuga dali. Ir embora daquela solidão
Marcelina Teixeira da Costa, 82Viúva do arigó cearense Raimundo Cláudio da Costa
Eram o rio e o pensamento as rotas de fuga dali. Ir embora daquela solidão. Aquele inverno rigoroso e a vida inundada durante meses. Ir daquela falta de notícia. Aquela rotina de cativo. “Quem disser que eles não eram escravos, está mentindo”, conta a viúva. Se fizesse borracha, o patrão pagava do jeito dele. Descontava a dívida feita na venda do próprio senhor do seringal. “O que sobrava, Raimundo também gastava lá”, lembra.
Dona Marcelina foi com Raimundo para a mata aparar e cozinhar o látex para uma guerra distante e que não era deles. Poucas mudas de roupa e nenhuma vaidade. Nem batom nem enfeite. “Tinha lá nada. Pra quê?”. Ela é quem questiona.
Raimundo saia às duas da madrugada. Lamparina, tigela, balde, lâmina e centenas de seringueiras para visitar. No caminho de ida, golpeava a madeira branca. Na volta, vinha colhendo. Regressava pra casa “de tardezinha”. Enquanto ele ia comer, Marcelina cozinhava o látex até se transformarem em grandes “bolas de borracha”.
Era a hora que tiravam para conversar? Pergunto. “Era não”, responde e balança a cabeça. A conversa não era muita. Mesmo em casal, levavam mais tempo sozinhos naquela mata de “onças, índios e doenças que matavam arigós”, relembra Marcelina.
Da guerra, em 1945, até nascerem os três filhos (o segundo morreu aos nove meses idade na floresta) e finalmente o regresso para Guajará Mirim, passaram-se mais de 30 anos. “Disse que não ficaria mais no seringal. Raimundo veio atrás, mas não conseguiu se desapegar da mata. Foi a maior parte da vida dele”, recorda.
Dona Marcelina foi cuidar de estudar e botar a menina e o mais novo na escola. Virou auxiliar de enfermagem e empregou-se num hospital federal que cuidava, principalmente, de garimpeiros com malária, beribéri, febre amarela, doença de chagas...
“Nem acredito que sobrevivemos”, diz.
Em 1989, Marcelina Teixeira da Costa veio trabalhar no setor de perícia do então Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), em Fortaleza. Seu Raimundo também voltou para o Ceará, mas nunca deixou de visitar Guajará Mirim. Depois de ter partido nos navios de arigós, em 1945, voltou uma vez para Jaguaruana e quase não foi reconhecido pelas irmãs e parentes. Ele faleceu em 2006, aos 82 anos.
“Tão dizendo, o INSS pediu os documentos, que vou receber R$ 25 mil pelo tempo dele (e dela) como soldado abandonado da borracha. É... Foi muito sofrimento... Prometeram que ele ia ser tratado como herói. Herói!”, desdenha Marcelina.
Parida na selva amazônica Francisca Conceição da Costa, 60, não aparenta a idade que tem. Ri quando lhe dão menos tempo. Bem humorada, ela ensina a fórmula. “Foi o leite extraído da castanha do Pará, colhida na selva amazônica”, enquanto o pai era soldado da borracha em Rondônia. E não é conversa. A mãe, Marcelina Teixeira da Costa, 82, confirma que na falta do alimento animal, pisava a amêndoa até virar “leite”.
A rondoniense Francisca Conceição é a mais velha dos três filhos nascidos do encontro entre Marcelina Teixeira e o soldado da borracha cearense Raimundo Cláudio da Costa. Francisca, hoje professora aposentada, nasceu e passou parte da infância no seringal. No lugarejo conhecido por Canindé, próximo a uma das margens do rio Cautário. “Foi de parteira, em casa, no meio da mata”, reavive a mãe.
O segundo filho, também nascido na mata, sobreviveu pouco mais de seis meses. “Tinha nome, não. Nem era batizado. Morreu daquelas doenças de lá”, ressente Marcelina. O terceiro rebento, Claudemar Antônio da Costa, 58, por sorte e insistência da mãe, nasceu em Guajará Mirim num hospital.
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Soldados esquecidos
Livro e documentário revivem história de homens enviados à Amazônia para o fornecimento de matéria-prima aos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial
Por Jáder Santana
No final dos anos 1990, a então repórter especial do O POVO, Ariadne Araújo, saiu da redação com o objetivo de escrever uma matéria sobre versos eróticos e obscenos. De um dos entrevistados, o cearense João Amaro, na época com 68 anos, recebeu um livro de poemas picantes e uma carta datilografada na qual narrava um lado quase esquecido de sua vida: seus dias de soldado de borracha, metido no coração da Amazônia - o inferno verde - para a extração do látex que seria usado pelos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial.
“Picada pelo mosquito da curiosidade, pelo desejo de saber mais, de investigar aquela história desconhecida, misto de tragédia e aventura, peguei as malas e fui buscar o passado de João Amaro nos igarapés amazônicos, nas margens dos rios barrentos, navegando em canoas ligeiras, balançando na altura da palafitas”, conta Ariadne. Em junho de 1998, com a chamada “Nordestinos viram escravos nos seringais da Amazônia”, publicou o suplemento especial Soldados da Borracha.
O governo brasileiro patrocinou um verdadeiro genocídio
Wolney OliveiraCineasta cearense
Dezoito anos depois dessa aventura, Ariadne participou no dia 19, às 19 horas, no Espaço O POVO de Cultura & Arte, do lançamento do livro Soldados da Borracha: Os Heróis Esquecidos, projeto do cineasta cearense Wolney Oliveira com textos da jornalista e do historiador Marcos Vinícius Neves. Até o fim do ano, Wolney também deve concluir o documentário A Guerra da Borracha, que visita os sobreviventes do episódio e a luta pelo reconhecimento dos seus direitos.
“O governo brasileiro patrocinou um verdadeiro genocídio. Do total de 55 mil homens, aproximadamente 25 mil morreram no primeiro ano”, argumenta Wolney, que embasou sua pesquisa em depoimentos de sobreviventes, dados oficiais e no acervo histórico disponibilizado pelo Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc).
O livro, ricamente ilustrado com fotos, mapas, cartazes e páginas de jornais, ajuda a traçar um panorama sobre a situação precária em que viviam aqueles milhares de homens e mulheres que abandonavam seus estados em busca de trabalho e bons salários nos idos de 1940. Uma caravana de estudantes cearenses, enviada aos seringais para estudar o cenário na época, trouxe o registro de 23 mil mortes causadas por malária, meningite, febre amarela, beribéri, icterícia e ferimentos não cuidados.
Dos soldados que sobreviveram, nenhum assistiu à equiparação de seus direitos aos dos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), como havia sido prometido pelo governo Vargas. Decorridos 70 anos, continuam lutando junto ao Congresso Nacional, à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Corte Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Entrevista
Marcelina Teixeira da Costa - Viúva do ''arigó'' cearense Raimundo Cláudio da Costa
Ariadne Araújo e os guerreiros
A jornalista Ariadne Araújo foi a repórter que em 1998 realizou para um O POVO um suplemento especial sobre a situação de quem se mudavam para a Amazônia como seringueiros
Em Soldados da Borracha: A Saga dos Arigós, a jornalista revela a situação de escravidão a que essas pessoas eram submetidas, as estratégias de arregimentação do governo Vargas e as promessas jamais cumpridas.
Na entrevista a seguir, Ariadne fala sobre o processo de apuração dessa história e conta o que mais chamou sua atenção durante a investigação.
O POVO - Como você chegou, nos anos 1990, a essa história dos Soldados da Borracha? Ariadne Araújo - Dia destes, dezoito anos atrás, sai da redação do jornal O POVO para uma missão certa, esta de escrever para o então suplemento Sábado uma matéria sobre versos fesceninos. Lista de entrevistados na mão, parecia–me um mergulho certeiro e sem maiores surpresas no universo desses poetas e seus versos eróticos cheios de malícia, às vezes devassos, por vezes obscenos. Um deles, o cearense João Amaro, na época com 68 anos de idade, dedicou-me seu livro de versos picantes e, assim, de supetão, tirou do bolso um papel dobrado e pediu-me que lesse nessa carta datilografada o outro lado da vida dele.
A história dos tempos em que ele tornou-se soldado da borracha e foi viver e trabalhar no inferno verde, no coração da floresta Amazônica, durante um esforço de guerra gigantesco para ajudar os países Aliados na Segunda Guerra Mundial. Engasguei. Picada pelo mosquito da curiosidade, pelo desejo de saber mais, de investigar aquela história desconhecida, misto de tragédia e aventura, peguei as malas e fui buscar o passado de J. Amaro nos igarapés amazônicos, nas margens dos rios barrentos, navegando em canoas ligeiras, balançando nas alturas das palafitas. A história do poeta misturou-se a outras centenas, todos de igual destino, uns de mais sorte, outros em plena desgraça, mas todos no igual sentimento, o de que fazem parte de um exército de heróis esquecidos, abandonados pelo governo Getúlio Vargas para morrer nos confins da mata. Voltei com meu baú de riquezas cheinho: testemunhos, histórias de vidas e de mortes, saudades eternas, separações, vozes que gritam denúncias, que pedem reparação, reconhecimento nacional.
O cenário desta batalha travada silenciosamente na Amazônia, os documentos ainda intactos, as memórias desembaladas foram reunidos em um caderno especial que chamou-se Soldados da Borracha: A saga dos Arigós. Publicado em junho de 1998, o material jornalístico ganhou interesse geral e foi, naquele ano, classificado pelo prêmio Esso de jornalismo. Logo depois da publicação, soube que J. Amaro havia falecido. Guardo ainda hoje sua carta riscada em perfeitas dobras, sinal de que guardava ali tesouro grande. Para ele e para mim também!
OP - Durante sua pesquisa, você viajou ao norte do País. O que encontrou por lá? Que cenário ficou dessa história? Ariadne - Nada difícil encontrá-los, na época. Numa praça pública de uma cidadezinha perdida na Amazônia, não importa qual, uma simples conversa com os habituais já traz à tona novos aspectos dessa saga. Na flor da idade, alguns ainda com 15 ou 16 anos, alistaram-se enganados pela propaganda do governo ou foram trazidos na marra, caminhão do Exército parado na porta de casa ou nas beiras de estrada, chamado sem chance de recusa para a guerra dos inimigos do Brasil. Nas cidades nordestinas, portas de cinemas ou lojas, cartazes convenciam os mais teimosos: “Vai também para a Amazônia”. A notícia que corria era de que o governo garantia tudo - viagem, roupa, comida, salário, retorno e aposentadoria. Promessas de uma volta heroica, desfiles em avenidas, medalhas e honras completavam o quadro maravilhoso de uma vida temporária no Eldorado, sem sustos, com segurança nos braços de Getúlio Vargas. Clique aqui e leia entrevista completa