Parte o guerreiro Cariri, voa o menino do Crato. Internado desde o último dia 17, o artista plástico Sérvulo Esmeraldo morreu no fim da tarde desta quarta-feira, 1º. Assistido por Dodora, sua companheira e eterna guardiã, se foi de forma tranquila. Aos 88 anos, se despede o poeta das linhas, o cearense que colocou o Estado no mapa das artes contemporâneas e que povoou Fortaleza com seus sonhos matemáticos
Por Jáder Santana
Entalhar histórias em blocos de madeira não foi suficiente. Sérvulo Esmeraldo não era narrador, não lhe interessavam os causos feitos, as figurações fabulares. Suas obras continham um mundo próprio, esgotavam-se em sua realidade e se expandiam em vibrações matematicamente calculadas. A arte do garoto do Crato não cabia nos limites de seu território.
Mas foi esse território que lhe deu luz, sombras e movimento. Foi na Chapada do Araripe que reconheceu a importância da linha do horizonte. A linha. A luz. O Crato. Não à toa, foram esses os termos escolhidos para nomear sua “exposição dos sonhos”, marco zero das comemorações dos seus 88 anos, em setembro e outubro de 2016.
“Tudo começou no Crato”, costumava dizer, preparando o ouvinte para uma longa história. Uma história que saiu do Engenho Bebida Nova e passou por Fortaleza, São Paulo e Paris. Uma história de pinturas, gravuras, esculturas e joias. Da Terra da Luz à Cidade Luz, Sérvulo desafiou a física, desdenhou da gravidade e excitou audiências com a eletricidade estática de suas criações.
De criança, chamava de “astúcias” suas experiências, como conta em um esboço de autobiografia jamais finalizada. Alterava o curso das águas de um riacho, criando comportas e canais com varas de cerca. O grande casarão de janelas azuis, cercado pela natureza caririense, era o mundo de que dispunha.
Seduzido pelo efêmero, encontrou nos ciganos que fincaram acampamento na propriedade da família a representação do fugidio. Soube que outros mundos eram possíveis. Deles, aprendeu o gosto pelo cobre martelado, passando a produzir pequenas joias que estariam presentes em todas as fases de sua trajetória.
Descobriu Goeldi por acaso, em reportagem publicada em panfleto do Consulado Britânico sobre a gravura no hemisfério ocidental. Inspirado pelo mestre expressionista, decidiu virar xilógrafo. Chegou a ilustrar livrinhos de novenas antes de viajar a Fortaleza, onde travou contato com outros artistas e participou do VI Salão de Abril, em 1950.
Mas se suas vibrações não cabiam no Crato, tampouco se limitavam à Capital. Mudou-se para São Paulo, cidade em ebulição por conta da realização da I Bienal Internacional de Arte, em 1951. Fez grande amigos, estudou arquitetura e foi cronista de arte do Correio Paulistano até agarrar a oportunidade de ir para a Europa como bolsista do governo francês.
Quando por fim voltou ao Ceará, no fim dos anos 1970, já tinha trajetória estabelecida e obras espalhadas pelo Brasil - de São Paulo ao Acre - e em coleções particulares de todo o mundo. Em Fortaleza, virou símbolo de praças, avenidas, prédios públicos e universidades.
Sérvulo se despede mas continua. Como dizem, não é um adeus, mas um até logo. Vamos encontrá-lo outras tantas vezes, pelos lugares mais insuspeitos. Em nosso último encontro, em outubro do ano passado, me presenteou com um desenho. Na assinatura, escreveu “Esmeraldo. Tudo vivo” O artista dos ângulos exatos permanece tão firme quanto suas linhas.
José Borges dos Santos Júnior
"Vejo esses monumentos públicos, espalhados por fortaleza e outras cidades, como louvável tentativa de democratizar sua arte, tornando-a acessível a um grande número de pessoas"
Gilmar de Carvalho
"Sérvulo é grande, sabe o que faz, antevê resultados, nos surpreende e se surpreende com as formas, os volumes, os traços, os recortes, os "excitáveis", as texturas e as cores. É um grande artista, cidadão do mundo"
Marco Aurélio Ribeiro
"A partir de nossas conversas, aprendi a ver a geometria pela luz e sombra, aprendi a ver o movimento dessas duas formas contrárias e complementares"
Emmanuel Bailly
"Umas das metas da exposição (os anos europeus, realizada em 2016 na suíça) foi demonstrar a diversidade e a originalidade do artista durante seu período europeu. de fato, sérvulo é polimorfo, usou técnicas diferentes e explorou vias diversas"
Aldonso Palácio Neto
"Sinto orgulho porque Sérvulo, com sua potência poética na arte concreta, ajudou a colocar o Ceará e o Brasil no mapa da arte contemporânea internacional. deixa um legado e uma marca que será difícil de igualar"
viagem
Passos de um flanêur cearense pelo velho continente
Sérvulo chegou a Paris em um domingo de setembro de 1957. Encontrou uma cidade de lojas fechadas e ruas vazias. “Paris fechava cedo aos domingos, assim mesmo, saí a passeio”. Jura que nessa primeira andança esbarrou com Antonio Bandeira em um bar. Cearenses em uma terra estranha, celebraram a sorte.
Aluno matriculado na Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris, começa a estudar litogravura e se aventura por linguagens e suportes até realizar sua primeira exposição individual europeia, em 1961, na Suíça.
Ao largo de sua trajetória na Europa, expôs também em Portugal, Itália, Inglaterra, Luxemburgo e Polônia, país de origem do artista plástico Johnny Friedlaender, que o orientou em seus primeiros passos com as gravuras em metal.
Sobre Paris, para onde sempre voltava, Sérvulo dizia que era “uma cidade generosa, cheia de surpresas”. Em um de seus passeios, enquanto conversava com uma amiga, foi abordado por um senhor interessado em ver suas gravuras. “Ele me olha e me parabeniza. Era ninguém mais, ninguém menos que o Alberto Giacometti (artista plástico expressionista suíço). Ficamos amigos até o fim”, escreveu.
Um geômetra rigoroso e cosmopolita
As linhas e ângulos de Sérvulo Esmeraldo se espalham pelo mundo
Nos 88 anos de Sérvulo Esmeraldo cabem pelo menos 75 exposições individuais e 103 coletivas. Cabem Belo Horizonte, Londres, São Paulo, Houston, Salvador e Bogotá. São museus, salões, bienais, galerias, palácios, parques, praças e condomínios povoados por suas criações.
Em suas quase nove décadas, foi premiado vinte vezes. Partindo de menções honrosas no Salão de Abril de Fortaleza no início da carreira, foi nomeado escultor do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte, laureado com a Medaglia d’oro della Accademia di Belle Arti da Itália e, em 2016, recebeu o Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça, um dos mais importantes do Brasil. Suas obras estão espalhadas por coleções públicas e privadas, no Brasil e em países como França, Portugal, Estados Unidos, Suíça, Chile, Cuba e Itália.
As obras que ilustram esta página são representativas da presença imortal de Sérvulo em espaços públicos de Fortaleza, em museus e coleções particulares de todo o mundo.
Amor cheio de curvas e solidez
Amantes das artes plásticas, Sérvulo e Dodora dividiram 37 anos de união
Por Renato Abê
Dodora Guimarães se apaixonou por Sérvulo Esmeraldo antes mesmo de encontrá-lo a primeira vez. Amante das artes, ela se encantou, em 1977, pelo Monumento ao Saneamento Básico, escultura do artista que hoje divide espaço com a feirinha da Beira Mar. A então jovem publicitária quis investir naquela intuição amorosa, mesmo sem conhecer o homem por trás da obra. O romance idealizado por Dodora, porém, não aconteceu de pronto. Foram muitos os desencontros. Ele entre viagens à Europa. Ela em meio a uma vida profissional que se iniciava.
Até que Dodora conseguiu, com amigos, o telefone da casa do paquera e não teve vergonha de ligar. Quem atendeu foi a mãe do artista, que anotou o telefone da jovem para que o filho retornasse o chamado. Quando chegou em casa, ele se deparou com um recado: “A doutora queria falar com você”. Ele, porém, não tinha noção de quem era aquela doutora sem nome. Já era 1980 e, apesar da falta de retorno, a mulher apaixonada não desistiu, ligou de novo e, dessa vez, explicou direitinho: chamava-se Dodora. Com o nome correto, ele retornou a ligação. Conversa vai, conversa vem, o primeiro encontro foi marcado. Sérvulo pegou a moça no trabalho e juntos foram ao Estoril e seus caminhos não se desgrudaram.
Daquela noite na Praia de Iracema, até hoje, os dois compartilharam 37 anos de uma união que movimentou as artes em Fortaleza. Ele com suas obras públicas e tantos outros mergulhos nas artes plásticas. Ela, nos últimos tempos, à frente do Sobrado Dr. José Lourenço. Pela casa dos dois, que foi também ateliê de Sérvulo, no bairro Salinas, passaram grandes artistas do mundo e discussões múltiplas sobre arte. Persistente, Sérvulo não deixou de produzir até 2016. Fosse em meio a uma entrevista ou a um café da tarde, sempre aproveitava qualquer pausa para começar um novo rabisco. Paciente, Dodora segurou a mão dele até o último desenho.
Um “Quer casar comigo?” após 30 anos
Desde a década de 1980, Dodora e Sérvulo viveram uma união sólida e cheia de curvas, tal qual a obra do artista. Na noite de Ano Novo de 2011 para 2012, uma nova sinuosidade: ele resolveu surpreendê-la com um pedido de casamento. “De repente, ele virou e me perguntou: ‘Quer casar comigo?’”, lembra Dodora. “Ela foi muito rápida na resposta”, brincou Sérvulo, quando, em 2012, contou ao O POVO sobre a iniciativa de oficializar a relação.
Ele que desenhou a aliança e a tiara da noiva. Dodora, por sua vez, fez o vestido com cortes de tecido mandados pela filha dele, Sabrina,diretamente da França. Camila, a outra filha do primeiro casamento do artista, assim como Luana, filha do casal, também se envolveu diretamente da festa que aconteceu no dia 27 de fevereiro daquele ano, justo na data do aniversário de Sérvulo. “Foi muito bom, porque a gente reuniu os amigos que precisavam estar ali naquele momento. Tudo tem a sua hora”, confia Dodora.
Tirando um ou outro conflito comum a casais de longa data, os dois viveram uma união de muitos sorrisos e amor compartilhado pela arte. Sobre aquele amor, Dodora falou em 2013: “Ele é muito certeiro, tem um traço muito marcante. Você vê a obra do Sérvulo e reconhece que é dele. No convívio ele é assim: simples e objetivo como o trabalho dele, não tem arrodeios. Acho que por isso me apaixonei pela arte dele – ela é como ele”.
Sérvulo parte agora, mas nos deixa muito do homem que foi em seu trabalho. A simplicidade sem rodeios do seu traço marcante segue pela Cidade e pelas galerias mundo afora.
Projeto gráfico. Círculo da vida A vida de um artista não cabe num só traço. O que à primeira vista pode parecer simples (um círculo, um quadrado e um triângulo) guarda o que chamamos de nascimento, obra e permanência. Aqui não há morte. Há a celebração de uma existência radiante capaz de tirar poesia do aço e brincar com a luz do sol.
Sérvulo Esmeraldo vive todo dia quando alguém para, olha e se emociona com sua arte (Gil Dicelli, editor-executivo do Núcleo de Imagem).