Por Ana Mary C. Cavalcante (textos)Por Mateus Dantas (fotos)
Da hidrografia, nascente é um ponto no qual um lençol d´água subterrâneo alcança a superfície do solo. É o começo de um rio, onde um filete aquoso representa vida e, por extensão, esperança para a terra. É, essencialmente, “o que nasce”; bonito pela própria natureza. E, em qualquer um dos sentidos, toda nascente precisa ser preservada.
Neste caderno especial, O POVO apresenta o semiárido cearense como dez nascentes. É outro retrato, tão profundo quanto os entalhes feitos nele pelas secas de todos os tempos. Porque mostra convivência e não combate, permanência e não fuga. São dez sertões possíveis: das hortaliças, do biodigestor, das frutas, da energia solar, da galinha caipira, do reuso da água, do empreendedorismo, dos quintais, da energia eólica, do bordado. Tradição e futuro em urdidura.
O POVO narra convívios em um sistema frágil e hostil. Relações que nascem de um lado a outro, reinaugurando o viver sob o sol e o respeito à natureza. Uns por todos, e vice-versa, na precisão, na partilha e no cuidado. São pássaros que retornam, são famílias inteiras que ficam.
A reportagem vai a regiões mais áridas do Ceará, guiada por jovens e por antigos sertanejos. As histórias estão em zonas rurais, existentes depois que terminam o asfalto e o desconhecer. O entendimento da natureza, e de si mesmo, ganha tempo e espaço, a partir da década de 1990, com o acesso a leituras e tecnologias. O mundo fica menor, enquanto o sertão cresce, sendo terra e céu de possibilidades.
Mas é preciso ter coragem, se falta tudo. O sertanejo tem. Nascer e se criar, sonho e lida é a alternância própria do viver, o sertanejo sabe e se dispõe até o fim: a vida é só outro modo de dizer sobre estradas de barro, secas e chuvas. Sertão sempre é ensinamento: desafio, recomeço; simplicidade, sentimento. É acompanhar a mãe e a avó na roça, é herança do pai e do avô, é um caminho de volta.
Não é mais o sertão das misérias, ou das memórias. É o sertão vivo, que ama e que perdoa. Que refloresce e dá de comer. A seca já teve gosto amargo, de mucunã amassado, mas, de quando se quer em diante, colhe-se mel, mamão, acerola, alegria, dignidade... É este o sertão encantado: que não é água, propriamente; mas que, nascente, pode ser uma espécie de rio margeando economias e querenças.
Transbordando conteúdo
Por Émerson Maranhão
São muitas as possibilidades de se debruçar midiaticamente sobre qualquer tema. Há quem opte pelo relato jornalístico em sua versão impressa, há quem escolha a narrativa audiovisual, há os que enveredam pelas mídias sociais. Criar um projeto transmídia é investigar cada uma destas possibilidades para descobrir de que maneira elas podem ser aproveitadas em todo seu potencial e vocação.
Em vez de optar por uma ou duas abordagens, trabalhar com o todo. Especificando funções narrativas para cada uma. Longe de replicar um mesmo conteúdo em diferentes plataformas, criar conteúdos únicos para suportes específicos. Na sequência, traçar uma estratégia onde estas ações se complementem, se autorreferenciem e, ainda assim, mantenham sua autonomia.
Este é o ponto de partida, - e de chegada, por que não? -, do projeto transmídia criado para Semiárido das Nascentes.
Além deste caderno especial, que o caro leitor tem em mãos agora, nosso conteúdo se desdobra em ações próprias para as mídias sociais, em participação em programa de rádio, uma websérie em seis episódios disponível no canal do O POVO no YouTube, um webdoc veiculado na TV O POVO, uma animação com o trajeto percorrido pela equipe de reportagem, fotogaleria e uma página especial no portal O POVO Online reunindo todo esse conteúdo.
Por fim, cereja do bolo, um Diário de Bordo, onde a repórter Ana Mary C. Cavalcante registra, à mão, impressões da viagem, sentimentos despertados pelos sertões, bastidores do fazer jornalístico. E nesta missão é acompanhada pelo registro fotográfico de Mateus Dantas. Um espaço para subjetividades e devaneios.
A razão desta estratégia é propiciar a melhor experiência para o nosso consumidor final, você. Projetos transmídias não contemplam apenas o leitor, ou o ouvinte, ou o espectador. Eles são criados e executados levando em consideração o “consumidor de informação”, que tem a necessidade de ser atendido em suas múltiplas demandas de comunicação.
Não é à toa que ‘Transbordar’ e ‘Transmídia’ partilhem do mesmo prefixo. Na verdade, a intenção deste projeto é transbordar. Verter para além das bordas o conteúdo especial pelas páginas do jornal, pelos planos e sequências da série e do documentário, pelas ondas do rádio, pelas redes sociais, pelo mar sem que é a web.
São Gonçalo do Amarante
(Comunidade Boca da Picada)
Pentecoste
(Comunidade Serrota, Xixá e Muquém)
Crateús
(Comunidades de Convento e Santo André)
Parambu
(Localidade de Pau Preto)
Senador Pompeu
(Comunidade Muximato)
Quixeré
(Sítio Barreiras)
Jaguaribe
(Sítio Brum)
Fortaleza
Ecossistema gráfico
Por Gil Dicelli
Nascer um projeto gráfico é parir uma trilha visual. A paisagem-página deve guiar o olhar, evidenciar sua natureza (títulos, texto, fotos) e convidar o leitor a se arriscar pela reportagem.
Neste especial, as fotos são grandes, ocupam páginas inteiras, como se tentassem abarcar a experiência da imensidão vista pelos repórteres. A tipografia dos títulos indicia o aspecto humano, documental. É o registro de livreto de viagem, escrita rápida e atenta como desejo de agarrar o momento.
Existe ainda uma ampliação do cenário semiárido num jogo imagético. Camuflagem do ecossistema gráfico. Nascem galhos das letras, voam pássaros entre palavras, borda-se um texto, um outro explode em água e pequenos animais se escondem nos títulos. Uma floresta de ilustrações invade e interage com o todo.
A opção estética não é distração, pelo contrário, é aceno para você suspender o relógio, se deter no tempo corrido do dia a dia e visitar essas histórias, lembrar do canto de um pássaro, do cheiro do café coado de afetos, de como é gostoso comer uma fruta colhida no pé... viver, reviver, nascer e renascer.
O mundo de lá
A vida urbana, com a hora marcada, a pressa cotidiana, o barulho das ruas, a ansiedade de acessar o mundo que não se tem, ficou a quase 70 quilômetros da Capital. Na comunidade Boca da Picada, aonde se chega por uma estradinha de terra despercebida no quilômetro 58 da CE-085, longe seis quilômetros de São Gonçalo do Amarante (Região Metropolitana de Fortaleza), o casal de agricultores Rayssa Oliveira Duarte, 28 anos, e Vitor Esteves Vasconcelos, 29 anos, recriam um portal no tempo.
No antigo sítio-dos-fins-de-semana, que só produzia feijão, milho e macaxeira uma vez no ano, o portão de ferro liga o quintal da infância de Vitor à plantação de melancia, abobrinha e melões (espanhol e japonês), iniciada em 2017. E marca um caminho até a casa própria, desenhada entre cajueiros, e os filhos imaginados, herdeiros da permanência no semiárido de clima tropical quente, com chuvas incertas de janeiro a maio: Sítio Sonho Meu, nomearam o lugar para onde se mudaram há cinco anos, depois de Rayssa se formar em Design de Moda e Vitor deixar o trabalho com celulares. Um horizonte de três hectares cultivados (aproximadamente, três campos oficiais de futebol).
O desejo pelo sertão foi alimentado no Programa Jovem Empreendedor Rural (PJER), da Agência de Desenvolvimento Econômico Local (Adel). O PJER, desde 2009, explica a diretora de Comunicação da Adel, Evilene Abreu, 32 anos, refaz as relações com o campo, das afetivas às econômicas. Lideranças, dos 16 aos 32 anos, destaca, surgem no semiárido de 29 municípios do Ceará, da Bahia e do Rio Grande do Norte, onde a Adel atua há dez anos.
Rayssa e Vitor são dessa geração. Ela não sabia o que fazer depois da faculdade; ele deixou o emprego com carteira assinada porque não era o que queria fazer da vida. Até o intercâmbio com filhos de agricultores, no PJER, Rayssa, filha de uma estilista e de um gerente de loja, era “totalmente urbana”. As possibilidades das pessoas e da natureza sertanejas lhe encantaram e lhe guiam.
Vitor guardava o sítio dos pais na memória: foi menino de subir em árvore, guerrear com seriguela, fazer cerca, cuidar dos bichos. Gostava “daquele buraco” de taipa, iluminado por lamparinas. “E tudo aquilo era interessante. O campo, para mim, é muito atrativo”, volta.
O PJER “deu um direcionamento”, ele diz, na geração de renda pelo semiárido. Sem água ou vivência suficientes, o casal tentou criar galinha e testou plantações. Pintos morreram, uma praga atacou os mamões, o maracujá não vingou, uma chuva intensa levou a safra de jerimum “e teve uns calotes de prefeitura”, soma Rayssa, que ajudou Vitor a não desistir do sítio-sonho. “Eu só via oportunidade. Eu falei: se ficar aqui, a gente vai poder casar, construir uma família”, ela divisa. “O clima do semiárido é desafiador, tem muito sol”, ele lida.
Recomeçaram com um poço profundo, a irrigação e o cultivo de melancia. Diversificam o ganho com novas culturas, sem agrotóxicos. Abastecem a merenda escolar de São Gonçalo e vendem em feiras agroecológicas. “Foram dois anos só de perca, sofrimento. Aprendi com os erros e fui guardando os acertos... O semiárido é uma terra de oportunidades, mas falta incentivo”, retrata Vitor.
Para unir aprendizados, forças e futuros, no conviver com o semiárido e no mercado, eles se envolveram na criação da Cooperativa Caroá. Fundada em novembro de 2017, a cooperativa reunia, em fevereiro passado, 28 agricultores (de 21 a 30 anos; entre eles, seis mulheres) de seis municípios da região. É um meio de vencer o atravessador.
O sertão não abranda, cria para a vida. Tem ainda “a guerra com o mato”, quando chove, “é capina atrás de capina”, luta Vitor. Não é fácil, mas é feliz. “Sinto prazer em ver minha plantação bonita”, emenda.
Rayssa segue ao lado, desde as cinco e meia da manhã, ajudando no parto dos dias que querem ter: “Ele abre o berço (na terra), eu vou botando a semente e fechando. Os que nasceram, tem que replantar, pra nascer tudo do mesmo tamanho”. No mais, é o almoço, os cinco cachorros, plantar, cuidar, colher. Faz só dois anos que a internet pega melhor, fora da rede no alpendre. O mundo de lá é outro, é de permanências. “Parece que aqui é tudo mais tranquilo, mais devagar”, escolhe Rayssa.
Sentimento à mão
Rayssa e Vitor moram no sossego e, com a pressa de cumprir as horas, nós nos perdemos no caminho até lá. O GPS não funcionou na estradinha de terra.
O bordado de cada dia
Existem histórias depois do fim – da cidade, do asfalto, do preconceito, da vergonha... e essas são as maiores. São histórias surpreendentes por si. Muquém, a 32 quilômetros de Pentecoste (95,8 quilômetros de Fortaleza), é uma comunidade depois do fim. Passa Santa Luzia, Alto Branco, Capivara, Alto Vermelho, Cipó, Cacimbas, Irapuã, Jurema, Martins e Aroeiras, cada lugarejo surgindo entre vazios; e, depois, é Muquém.
Um povoado de “quatro, cinco casas perto, tudo família (tio, avô, pais); outras casas, já fica mais distante”, sem hospital, ou médico no posto de saúde, ou centro de compras, onde “só encontrava com crianças de outra família no colégio”, descreve o costureiro Gilberlane Oliveira Arruda, 24 anos, o Gil, para quem “até agora, a vida toda” foi ali, “sempre estrada de barro”, sem poder adoecer, convivendo com a falta. “De um tempo pra cá é que começou a melhorar: chegou o abastecimento de água e de energia”.
Na infância de Gil, a seca foi companhia que lhe tirou o gosto pelo ofício do pai, um agricultor de milho e feijão, que trabalhava muito e lucrava pouco. “Tinha vontade de permanecer na comunidade, mas eu não queria ir para o lado da agricultura”, ele opõe. Depois do Ensino Médio, a mãe, bordadeira igual à avó, deu-lhe inspiração e linha para a convivência com o semiárido. Ele aprendeu a bordar como meio de sustento em Muquém, lugar que acha mais bonito do que o Rio de Janeiro “por causa da natureza”.
A herança da mãe, o costureiro investiu no Programa Jovem Empreendedor Rural, formação promovida pela Agência de Desenvolvimento Econômico Local (atuante em 29 municípios do semiárido e com sede em Pentecoste). A prática de bordar para fora se aperfeiçoou “com uma visão de empreendedorismo”, ele tece.
Aos 19 anos, recém-casado e ainda morando com os pais, Gil iniciava a fabricação comercial de jalecos. Havia uma máquina e a ajuda da mulher, Juliana de Oliveira Rocha, 21 anos, que decidia um rumo da vida aos 16 anos. “Não concluí o Ensino Médio, pensando em ficar com ele... Bem dizer, fomo criado junto”, segue, entre o casamento e o expediente de manhãzinha ao entardecer.
As peças sempre foram vendidas no Mercado Central, em Fortaleza, por conhecidos. O lucro, Gil aplicava na produção: “Comprei mais duas máquinas, fez três”. De máquina em máquina, já são 13 mais o plano de aumentar, em breve, o galpão. Ele emprega 12 costureiras e bordadeiras das comunidades vizinhas.
Hoje, a produção varia de 300 a 800 jalecos/mês – as melhores épocas são de abril a agosto e de novembro a fevereiro. Independente de chuva, Gil afirma bordar cada dia no semiárido. Aprendeu também corte e costura e elabora a marca Alumiar Ateliê, diversificando a oferta. O tempo que ele tem de empreendedorismo quase coincide com o período da derradeira seca (2012-2017). Nos últimos cinco anos, o costureiro colheu o que plantou: uma moto, um carro e uma casa própria. “Tudo saiu desse trabalho”, garimpa o possível sertão.
A internet, instalada há pouco mais de dois meses, facilita o comércio via WhatsApp (85 99207 0529). A maior parte das vendas ainda é para o atravessador, a preços que vão de R$ 25 a R$ 35 por jaleco. Mesmo com os valores subestimados, já que o atravessador impacta no lucro próprio, Gil alumia: “Meu foco é permanecer aqui e aumentar a produção, para conseguir gerar uma renda para outras pessoas da comunidade”.
O êxodo das novas gerações de Muquém, “tudo à procura de um trabalho”, cruza a história do costureiro. Lidar com o semiárido lhe exigiu persistência e enfrentar outra natureza – a das gentes: o preconceito e a vergonha. Se chegava visita, ele “corria da máquina” ou procurava “um canto bem reservado” para bordar e costurar. Ao lado da mãe e da mulher, buscou a coragem por dentro, no canto que guarda o “amor pelo lugar, não precisa nem explicar”.
E foi ensinando outros homens a ter o sertão nas mãos. Muitos já se chegaram, perguntando como é que ele faz. Certa vez, Gil apareceu em um programa de televisão, no Rio de Janeiro, contando por que a história dele, nascida em Muquém, é grande. “Eu acho que é a vontade de permanecer aqui. E a gente ajuda muitas pessoas”, costura.
Sentimento à mão
Tive vontade de ficar em cada um dos dez sertões por onde andei. Deixar o jornalismo, esse contentamento descontente, e começar uma plantação ou aprender a bordar... Mas, se eu não fosse repórter, como saberia da fabricação da vida e do sentimento do mundo?
Terra de amores e de sonhos
Foi o sertão que deu os amores e os sonhos para a agricultora Celina Alves da Mota Barros, 57 anos, passar esta chuva que é a vida. Celina mora, “desde menina”, na localidade de Pau Preto, distrito de Miranda, zona rural de Parambu (a 415,3 quilômetros de Fortaleza), por onde se chega depois de Tauá (nos Inhamuns), da quadra esportiva e da mercearia do Geovani. Quatro famílias são a vizinhança. Tudo em volta é silêncio e memória; aqui e acolá, o canto de um galo marca as horas, um porco desperta. É um lugar onde “as galinhas ainda dormem sossegadas”, valoriza Celina, feito e refeito da bondade do rio que nunca secou.
Quando aparece novidade, igual o biodigestor que a agricultora instalou no quintal de casa, a vizinhança estranha. Era um sonho antigo, alcança Celina: solteira, ouviu falar que existia um meio de cozinhar sem buscar lenha no mato e sem a preocupação de arranjar dinheiro e gás no meio da precisão.
É difícil o povo de fora entender um sonho desses, mas a agricultora, mãe de seis filhos, explica: pense no trabalho de pegar a lenha, sol a sol ou antes da chuva, fazer carvão e ariar as panelas depois do cansaço. Além disso, o preço do botijão de gás, completa Celina, nunca ajudou a desmatar menos a caatinga: “É R$ 80 um botijão, e você não tem esses R$ 80 todo mês”.
Então, ela insistia em possuir um biodigestor - equipamento que, nos quintais sertanejos, reinventa o gás com a decomposição de esterco animal e não agride o meio ambiente do semiárido, já tão castigado por queimadas e desmatamentos. “Lá o rapaz do Banco do Nordeste passa pela aqui, que sempre ele dava reunião, que é o Estácio. Falei com o Estácio (sobre investir em um biodigestor)”, demarca.
O sonho lhe custou a mangação dos vizinhos e a desaprovação dos filhos. Duvidavam que daria certo investir tanto dinheiro – cerca de R$ 5 mil – naquela novidade. Mas Celina calou cada opinião, “Vá mandar lá na sua casa, deixe a minha que eu cuido”, juntou as economias da aposentadoria e instalou o biodigestor no quintal, em junho do ano passado. Foi ajustando e aprendendo o uso, a quantidade certa de esterco para se transformar no gás necessário e, hoje, se diz feliz da vida, com tempo e disposição para esta prosa. “Tá ali o foguim, faço meu almoço, minhas panela tudo limpinha”, lucra, já pensando no próximo sonho que o sertão lhe fabrica: um trator.
Só quem convive uma vida com o semiárido sabe o valor de sonhos assim, espelha a agricultora. Celina começou criada pelos avós maternos: “E eu achava bom porque ia pra roça mais minha avó”. Ela nunca perdeu esse gosto, doce e amargo ao longo dos anos. Lembra-se bem da peleja da avó, quando “plantava o arroz e ficava esperando a chuva, e o arroz atrás de morrer, e ela agoniada pra jogar água do rio pra aguar”.
O rio socorreu também nos recentes anos de seca, de 2012 a 2017. “O açude secou, mas aqui, pro beiço do rio, sempre teve água”, aponta Celina, que guarda ainda chuva em uma cisterna. Dessa convivência, em 2018, mesmo com o sufoco das secas encarrilhadas, ela colheu 200 sacos de milho. “Tinha vez que (a colheita) era melhor, outras vez que era pior, mas a gente nunca esmoreceu”, equilibra. “Nunca a gente teve outro mei de vida, sempre foi a roça”, completa-se, repassando o ensinamento da lida: “É muito sofrimento, mas, tendo coragem, a gente vive. E não se maldizer da vida”.
A agricultora não pode desgostar do semiárido: o sertão também lhe deu grandes afetos. Ela se apegou às cabras, ao gado e às galinhas que cria; sente a tristeza da sede deles, nas estiagens. E é “ajeitar um bicho” ou o roçado que lhe tira “tudo de ruim da cabeça”.
Há 40 anos, une, casou-se, no cartório, com o Valdir-agricultor, “sem pensar, inté hoje... Nós não tinha um copo, uma cama. Mamãe me deu dois prato, duas colher. Meu sogro me deu dois caldeirãozim”. É o jeito de amar do sertão, fazendo, do pouco, o muito. Há três anos, debaixo da algaroba em frente de casa, foi o casamento religioso. E vão seguindo o roteiro, mais uma estação. “Mesmo com a seca, a gente nunca desistiu”, sublinha Celina, sem vontade de outro mundo. “Como é que dá fim ao que se gosta?”, refletia, enquanto uma chuva de fevereiro perfumava a prosa com cheiro de terra molhada.
Sentimento à mão
A entrevista com a agricultora Celina Barros foi no dia 6 de fevereiro. Um aniversário que passei na lonjura quando queria estar perto. Mas ganhei de presente uma chuva, no meio do sertão.
Um oásis de mamão e de melancia
Todas as vezes, no semiárido, a coragem é o começo, narra a família Silva, agricultores da comunidade Convento, a 23 quilômetros de Crateús (distante 359,4 quilômetros da Capital). Eles trabalham de inverno a verão, “não tem sábado, não tem domingo”, desde sempre. “Aqui, tudo é agricultor desde quando nascemo”, conduz José Osmar Alves da Silva, 58 anos. “Estudei, mas não quis fazer faculdade. Meu negócio era a roça... Com sete anos, a mãe já levava pra roça”, segue Rafael Vieira Silva, 29 anos, que não aguentou o trabalho de carpinteiro, dos 19 aos 23 anos, em uma refinaria de Recife (Pernambuco). “Aqui é melhor porque não tem quem me grite”, compara.
Nesta última década, ao lado do pai, que o alfabetiza para o semiárido, Rafael multiplica uma produção própria de mamão e melancia, cultivados em 1,3 hectares (um hectare tem tamanho semelhante ao do campo oficial de futebol), que começou com a coragem sertaneja de nascença e a curiosidade sobre irrigação, no sítio de dois hectares de José Osmar. Lá, cavaram um poço e obtiveram dez mil litros d´água (vazão por hora). Foram “pegando o jeito, o macete (com a irrigação), aí, apareceu este terreno para comprar”, salta Rafael.
Filho e pai fecharam o negócio há apenas três anos, e o terreno de 12 hectares, onde só havia uma casinha-depósito, ganhou vida nova pelas mãos dos Silva. Nada se perde, transforma o pai. “Tudo o que nós adquere aqui dentro, nós vai empregando”, poupa, para o cultivo. As safras já renderam moto, caminhonete e uma morada toda na cerâmica.
Para colher 150 caixas de mamão por semana (quantidade que abastece o mercado de Crateús) ou apurar R$ 17 mil em 75 dias de colheita de melancia, foi preciso descobrir água entre as estiagens e lutar até não poder mais. “Agora mesmo, pra trás (por causa de uma praga), perdi três safras. Foi quase R$ 15 mil embora”, subtrai Rafael.
Eles recomeçaram com dois poços profundos (um de 26 mil e outro de 5 mil litros de vazão/hora) e uma caixa com capacidade para 60 mil litros d´água, financiados pelo Banco do Nordeste, há um ano e meio. Um investimento de R$ 20 mil, pago com a riqueza do semiárido. Além do mamão e da melancia, principal ganho de outubro a abril, a família Silva tem 27 cabeças de gado e 1,5 hectares de silagem - são 75 mil quilos de ração, cujo excedente pode ser vendido na necessidade. Eles também iniciaram uma criação de 110 abelhas italianas, em dois apiários.
“Ano passado, nós tiremo dez tambor, de 200 litros, de mel. Tudo já ajuda. A gente vai pelejando dum lado, doutro”, desbrava José Osmar. “Pra nós morar no sertão, tem que bulir com tudo. Porque aqui, quando uma coisa se acaba, nós começa outra”, entende, valendo-se também de cursos no Sebrae e de amizades com técnicos agrícolas que, vez em quando, lhe visitam e orientam.
Esta é a lei no Nordeste, cumprem os Silva, faça sol ou faça chuva: “correr atrás” porque não chega nada por aquela estradinha de terra, de atravessar rezando na quadra invernosa. E, quando acontece de chover; a chuva é a importância maior. “Sem chuva, a gente não vai pra lugar nenhum. Tem um poço desses daí, mas, se não chover, as fenda pode esfraquecer”, calcula José Osmar. É importante ainda para o pasto dos “bicho bruto”, completa Rafael.
Severina e forte, a vida se salva pelos sertões destes tempos. Não nega mais o lugar de nascenças, pelo contrário, agarra-se ao que tem, até aprender a viver. Nega-se à morte que já houve, aquela da ignorância que alimentou a miséria. A fome de gerações como a de José Osmar e Rafael, dispostas a amansar o destino, é pela permanência no semiárido.
“Aqui, mesmo que a pessoa saiba ler, saiba fazer curso, é difícil emprego”, contrapõe José Osmar, adiantando o serviço do dia, às 5 horas da manhã. Dali a pouco se juntam a mulher, dois filhos (dos três homens, somente um não permaneceu no campo) e um rapaz de fora. Rafael quer crescer a propriedade em cem hectares. “O futuro nosso, aqui, é comprar mais terra. A gente, da roça, é difícil conseguir o dinheiro todo pra comprar um pedaço de terra, mas, esse daqui, nós conseguimo com o nosso suor”, abarca. “Não pretendo sair daqui, não”, firma, saboreando um gosto que só o sertão possui.
Sentimento à mão
A plantação de mamão da família Silva foi uma das paisagens sertanejas mais bonitas que já vi. E era tão abundante, que nos ofereceu a merenda colhida na hora.
A leitura das árvores
No Sítio Brum, localizado a partir de uma placa discreta à margem da BR-116, entre Icó e Jaguaribe (a 293,6 quilômetros de Fortaleza), todo bicho e toda planta têm importância. Pois uma cantiga de jia nomeou o lugar, em 1932, “quando foi feita a ponte no riacho. E tinha uma rã, que o canto dela é ‘brum, brum, brum’”, restaura o agropecuarista Francisco Nogueira Neto, 59 anos, que nasceu no Brum depois que o pai veio da serra, escapando da seca de 1958 – a pior da década de 50, com 206,87 milímetros de chuva de fevereiro a maio (em anos normais, a quadra chuvosa do Ceará fica entre 493,3 e 631,2 milímetros).
O canto incomodava, vindo da cacimba onde o povo, de jumento ou andando até dez quilômetros pela madrugada, alcançava água. O mestre de obra, para proteger a rã da morte anunciada, escondeu-a na oiticica. “Por conta, ficou a ponte do Brum, o riacho do Brum”, conclui Francisco, que conviveu “toda época aqui. Minha vida foi aqui”.
Viver, ainda mais no semiárido fervente, é uma tentativa atrás da outra. Pelas experimentações que fez e pretende fazer, misturando vida e sertão, Francisco-do-Sítio-Brum é conhecido da BR-116 até as bandas do Rio Grande do Sul e da Itália - de onde trouxe práticas de convivência com o clima difícil. Atentou, por exemplo, que era preciso, no inverno, se preparar para as secas: “Com a pouca chuva que tinha, eu silava e fenava... Esse ano, estou com a silagem (alimento para o rebanho dos 50 animais, grandes e pequenos) guardada para 2020, 150 toneladas”.
Formado em “enxadologia”, como se apresenta aos universitários nas aulas de campo ou em palestras, Francisco quis deixar o sertão, na década de 1980, depois do ataque do bicudo contra o algodão (o “ouro branco”, até 1978), de uma praga no feijão de vazante e de muito agrotóxico inútil. Mas permaneceu, para cuidar do pai doente. “Então, eu disse: já que eu não vou, vou procurar um meio de sobreviver com a natureza”, entrança.
Na procura, experimentou a criação de gado e a produção de queijo, ciência “que vem dos meus bisavores. Fui criado quase dentro de um tacho de leite”, valoriza. De tanto ler, fez-se técnico em agropecuária, “sempre inovando um pouquinho. Quando tinha um curso, eu corria atrás”. Hoje, em parceria com dois primos vizinhos e produtores de leite, a fábrica de queijo do Sítio Brum tem reconhecimento no País e produz até “leite de pedra” nas secas, brinca Francisco, garantindo a sustentabilidade da produção. São 2.400 litros de leite e 240 quilos de queijo, em 12 horas de trabalho por dia.
A última inovação, para potencializar a recente “indústria artesanal de iogurte caseiro”, ele aponta, foi a instalação de oito placas solares, em novembro de 2018. É um projeto-piloto, financiado pelo Banco do Nordeste, com custo pouco maior que R$ 14 mil. “A produção se paga, é um financiamento que se paga rapidinho. E você tem uma segurança”, considera Francisco, pensando além. “É uma energia limpa, é uma economia que se faz. Sol, nós vamo ter. Agora, não sei até quando vai ter água pra gerar energia, ou petróleo. Tô vendo tudo diminuindo, mas tô vendo o sol aumentando... Quando eu tiver condições de ir lá no banco, pego mais um pouquinho, vou mais pra frente”.
O meio ambiente do semiárido lhe dá o norte, o de comer e o entendimento. Para Francisco, “ali tem tudo de bom: os melhores paladares, o melhor solo. Mesmo faltando água, mas, com qualquer ajudazinha, é maravilhoso, o semiárido”. Ele mostra o que diz: o nada, em frente ao sítio, refloresceu. Há dez anos, o agropecuarista iniciava o reflorestamento do horizonte com plantas nativas, para remediar os danos das queimadas de décadas. São quase seis hectares já revividos e, daqui a cinco anos, ele espera ter “só de 10% a 15% de área nua”.
Ipês, marmeleiros, mufumbos, caatingueiras preenchem vazios com lições de convivência. Dizem o que mata e o que cura, sabem do tempo. Francisco aprendeu a ler as árvores: se vai chover, “a caatingueira muda de terno (revestimento do caule)”. Pelos encantamentos e aprendizados, ele mandou buscar os dois filhos que pelejavam a vida em Brasília. No semiárido tem mais ganho, em todos os sentidos e sentimentos. “Não saio daqui, aqui eu nasci, foi enterrado o umbigo ali. Não tem lugar melhor pra se viver depois que você aprender a conviver com ele (sertão)”, embrenha-se.
E outras sabedorias
O POVO esteve no Sítio Brum há dez anos, quando o agropecuarista Francisco Neto começava o reflorestamento onde as queimadas, intensas nas décadas de 1970 e 80, arrasaram 80% da flora nativa. A prática, primitiva, retira a cobertura vegetal antes de um plantio ou para um pasto, mas agride, de morte, a natureza, comprovou Francisco.
Também o mal do agrotóxico foi um aprendizado pela perda. Em 1982, ele exemplifica, produziu 420 sacas de feijão usando três vidros de agrotóxico; em 84, na mesma área, foram 36 sacas com 38 litros de veneno. “Aí, parei. Tô morrendo e tô matando alguém. Parti para o criar”, mudou.
Na cartilha do semiárido, a primeira lição é ver o que a região comporta. O solo é rico, concordam o agropecuarista e pesquisadores da China e do Japão que já visitaram o sítio. O problema não é só a escassez d´água, mas, principalmente, a falta de técnica e de consciência para conviver com o lugar. “O mau uso da terra faz com que o pão desapareça. Falta prezar a natureza, a única mãe que não perdoa. Se você agride ela, ela te dá o retorno”, espelha Francisco. “É bem simples conservar a natureza: tem que aprender a trabalhar nela. Tirar dela, mas que não machuque ela”, completa.
A educação pelo sertão lhe dá outro ensinamento: “Água é vida”, tem que preservar. “Não sei o tamanho do açude que tem lá embaixo (subsolo), por isso, não vou gastar”, é cauteloso no uso do poço profundo. “Tem o inverno pra se prevenir. E, assim, vou passando... Aqui é uma região que chove mais do que as outras. Por quê? Eu digo: a mãe natureza tá começando a me perdoar”, convive, traduzindo a refloresta.
Há quem o ache “doido” e repita os erros dos antepassados, ele diz, seguindo adiante, em palestras sobre as inovações. E onde era deserto, no Sítio Brum, universidades e instituições fazem pesquisas; investigam a chuva, descobrem remédios. Esta foi a maior lição que a natureza lhe deu: “Quando comecei a zelar por ela, ela retribuiu”.
O fazedor de água
Não adianta perguntar por “seu Francisco Linhares” ao tentar localizar o sítio onde mora, na comunidade Muxinato, entre Minerolândia e Bonfim, depois de Senador Pompeu (a 274,9 quilômetros de Fortaleza). Pergunte pelo “Chico do Leite”, ele mesmo indica, por WhatsApp. “Ah, o Chico do Leite? Você vai em frente, pode ir, é antes da ponte e antes dos homi (Polícia Rodoviária)”, reconhece uma vivalma, na travessia da rodovia, dona do melhor GPS do mundo.
Na distância de tudo, a fé batiza e o sertão é sobrenome. O agricultor Francisco Linhares do Ó, 50 anos, se mistura com o ofício que lhe começou no semiárido: “Uma cultura dos avós, de criar bovinos”. Ele veio do interior do Pará mais os pais, retirantes de secas passadas, em 1973.
“Naquela época, quando não existia essas políticas de convivência, qualquer estiagem, as pessoas saíam do seu lugar”, testemunha. “Antes, não era a convivência, a pessoa queria combater (a seca). Como é que combate? A melhor forma de se conviver, no sertão, é aprender a conviver com a seca porque ela nunca vai deixar de existir”, sublinha a agricultora Antônia do Carmo de Gois Magalhães do Ó, 44 anos.
Nesse aprendizado, o casal viu que os 36 bois “tomavam o espaço do terreno”, de 10,6 hectares (cada hectare é o tamanho aproximado de um campo oficial de futebol), “e o tempo da gente”. A criação acabou em 2010, junto com as queimadas (para abrir pastos) e o uso de agrotóxico (contra a mosca do chifre). “A gente passou a defender animais de pequeno porte e a diminuição das queimadas. E nunca acreditei que veneno fizesse bem para o meio ambiente”, reverte o agricultor.
Hoje, ele mantém duas vacas e alguns pequenos animais, trabalha menos e incrementa a renda. “Já cheguei a produzir dois mil ovos num mês, de galinha caipira”, diz, descobrindo ainda a criação de abelhas, “que é uma prática agroecológica, não usa agrotóxico”. Assim, não precisa mais queimar a jurema; cuida, “pra ela florar pras abelhas”. E anda a plantar moringa e sabiá por onde degradou.
Outra mudança veio em 2013, quando ele passou “a defender a agroecologia” na diversidade de culturas do quintal produtivo ou preenchendo o antigo pasto com uma plantação de abóbora, melão, melancia, batata, macaxeira. “Se plantar só um cultivo, vai ter dificuldade de produzir porque as pragas vão atacar com mais facilidade”, ensina.
O Instituto Antônio Conselheiro (IAC), com sede em Quixeramobim (Sertão Central), clareou as ideias, apresentando-lhe a cisterna como tecnologia de armazenamento d´água. Chico do Leite fez intercâmbios nos semiáridos do Ceará, conhecendo a convivência possível: o devido respeito ao lugar. “Ninguém perde uma gota d´água”, garante.
Além de guardar a água da chuva, o agricultor reutiliza as águas cinzas (de chuveiros e pias) e negras (de vasos sanitários). Chico do Leite soube da inovação pelo IAC, em 2015, “na casa do seu Aureliano, em Aroeiras, um projeto-piloto”. Em 2018, pela curiosidade e interesse, ele ganhou um sistema de reuso, via política pública do Governo do Estado (Lei 16.033, de 2016). “Sem água, não tem vida. Quando chove, a gente vê a alegria de todos os animais, das abelhas, dos pássaros. Por isso, a gente reutiliza toda água”, argumenta.
Na convivência com o semiárido, minhocas e bananeiras adquiriram importância para Chico do Leite. Como ele explica, são “as grandes atrizes” do sistema de reuso, filtrando as águas residuais. E rendem um extra para o agricultor: “Já apurei R$ 1.086 de húmus de minhoca (entre novembro e janeiro, enquanto a chuva não chegava)”.
As águas do reuso fazem nascer o quintal que alimenta a família do agricultor. “O alimento, pode colocar até pro papa. É seguro”, ele comprova. Pelo menos, 50% do que consome é colhido ao lado da casa; o excedente é vendido em feiras. “Esse quintal, não dou por dinheiro nenhum”, sustenta.
Couve, cheiro-verde, batata-doce, berinjela, limão, mamão, graviola, caju são parte do inventário de Chico das Hortas - renomeiam a mulher e o sertão atual. “Semiárido é o lugar mais rico do mundo, tem muito sol, terra fértil. Hoje, a história do semiárido é outra”, ele atualiza. É a história dos quintais, das permanências, dos fazedores d´água. Do sertão que se encantou.
Sentimento à mão
Anotar para a volta (ou a vida): a gentileza e a confiança no outro são grandes lições do sertão. Por estradas, alpendres, quintais ou cozinhas, os sertanejos nos deram informações, tempo, saberes, alimentos.
Doces, noites e quintais
Faz mais de 70 anos que a agricultora Maria de Jesus abre caminhos, das 4 horas da manhã às 7 da noite, pela comunidade de Santo André, longe quase 60 quilômetros de Crateús (a 359,4 quilômetros de Fortaleza), para filhos e netos caminharem. “Meu nome é Maria de Jesus Soares Neves, eu nasci no dia 20 de novembro de 1946, em Santo André. Aqui me criei e aqui estou ainda, não pretendo sair”, abarca, em um único fôlego. “A vida inteira foi assim”.
Do nascer até chegar ao século 21, a agricultora atravessou secas em cada uma das sete décadas. Maria de Jesus carrega noites de quase não amanhecer. “Comi pão de mucunã, uma frutinha da mata, muito venenosa. Pra pessoa fazer o pão, tinha que pisar o caroço, lavar em nove águas. Era o que tinha na seca, antigamente”, conta.
Viu uma criança e “uma família quase toda morrer” de fome. Garimpou água em cacimbas fundas, andou léguas com a lata na cabeça. Seguiu dom Fragoso (1920-2006; filho de agricultores e bispo de Crateús em 1964), cruzando a ditadura (1964-1985) com os ideais da Teologia da Libertação e dos direitos humanos. Foi presidente local do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, nos anos 90, em pleno combate da escravidão do pobre pelo dono da terra. E não se cansou.
“Filha, no semiárido, o problema não era a falta de chuva. Era os governantes, que era massacre para os trabalhador. Os mais pobre que fosse ser escravo dos mais rico. Os moradores (arrendatários) dos proprietários (de terra) tinha que trabalhar dois dias por semana, obrigatório, para o patrão. Se chovesse, não tinha direito de plantar a horta dele, ia, primeiro, plantar a do patrão. Alcancei isso aí”, narra a agricultora. Somente com “os mandatos populares”, assinala, de 2003 para cá, “os trabalhador foram tendo seus projeto pra viver”.
Sempre foi preciso mudar o pensamento em favor de novos tempos e convivências. Depois de caminhar com a Pastoral da Terra, em 1994, reflete Maria de Jesus, ela criou “outro sistema de viver” no semiárido: em par com a natureza. Protegendo o solo, valorizando a água.
Instalou uma cisterna de enxurrada (para captar água da chuva antes de se perder no escoamento), que armazena 52 mil litros, e um cacimbão que retorna a água do telhado ao subsolo. Soube que esterco de caprino e de ovino é adubo e mantém a umidade da terra – outra necessidade do semiárido: conservar água no subterrâneo. “Comprei um poço (em 2014), no Banco do Nordeste, tô pagando (até 2024)”, acrescenta, investindo na irrigação. “Aprendi que a gente deve conviver com aquilo que pode se manter. O tamanho da sua terra ser o tamanho do seu plano”, ajusta, feito a vida: não é ter pouco, é possuir o suficiente.
A avó é a história que alfabetiza Israel Matias da Silva, 30 anos, secretário de jovens do Sindicato de Trabalhadores Rurais e que assumiu a sucessão rural no sítio da família. Cria de Santo André, ele trabalha ao lado da avó e do pai, desde os oito anos de idade, quando voltaram ao Interior depois da ilusão geral na cidade maior. “No inverno, ela já mandava fazer nossa enxada pequena, e a gente subia com ela pra roça. É o espelho da gente”, descreve.
As gerações se encontram no amor à terra e no beneficiamento das frutas do sítio. Maria de Jesus continua à frente, madrugando e anoitecendo no fazer doces, licores, polpas. “Ela abriu caminhos pra gente: em 88, começou a primeira cajuína aqui”, segue o neto.
Na propriedade de quase 29 hectares - dois quintais imensos (um deles avista até a Serra Grande, fronteira com o Piauí) -, o cultivo ocupa espaço semelhante ao de seis campos oficiais de futebol. A flora nativa é resguardada desde quando pararam as queimadas e os agrotóxicos. “A mata se constituiu, mas ficou uma ferida: a terra ficou ácida. A recuperação é lenta”, observa Israel, que também é técnico agrícola.
A convivência respeitosa firma a ponte entre as relações e o futuro. Israel planeja o aumento e a sustentabilidade da criação de pequenos animais, com a palma. É a sua vez de abrir caminhos, pelas terras onde a avó escreveu a vida inteira. “Isso vai passando pra gente, de ter também uma responsabilidade perante essa terra... Nascer e se criar num espaço desse, a gente cria um apego muito grande”, abraça.
Sentimento à mão
Pensei no título desta matéria no rumo para Parambu. Havia(há) o infinito da estrada, um tempo escuro, e Belchior, na playlist do fotógrafo, me dizia para cantar muito mais.
Fome nunca mais
A agricultora Maria de Jesus Neves sempre comprou pouca coisa no mercado. “A goma (de mandioca) tinha, os ovos, as frutas, a carne”, diz sobre a oferta do semiárido. “Se tá seco, vai aproveitar as coisas que dá na seca. E se tá chovendo muito, aproveitar bem a água, pra sustentar quando vier a falta de chuva”, convive. “Tem que plantar o que o semiárido socorre”, relaciona.
Ela e natureza se ajudam. “A gente planta também na lua, que eu acredito muito na lua. Tem as fase pra plantar e pra colher, aproveitar esse momento, pra ajudar a natureza. Da lua nova para o crescente, é o tempo melhor de se plantar. Pra colher, chama assim: quando a lua tá no escuro”, orienta.
Na prática da lida, nas experiências compartilhadas ou na educação por escolas agrícolas, fez-se a permanência. “A ignorância faz com que as gerações se desloquem para o Sul. Porque não enxergam o potencial que essa região tem”, considera o técnico agrícola Israel da Silva. A roça não é castigo para quem não estudou, contrapõe: é criação de abelha, de cabra e de peixe, produção de frutas e legumes, para quem adquiriu conhecimento sobre o sertão.
Ao lado da avó, Israel marca um calendário da fartura: o ano começa com mandioca, gergelim, acerola; de abril a junho, colhem mel; em julho, é a safra do caju; novembro e dezembro são meses da manga. “Aí, começa tudo de novo. E, na Semana Santa, tem a tilápia”, anexa.
“Tem horas que a gente tá agoniado, como vou fazer? Tem todas as dificuldades. Mas a gente conversa, vai se organizando, ajudando uns com os outros”, pondera. São muitos semiáridos possíveis, ele aponta: “Semiárido é esse espaço de viver. Seja ele argiloso, arenoso, pedregoso... Cada povo, cada cultura, potencializa aquela região. Por detrás disso, tem que ter o cuidado ambiental. Se não cuidar, as futuras geração não vão desfrutar dessa riqueza que o semiárido tem”.
Com o vento a favor
A natureza é ponto de referência no Sítio Barreiras, localizado na zona rural de Quixeré (a 201,8 quilômetros de Fortaleza). Referência da casa, propriamente, como identifica um alguém na bifurcação da estrada: “É aquela que tem um pé de figo na frente”. E referência do tempo: o reflorestamento, iniciado há sete anos, traz de volta os pássaros que ocupavam a infância do dono do sítio. Quando era criança, lembra-se o agricultor Francisco Ednaldo Clementino Gonçalves, 50 anos, ele passava horas afugentando os pássaros, para não comerem a plantação de frutas do pai.
Esta história é debulhada debaixo da sombra da antiga árvore, onde Ednaldo colocou o banco centenário e as sabedorias que herdou do avô paterno. “Ele morava na Barra, aqui, próximo, e sempre dizia: ‘Meu filho, nunca derrube uma árvore, plante outra. Porque a árvore, o primeiro grande bem que faz ao ser humano é a sombra. E depois da sombra, os frutos. E o que alimenta, você não pode exterminar’”, guarda. Nas brechas dos galhos e folhas, onde os pássaros sertanejos fazem uma festa, um aerogerador também chama a atenção. É a tecnologia, ganhando espaço no cotidiano do sertão.
“Andando por Fortaleza”, reconstitui Ednaldo, ele viu a turbina eólica em um evento da área e se interessou em saber “como um agricultor podia chegar, um dia, a ter um negócio daquele na sua propriedade”. As informações das secretarias de Agricultura do Estado e de Quixeré o levaram a um financiamento por meio do Fundo Estadual de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Fedaf), via Banco do Nordeste. Foi um investimento de pouco mais de R$ 80 mil, equilibra: “Pra mim, alto ainda, devido à inovação”. Ednaldo deve começar a amortizar a dívida neste mês de São José, após três anos de carência (um deles foi um bônus por conta das últimas secas).
O agricultor utiliza a energia eólica na produção de polpas de fruta e comprova que fez um bom investimento. Ednaldo já contabiliza uma economia na manutenção dos equipamentos: “Antes havia um desgaste muito grande porque a energia (elétrica) tinha muita oscilação”, explica. “(A eólica) É positiva pela questão econômica e, por ser uma energia limpa, não está poluindo o meio ambiente”, soma.
A natureza passou a dialogar com o agricultor, retribuindo-lhe o cuidado. Nos fundos do sítio, plantas nativas e forasteiras (como o mogno africano), nascidas do reflorestamento traçado em três linhas, formam uma espécie de “quebra-vento, onde plantei um pomar de acerola”, mostra Ednaldo. “Tive um resultado enorme na questão do controle de pragas”, observa que o equilíbrio ambiental foi restabelecido.
A acerola é o carro-chefe da pequena fábrica de polpas do sítio. O comércio vai longe, passando por cidades vizinhas – Jaguaruana, Limoeiro, Russas, Morada Nova – , até Baraúna, no Rio Grande do Norte. Só não chegou a Fortaleza ainda, avalia Ednaldo, por causa da onda recente de violência. “A gente está um pouco apreensivo, mas já temos alguns contatos. Estamos esperando a poeira baixar”, planeja.
Enquanto isso, no sertão, Ednaldo vive “em harmonia com a natureza, com menos poluição” e uma riqueza singular. “De tudo tem um pouco”, ele exalta: manga, caju, açaí, cajá-umbu, pitaya, banana, abacate, goiaba... E se, na infância, ele afastava os pássaros com baladeira, hoje, pastora os adultos em redor para que não machuquem os ovos de sabiá-laranjeira, galo-campina, canário-da-terra... postos pelo sítio. “Não troco isso aqui por nada no mundo. Oportunidade de ter vivido fora, de Fortaleza pra frente, sobrou. Não vejo motivo pra sair”, passeia.
A ligação afetiva com o semiárido é herança que o agricultor recebeu das gerações anteriores. Mas também se amplia na convivência atual, aproximando passado e presente. “Hoje, a tecnologia, praticamente, resolveu a questão do semiárido. Porque o agricultor, tanto o familiar como o convencional, só espera pra produzir nas chuvas se quiser. Ele tem tecnologia pra produzir o ano inteiro”, inclui.
Sentimento à mão
Chegamos aos mil km, falou o motorista, mas não tive disposição para anotar o nome da cidade. Havia chegado ao cansaço dos altos e baixos, das curvas e buracos das estradas e das noites mal dormidas com medo de barata nas pousadas do fim do mundo.
Cartilha sertaneja
Os 11 quilômetros entre Pentecoste (a 95,8 quilômetros de Fortaleza) e a comunidade de Xixá, na zona rural do município, são de estradas de terra, curvas e bifurcações que parecem levar a lugar nenhum. No caminho, é também como se desfizessem as horas e existisse um tempo paralelo capaz de ser moldado pela vida – e não a vida caber no tempo; porque a vida, ali, ultrapassa o longe.
Na comunidade, vivem cerca de 48 famílias, circula a professora aposentada Maria Vieira de Souza, 57 anos, que mora em Xixá desde quando casou, há quase quatro décadas, com o agricultor Antônio Sinval de Souza, 67 anos, mestre de Reisado e dono do Xixá Esporte Clube.
Antônio preenche metade dos acontecimentos em Xixá. Ele elabora os versos do nascimento do menino Deus no meio de uma conversa banal, animando o sempre, aplaude Maria, na beira do fogão. “E se você souber que ele ainda joga e faz gol?”, ela engrandece. Fora o folguedo de janeiro e o campeonato de futebol, a festa da padroeira Nossa Senhora de Fátima e o Terço dos Homens movimentam a comunidade ano a ano.
Francisco Heitor Vieira de Souza, 27 anos, nasceu e se criou no pequeno universo dos pais e de Xixá, dando valor ao que tem. “Sempre tive o sonho de ficar, ter meu próprio negócio aqui. Estudava e já tinha o pensamento de não sair daqui, desde novo”, conecta. A vida é só outro modo de dizer sobre estradas de terra, curvas e bifurcações. “Como a gente nasceu e se criou aqui, a vivência é o que mais fica pra gente”, gosta Heitor.
Ele só não sabia como fazer para unir o pouco ao sonho. “Por causa da condição. Meu pai, toda vida, foi agricultor, e minha mãe, professora. Ela ensinava os dois turnos, e a renda que tinha aqui era só a da comida mesmo”, contrapõe.
A vida foi se fabricando: depois do Ensino Médio, um amigo lhe falou do Programa Jovem Empreendedor Rural (PJER), da Agência de Desenvolvimento Econômico Local. Ele não se interessou, foi preciso a mãe fazê-lo nascer outra vez, mostrar-lhe o tamanho da vida. “Eu sei que a gente tem o sonho de transformar o meio num ser maior”, agarrou-se Heitor.
A formação, no PJER, aproveita o que o lugar oferece e a vocação que cada pessoa ainda não sabia possuir. Heitor imaginou ser padeiro, mas avaliou que tinha muita concorrência e gente mais sabida. “Aí é onde a gente descobre o tamanho que a gente é, numa situação como essa”, encarou. Conhecendo sobre o mercado local e sobre si mesmo, escolheu se tornar um microempreendedor no ramo de galinha caipira. “Deu tudo certo: já tenho meu negócio, já estudo, batalho para ter uma visão a mais que eu não tinha”, convida a ver a produção, em três galpões que fez no sítio dos pais.
Cada galpão comporta cem pintos e rende negócios na região. “Acho pouco, quero mais”, projeta Heitor. “Meu dia a dia é assim: cuido dos meus bicho, leio algum livro, estudo um pouco. O dia começa 5 e meia”, traça o sustento. Com o dinheiro das vendas de ovos e galinhas, ele paga a faculdade de Administração, desde 2016, e projeta, “até o final de março”, construir mais dois galpões e chegar a ter uma granja climatizada. “Quando entrei na faculdade, foi só aumentando o desejo de crescer mais. Porque lá eu aprendo e, aqui, eu busco ideias. Levo o errado daqui e trago o certo de lá”, aproxima.
A criação de frango começou em 2013, quando Heitor disse para ele mesmo: “Tenho que ter uma técnica, uma visão, uma mente aberta. Tenho que saber como é que vou me manter e progredir. E assim fui levando a vida”.
O tempo lhe mostrou respostas “para o que estava procurando”, ele considera, e o semiárido lhe alfabetiza o viver. “O sertão traz a realidade do mundo. A gente convive com a seca, sabe pra onde vai”. As secas são como uma cartilha que ensina “que a gente não deve fracassar. Deve ter muito foco, muita fé, muita sabedoria diante de qualquer situação”, lê Heitor sobre o sertão.
Sentimento à mão
Quase 1.800 quilômetros percorridos em rodovias e estradinhas de terra e lama, durante 5 dias; manhãs e tardes inteiras de entrevistas; 39 páginas de apuração; 4 mil caracteres, em média, por texto; 26 dias corridos, incluindo fins de semana e madrugadas, para fazer tudo. Tem horas que eu penso que não vou conseguir. Então me apego com Deus e Nossa Senhora, como se houvesse um sertão dentro de mim. #vidadejornalista
Sertão nerd
Bem que se quis viver na Capital. Durante a infância, a microempreendedora Leonilda Soares Silva, 31 anos, acompanhou a peleja dos pais, migrantes do semiárido de Pentecoste (a 95,8 quilômetros de Fortaleza) para conseguir emprego na construção civil e se sustentar na cidade grande.
Mas a violência, maior, medida pela sensação de insegurança, por exemplos cada vez mais próximos, pela desconfiança de uns contra os outros ou por estatísticas absurdas de homicídios (só de crianças e de jovens, esse índice aumentou 1.039,6%, de 2003 a 2013, com 267,7 homicídios por 100 mil habitantes, segundo o relatório Violência Letal contra Crianças e Adolescentes no Brasil, de 2015) fez com que a família de Leonilda voltasse para a comunidade Serrota, a 13 quilômetros de Pentecoste, onde “quase todo mundo se conhece”.
Leonilda deixou Serrota outra vez, quando “quis arrumar um trabalho em Fortaleza. Com a ilusão, né, coisa de adolescente. Aquela questão de ser independente”, reflete. A ilusão durou cinco meses, no serviço de telemarketing, até ela criar pânico da violência na Cidade: “Em todo canto que eu entrava, eu ficava meio assustada”. Somente ao pedir demissão da fábrica de sapatos, onde ganhava um salário mínimo pelo expediente em pé, já de volta ao Interior, é que descobriu o tamanho do sertão.
Nem só de agricultura se vive no semiárido, ela demonstra, em constante renovação do negócio próprio, há quatro anos. O empreendimento, instalado no antigo quarto do irmão mais velho que se casou e de onde Leonilda pastora o envelhecimento dos pais, começou com um computador, cresceu lan house, virou gráfica de “impressão de boleto, trabalho da faculdade” e edição de imagem. “Fui dando uma melhoradazinha. Sempre tem que ter uma visão lá na frente”, ela ajusta.
O curso básico de informática, videoaulas em aplicativos e pesquisas na internet ampliaram olhares e pensamentos sobre o sertão. Leonilda percebeu que havia um campo desmedido para trabalhar na comunidade Serrota: uniu o gosto pelas culturas sertaneja e nerd - “que vem da infância nos anos 90, mas, no Interior, falta acesso a essas coisas”, pontua - em uma fabricação de lembranças personalizadas.
Cordel, HQs e rock se encontram e se misturam, em canecas e almofadas, originando estampas como O Cabra de Ferro e os Vingadores do Sertão, sucessos de vendas. “Tô tentando expandir mais, usando modelos diferentes, fazer combos”, projeta Leonilda, que aumentou o número de funcionários depois que o irmão passou no concurso (antes, eram só os dois), para mais três costureiras e uma auxiliar de produção e atendimento ao cliente.
A formação no Programa Jovem Empreendedor Rural (PJER), da Agência de Desenvolvimento Econômico Local (Adel), aprimorou a iniciativa, mostrando o mercado em redor. A microempreendedora vai além, usando um site de vendas para reverberar o sertão no mundo. “Tem três clientes minhas, de Minas Gerais, que sempre me indicam”, conta, planejando abrir uma filial da lojinha no município próximo, Apuiarés, “onde está tendo muito pedido”.
A principal dificuldade é o fornecimento da matéria-prima, que só tem na Capital. No começo, ela ia buscar, mas agora descobriu um modo de ganhar o tempo necessário à parte administrativa do negócio: o rapaz que faz a lotação também passou a trazer a encomenda de Leonilda do fornecedor que ela indica. No dia desta entrevista, ele buzinava lá fora, levantando a poeira da rua, com as novidades.
Leonilda convive de outra forma com o semiárido, tem um modo diverso de plantar e de colher, ao mesmo tempo em que possui raízes fixadas lá. Não pensa em arriscar o ganho longe, pelo contrário, com o dinheiro das vendas da lojinha, ela paga a faculdade de Administração “para ver se dou uma melhorada” e também ensina quem está ao lado “a se sobressair”.
É o sertão de possibilidades econômicas e humanas que lhe faz ficar. “Gosto da simplicidade de viver das pessoas. Parece importante eles fazerem isso: uns ajudando os outros. Tem pessoas que te apoiam, gente que você conhece. E você conhece o trabalho delas e dá importância também. Gosto por causa dessa simplicidade de viver aqui”, ressalta.
Sentimento à mão
O sertão sempre me surpreende pela força da natureza e das pessoas que nascem e renascem do nada. O sertão nunca é óbvio, eu acho.
Diário de bordo
Sentimentos escritos à mão, em par com a vida passada a limpo nos alpendres, nas cozinhas, nos quintais, nas plantações... Aqui, a repórter Ana Mary C. Cavalcante expõe impressões pessoais sobre a viagem ao semiárido cearense, pensamentos desgarrados, ideias soltas para os textos que escreveria na volta. São anotações do caminho - seja ele uma estradinha de terra, uma rodovia sem fim ou um dia depois do outro. Além do caderno original da reportagem, propriamente, o diário de bordo foi reproduzido em uma versão falada, com efeitos sonoros que transportam o ouvinte até o coração do sertão: sua chuva, seus bichos, enfim, sua natureza.
Segunda-feira, 4/2/19
#dia1
Emendei a viagem aos sertões com um plantão de fim de semana. Tenho medo do cansaço em dobro, mas a viagem tinha que sair e eu tinha que ir. O sertão sempre me chama. E o meu destino, nesta #vidadejornalista, é ir atrás de boas notícias.
O sertão é outro mundo, outro tempo. Sempre tenho vontade de ficar por lá.
São Gonçalo: tão perto e tão longe. Já nos perdemos até a 1ª história, GPS não funcionar, ligação oscila. Começo tenso, para cumprir o roteiro. #Jesusnacausa
História surpreendente e inspiradora, a da Rayssa + Vitor, que deixaram a Capital para viver no Interior. Que falta me faz a coragem dos 20 e poucos anos!
A vida dos outros parece tão mais simples... #Sigamos, que o sertão é grande.
Terça-feira, 5/2/19
#dia2
Começamos indo buscar uma história no meio do nada. Me perdi na lonjura, nas curvas, nos altos e baixos dos descaminhos até Gil, o rapaz do bordado. É muito difícil imaginar o viver no meio do nada, mas ele é possível. O ser humano ainda é surpreendente.
Moscas e mutucas perturbam meu juízo. Difícil conversar assim. #Jesusnacausa
Hoje perguntei muito sobre felicidade. O sertão me respondeu que ela está mais perto do que se imagina. #ensinamento
Ter o que comer e o que sonhar são o suficiente.
Acho que o sertanejo não é um povo conformado. É agradecido. E isso faz uma enorme diferença no viver. #ensinamento
A terra é mãe; educa.
12 horas de trabalho, estrada sem fim.
Quarta-feira, 6/2/19
#dia3, meu aniversário
Encontramos a chuva na estrada. Ganhei um arco-íris imenso (de uma serra a outra) de presente.
Maria de Jesus, um nome bonito.
O sertanejo ainda é um homem que confia em outro homem; ainda é um homem que alimenta outro homem. #ensinamento
Portas e vidas abertas para nós entrarmos...
Trouxe uma semente de mucunã de lembrança, vou ver se faço uma pulseira igual a da Isla.
Inventário do dia 6 de fevereiro: uma trufa, uma laranja orgânica, uma chuva. #vidadejornalista
“Quem gosta cuida”, fiquei com a frase de D. Celina na cabeça. #ensinamento
À noite, chegamos em Senados Pompeu. Pousada ruim, fome, rãs e chuva. Chorei até dormir. Não houve aniversário, o tempo não volta.
#Sigamos, que o sertão é grande.
Quinta-feira, 7/2/19
#dia4
A melhor tapioca e melhor nata (caseira) que já comi na vida: pelas mãos de dona Antônia, que fez questão. Em toda casa sertaneja, teve a oferta de uma boa prosa e de uma boa merenda. A gentileza é a alma do sertão. #ensinamento
Vontade danada de ter um quintal produtivo como o do seu Chico do Leite. Comer o que produz, ganhar com o que sobra, ser o dono das horas, ter um passarinho como companhia... A tentação de deixar o jornalismo só aumenta!
Tem muita dificuldade, tem. Mas também tem muita compensação. A felicidade é equilibrista. #ensinamento.
Ganhei sementes de girassol do seu Chico. Também vou plantar mamão e laranja.
Na playlist da viagem, Belchior vai me sugerindo o título de uma das histórias.
Imersão total, nem me lembro que tenho que voltar.
#Sigamos, que o sertão é grande
Sexta-feira, 8/2/19
#dia5, o derradeiro
Sexta-feira, graças a Deus!
Muita dor nas costas, dos quilômetros e quilômetros em uma Doblô, mas já amanhecemos em Jaguaribe, o que facilita. Hoje tem “só” o sítio Brum, que é um mundo. #vidadejornalista
Gostei da formação do seu Francisco, dono do sítio: “enxadologia”.
Quase virei uma árvore da área que seu Francisco refloresta, há dez anos. Nem sei quanto tempo de trilha sob um sol iminente e por entre pedras e desníveis. Mas a floresta sertaneja tem seu valor: mandacaru é rei.
#inventáriodofimdomundo
O sertão é surpreendente porque são muitos sertões: diferentes e belos, na chuva e na seca. A natureza ensina a viver. Há mistério e encanto em tudo isso. Mas é preciso ver, ouvir, experimentar o sertão. O sertão é o maior “rio” que conheço: nunca saí de lá do mesmo jeito que entrei.