O nascimento de mães

Por Eduarda Talicy (textos) Por Camila de Almeida (fotos)

Quatros mulheres, três partos e a vida toda transformada. Nos últimos três meses, O POVO acompanhou a trajetória do nascimento de mães. Em casa, no hospital ou pela adoção, são muitas as formas de renascer.

Ivna e Bia

Nascer se basta. Nascer é um futuro correndo solto como um rio anunciando um jeito novo de existir. Daqui a pouco já foi, daqui a pouco tem a vida inteira como porvir. Não havia um encontro marcado entre Ivna e Bia. Existia, sim, a espera como decisão. A rebenta nem sabia ainda, mas a mãe, Ivna Pinheiro, 35,é uma anfitriã e elegeu a casa como o melhor lugar para receber o amor novo. Fosse a qualquer hora, em qualquer dia, com tudo o que quisesse, uma certeza: a família pronta para ser de novo ao lado dela.

Era noitinha chuvosa de 27 de abril quando as primeiras contrações se iniciaram. Tudo começou a se ajeitar no lar, assim como no corpo, para essa chegada. O abrir e fechar de portas na casa se tornou uma constante naquela noite. Chama doula, chama parteira, fotógrafa, organiza o quarto, separa a roupinha, mais uma contração, e depois outra. Respira.

“Nós sempre quisemos ter uma família grande. Nós já temos o Bento (5) e a Íris (2,5) e todo mundo dizia que um casal de filhos é a perfeição, mas desde muito antes eu já sonhava com a Bia, antes de estar grávida, eu sonhava que fal tava outra pessoa na nossa família e era uma menina, ela vinha em sonho”, conta Ivna, relembrando a filha anunciada. Bruno Soares, 35, pai das meninos também é filho único e crê que conviver é verbo que se conjuga em mesa farta e casa cheia. “Eu acho que o parto é uma decisão da mulher porque é no corpo dela. Se é cesárea se é normal, se é domiciliar, hospitalar. Fiquei muito feliz porque ela tomou a decisão dela com certeza e segurança”, diz Bruno.

Enquanto os irmãos e avós dormiam, no quarto ao lado uma revolução rompia a madrugada. Os aparatos que assegurariam qualquer procedimento que fosse necessário estavam à mão. Mas num diálogo muito próprio com a filha, Ivna sabia bem que o caminho possível era tateado principalmente pelas duas. Uma menina que era um nome, uns revoltos dentro da barriga, estava prestes a ter uma forma. A mãe, que já respirara os ares de parir outras vezes, se via nascer de novo para a outra filha.

“O parto domiciliar nunca foi o meu sonho. Eu sempre confiei muito na autoridade médica e isso mudou quando nós tivemos uma experiência de parto bem complicada com nosso primeiro filho, com violência obstétrica. Então decidi que meu segundo parto seria em casa e foi uma experiência ótima”, explica. Depois dos dois meninos nascidos em terras potiguares, a Bia veio conhecer o mundo em Fortaleza. Aqui, a obstetriz Juliana Mesquita, a doula Amanda Brenner, a enfermeira obstetra Semírames Ávila e a fotógrafa Roberta Martins foram as compa nheiras desse prenúncio.

Nascer é também um conflito. Os processos que acontecem no corpo são a superfície do rede moinho de dentro. Três da madrugada e o trabalho de parto ativo começa a dar sinais. Dilatação evoluindo rápido e as dores só ficam mais intensas. O resto da casa no escuro e no fundo a música de meditação que quase não podia ser ouvida diante daquela mulher fazendo outra existir. Tudo isso despontando e lá fora, aos poucos, o sábado foi virando domingo e uma criança estava prestes a nascer na Cidade.

Pra pegar menino, que é como se diz nas linguagens das parteiras, é preciso sentir. “Ela está perto de chegar e você vai segurar, não se preocupe, eu estou aqui”, garantiu Juliana ao pai enquanto ensaiava as mãos dele para receber a filha. “Vou ao quarto, ela vai nascer agora”. Já posicionada, Ivna fez da doula apoio, orquestrou a força. Pela varanda, a manhã amarelinha e fria rastejava pelo quarto.”Que horas são?”, pergunta. “6h11”, respondem. Foi diante do apego pelo meio que Juliana lembrou para Ivna que nascer vem de dentro. “Ivna, está racionalizando demais, se concentra, é hora de parir”.

Às 6h14, com cheiro de café no mundo, a menina veio decidida, chorando alto, segura nas mãos de Bruno. Imediatamente deitada sobre a barriga da mãe, a mão miúda segurou forte aquela mulher como quem diz: “Eu ainda sou desse corpo”. Numa simbiose que nem mais dezenas de parágrafos escritos vão explicar, a criança farejou o peito e mamou. Bem recebida como um amor deve ser. Veio conhecer um pai emocionado, dois irmãos recém-acordados querendo beijá-la e uma mãe que transformou um domingo todo só pra ela chegar. O nome Bia significa “a que traz felicidade”. Nascer é festejar também.

Natália e Rael

Mudar é um dos jeitos mais confusos de dizer sim e é também um dos mais genuínos. O parto às vezes parece um quebra-cabeça de peças que não precisam se encaixar nos lugares que se estabelecem. Para cada encaixe, um desenho novo. Em todos os desenhos possíveis, o nascimento de Natália e Rael trazia a entrega como paisagem multicolorida. Desde sempre, Natália Ísis, 31, viu o tempo do Rael contrariar qualquer previsão. E, diante disso, se permitiu.

Ser mãe se tornou ideia sólida lá pelo meio de 2018. "A gente já pensava em ter filhos num futuro próximo". Mas de futuro próximo se entende pouco. James Ferreira,33, marido da Nath, vislumbrava 2020 como o ano dessa chegada. Nem sabiam que, como eles, o menino gostava de banhos, e foi gerado numa viagem pelas margens do rio São Francisco em junho daquele mesmo ano. Menino de água doce e de água salgada que é, Rael queria chegar antes.

"Esse início (da gravidez) envolveu bastante ansiedade porque é um momento em que a barriga não apareceu, você não sente seu bebê mexendo, não tem nada que te diga que está lá. Foi no ultrassom o primeiro momento que eu senti: tem um coração batendo aqui dentro além do meu. Me emocionei muito, se tornou real", definiu Natália sobre os primeiras traços de um filho dentro de si. Generoso que era, o menino começou a mexer e não parou até a hora de chegar. Sempre dando às ansiedades daquela mãe os avisos de um filho forte e vivo num ventre que supria tudo.

Quarta-feira, 27 de março, às 11 horas da manhã, no meio da burocracia do dia útil, já nas 42 semanas, chega a onda forte: se iniciam as contrações. Na porta do quarto da maternidade, um bordado desenhava um mar, um dia ensolarado e o nome do menino, ponto a ponto, em linha firme. Entre passos de dança e agachamentos Natália fez alto o convite: "Vem, Rael, vem dançar aqui fora!". O menino nem chegara e já era feliz. Era o começo de uma chegada longa, mas efetiva.

Parir é imprevisível. O médico José Fernandes bem sabia. "Pode ser daqui a pouco, pode ser daqui a três dias. Eu só estou aqui para ajudar essas mulheres a terem esses bebês". Naquele quarto, naquelas tantas horas, mãe e pai se conectaram num microcosmo de quem sabe que novas pessoas, além daquela que viria, nasceriam também.

O tempo também é árduo, é agoniado, mas o tempo justifica as coisas. Depois de oito horas de contrações, com a dilatação ainda lenta, veio a indução. O corpo de Natália começou a responder, as contrações se intensificaram e veio a necessidade de mais água. Em uma das raras saídas, James fecha a porta e respira fundo, até repor os pulmões e destravar a garganta. É que os dois amores da vida estavam se dando inteiros para conhecerem um ao outro. Naquela altura, já depois de 20 horas de contrações, as canções de Gil e o cheiro de lavanda inundavam o quarto. Findava um dia e o outro se iniciara. A obstinação em se fazer caminho aberto para o filho existir dava sinais o tempo todo naquele corpo se colocando cais para o menino ancorar. Fazer nascer é ancestral.

"Fearless woman" estampava a camisa de Natália na chegada. Em livre tradução as palavras falam de "mulher sem medo". Depois de mais de 28 horas de contrações, a frase se refez em ato. Com dilatação ainda lenta, sem encaixe suficiente e sem tempo para mais antibióticos, ela decidiu pela intervenção cirúrgica. "Tudo acontece no seu corpo, mas com o tempo de outra pessoa. Nosso tempo agora também é o tempo dele", definiu Natália. Fazer nascer exige coragem. Às 17 horas do dia 28 de março Rael chegou. O menino rompendo o mundo, em uma família que sentiu que precisava trazê-lo. Que sentiu que já era a hora de dançar com ele aqui fora. Naquele finzinho de tarde, Rael nasceu que nem a composição de Arnaldo Antunes: sereno, confortável, amado, completo.

Indyra e Tati
e Davi e Levi

Existe um vocabulário específico que circunda o parto. Uma tentativa um tanto frustrada de versar sobre esse torpor, o revolto na vida, o prazer. Alguns minutos de conversa com Indyra e Tatiana mostram que parto é também decisão. Gestar pode ser tão múltiplo e diverso quanto duas mulheres conseguem ser mães diferentes dos mesmos filhos.

Depois de quase dez anos se construindo juntas, o casal buscou a extensão do amor. Indyra Cândido, 33, e Tatiana Gomes, 33, decidiram ser mães. A definição trouxe também uma trajetória. Estar pronta exigiria tempo, e quando chegasse o tempo, as coisas ainda assim não estariam findas. "Acho que a primeira preparação foi assumir e decidir que nenhuma das duas queria gerar uma criança, e decidir entrar nesse processo sabendo todas as dificuldade. Entender que seria uma gestação mais prolongada", conta Tatiana sobre o caminho da adoção.

A maternidade era, para Indyra, uma janela com vista para um espelho. "Eu não sei como exatamente a gente cresce e decide ser mãe, se isso é um processo que a gente recebe do meio, da família, eu acredito que isso esteja muito relacionada à figura da minha própria mãe, do que ela representou como mulher, e talvez até um desejo de parecer com ela".

Em uma gravidez de muitos partos, a saga que se iniciara tinha um único objetivo: ser melhor para criar gente boa para o mundo. "A gente fez muita leitura, estudou os trâmites da lei, buscou grupos de apoio, fizemos terapia". Ambas num útero, se gestando para o encontro de filhos prontos.

Grandes ou pequenos, de qualquer cor, um ou mais. O caminho de fevereiro de 2016, quando se iniciou a habilitação, até janeiro de 2018, quando entraram no Cadastro Nacional da Adoção, ensinou que ter filho é um abismo. Mas cedo ou tarde o imaginado ganha forma. O domingo de 11 de março de 2018 tinha cara de dia qualquer que traria outro e depois outro; mas o telefone tocou. 'Seus filhos estão te esperando', ele disse. Eu fiquei dormente, estava esperando um voo, não conseguia fazer check in, liguei para Indyra, precisava dividir isso com ela".

Eis a realidade vindo com tudo. Dois meninos, irmãos, um com quatro outro com nove anos de idade. A realidade veio com nomes: Davi e Levi. "Acho que é o que se assemelha a ter o teste de gravidez positivo, quando eu percebi que naquele momento eu ia ser mãe", descreve Tatiana. Do outro lado do País, Indyra chorou como se ela mesma nascesse.

O primeiro encontro de fato se deu no dia 26 de março de 2018. O corpo todo pulsava, mas a razão segurava a alma. Se conhecer era o primeiro dos muitos passos de amar. "O meu filho mais velho só tinha 1% de chance de se ver de novo em uma família", calcula Indyra.

A cada passo, as distinções iam costurando uma família. Tatiana, que foi obstinada em se preparar para estes meninos, viu a presença dos filhos em casa como a possibilidade de ser leve. Como voltar de um mergulho profundo e pegar ar de novo. Ela é a mãe que gosta de brincar, de descobrir. Tanto faz se a escova de dente não veio, lá a gente compra. Ser família é o lugar de respirar tranquilo.

Indyra, que esperou esses meninos com a vida toda entregue é a mãe segura. A vida já fora angustiada demais até ali e tudo que fosse feito para garantir proteção àqueles amores, seria pouco. As tais noites sem dormir também chegaram por lá. "Quando eu me sinto mais mãe é quando olho pra eles e vejo as coisas boas que eu tenho, o jeito de falar e de tratar as pessoas. Eu quero muito devolver para eles, durante o resto da minha vida, o que a vida tirou deles", respira.

Água na hora certa, o frutômetro, a correção educacional, os dentes escovados. Há pouco mais de oito meses, é na diferença que ambas são para os filhos o complemento genuíno.

"A fruta que a mamãe Tati mais gosta é ata e a minha é caju", diz Davi, o mais novo. O mais velho já sabe que além de estudar, e brincar precisa lavar a louça. Eles juntos perguntam pelas avós, pela programação do fim de semana e seguem os corredores da casa que já é cheia de memórias deles e daquelas mães.

Sobre qualquer ensaio de futuro, a Tatiana projeta: "O que eu quero é que eles entendam que aqui só tem amor. Que quando crescerem isso se enraíze de uma forma tão natural que eu vou, no futuro, olhar para os meus filhos já adultos e pensar: tá ai o resultado de tudo, toda a nossa energia, todo o nosso amor transformou eles em homens felizes e bons".

Bastidores da reportagem

O projeto Parto: o nascimento de mães surgiu da vontade de falar sobre esse encontro. Não só daquelas mulheres com seus bebês, mas delas com elas mesmas. Em meados de fevereiro, em uma reunião com diretores apresentamos a proposta. A ideia era falar dos muitos jeitos de parir: em casa, no hospital, uma adoção. Uma vez acolhida a ideia, tínhamos um longo trabalho pela frente que envolvia mais que uma apuração rigorosa ou uma boa produção. Exigia confiança.

Levou tempo até alinhar a nossa equipe, formada por mim e a fotógrafa Camila de Almeida, com essas mães. Quando finalmente conectadas, a ansiedade se tornou nossa também. Desde evitar sair até muito tarde para não estar muito cansada caso a bolsa rompesse, até viver com o telefone celular fora do habitual modo silencioso.  A cada parto, uma experiência de vida diferente. Com Natália entramos na maternidade numa quarta à tarde e saímos só na quinta à noite, depois de quase 30 horas, e felizes com um menino novo no mundo.

No parto de Ivna, que abriu as portas da casa pra gente, fomos chamadas às três da madrugada, em uma noite chuvosa, para receber a Bia. Conhecer a família de Indyra e Tatiana nos fez atravessar a Cidade num domingo lindo. Cada palavra escrita por mim é regada de gratidão a essas mulheres. Esse foi um trabalho conjunto com uma equipe inteira que acreditou nele. A cada nova história, novas ideias e muita gente disposta a realizar e ver esses relatos num jornal de domingo.

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Parto: quando nascem as mães

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