Depois de quase meio século de luta, a regulamentação do Parque do Cocó propõe uma reconexão da Cidade com meio ambiente. A transformação do Parque em Unidade de Conservação poderá estabelecer um relacionamento mais afetivo, sustentável e ético. Pelo resgate de espécies à beira da extinção, como o caranguejo guaiamum, e por cada cidadão que recebe os benefícios de o Cocó ainda resistir.
Depois dos especiais Expedição Cocó (2012), O POVO lança um olhar para os desafios a partir de agora.
Em janeiro deste ano, completei 10 anos de andanças pelo Cocó. Uma jornada pessoal e de repórter. Para saber mais sobre aquele pedaço verde de Fortaleza que foi sendo espremido entre prédios, asfalto, invasões, esgotos, lixo e ameaças constantes de novas intervenções no rio, na floresta e no manguezal.
Uma máquina fotográfica, anotações, pessoas e botas me encaminham para outros olhares, principalmente, na área da Sebastião de Abreu – onde funciona a sede do agora Parque Ecológico Estadual. Com a demarcação das poligonais (1.571 hectares), no último dia 4 de junho, o governador Camilo Santana (PT) obriga o Poder Público e convida a população a uma nova trama afetiva e ética com a Unidade de Conservação Integral do Cocó. Terá de ser mais sustentável e menos antropocêntrica no sentido do desenvolvimento econômico, destruição e promessa de bem estar humano desconectado com a natureza.
O POVO, sempre atento a essa perspectiva, lança mais um olhar sobre o bioma tão importante para todos nós. E depois da série Expedição Cocó (publicada em 2012), do acompanhamento permanente sobre a nossa floresta urbana, oferece este caderno especial, artisticamente traçado e esquadrinhado em cima do mapa da demarcação, que veio com atraso de mais de 40 anos. Mas o importante é que chegou. E vem para inaugurar, e reforçar, demandas do Estado Ecológico e do Direito inclusivo da Natureza. Que seja bem-vindo! E que a gente consiga usar, fruir e cuidar.
MAIS SOBRE O ESPECIAL PARQUE DO COCÓ: OS DESAFIOS PÓS-DEMARCAÇÃO
WEBDOC – Realizado pelo Núcleo de Audiovisual do O POVO, o vídeo conduz o espectador por um passeio pelo Parque, suas trilhas, lagoas, rio, fauna e flora.
TV O POVO – O webdoc vai ser exibido amanhã, 19/6, às 13h30min, e será reprisado depois de amanhã,21/6, às 15 horas, e na sexta-feira, 23/6, às 18 horas. Canais 48 (TV Aberta); 23 (Multiplay) e 24 (NET).
O POVO Online – Este especial reúne o acervo deste suplemento, além de conteúdo exclusivo, incluindo uma galeria de imagens, webdoc e bastidores da produção.
DEPOIMENTO
O refúgio do caiaque
Para se contrapor à correria da semana em Fortaleza, nada como se refugiar no Parque do Cocó durante o primeiro domingo de cada mês. É lá onde o artefinalista Kllinger de Sousa, 45, “descansa a mente e o olhar” quando quer dar um basta na pressa.
Ele, que é integrante do grupo Caiaqueiros de Fortaleza, diz que encontra ali, também, um espaço para a pesca esportiva. “Pescamos e soltamos as pemas. São filhotes de camurupins, de 1kg e muita espinha. Quando adultos, podem chegar a 120 kg”, descreve Kllinger.
Além do “pesque e solte”, o grupo de amigos também recolhe o lixo que vai se acumulando nas margens e na vegetação ribeirinha. “Colocamos em sacos plásticos e deixamos nas lixeiras do Parque ou entregamos ao tenente Araújo (barqueiro responsável também pela coleta)”, o artefinalista.
O risco da extinção
Vencida a batalha da regulamentação do Parque, o Cocó requer todos os cuidados. O risco de extinção de algumas espécies é uma ameaça ao espaço tão fundamental a Fortaleza. Acuado no que restou de rio, floresta e manguezal, é invisível o que desapareceu ou está para ser dizimado fora da Cidade edificada.
Aos olhos de quem se apressa no vai e vem da Capital, é quase uma cegueira ser indiferente à superexploração e destruição dos recursos naturais reunidos na cartografia do Cocó. De Pacatuba, onde nasce numa serra (passando por Maracanaú e Itaitinga), até o mar do Atlântico – quando o Ceará se conecta ao Mundo pela boca da praia do Caça e Pesca.
Não há pesquisa acadêmica sobre as extinções no Cocó, fui saber nas universidades Federal e Estadual do Ceará. Então resolvi observar. Em dez anos de registros fotográficos e rodapés, alguns animais deixaram de aparecer em pelo menos quatro pontos costumeiros nas trilhas da Sebastião de Abreu.
Guaiamuns (Cardisoma guanhumi), aratus (Aratus pisonni) e chama-marés (Uca sp) eram frequentes, de 2007 a 2012, na extensão das trilhas: do Rio, Principal (ruínas das salinas dos Diogo e lagoas de passagem) e próximo aos dois campos de futebol (antigas salinas). Seriam estes caranguejos espécies migrantes? Luciana Nascimento Mendes, pesquisadora e doutora em Ciências Marinhas Tropicais pela Universidade Federal do Ceará (UFC/Labomar) afirma que não (Leia entrevista na página 3). A não ser em pequenas distâncias e na época da “andada” para o acasalamento e reprodução.
O guaiamum, desde 2014, entrou na lista das espécies vulneráveis à extinção de acordo com a Portaria 445/14 do Ministério do Meio Ambiente (MMA). E, em março deste ano, o Governo Federal determinou, segundo Portaria 161/2017, que sua exploração será permitida até 30 de abril de 2018 nos nove estados do Nordeste.
O chefe de fiscalização local do Ibama no Ceará, Miller Holanda Câmara, afirma que a vigilância mais incisiva em torno da captura e comercialização da espécie se deu com a edição da Portaria 445. Agora, “só poderemos agir nesse sentido a partir de abril do ano que vem”.
Nem o Ibama/Ceará nem as universidades nem a Secretaria do Meio Ambiente do Ceará (Sema) têm qualquer estudo sobre a presença e a captura do guaiamum ou “caranguejo azul” nas trilhas da Sebastião de Abreu ou em outros pontos do Parque do Cocó.
Quem dá notícias da redução deles na Sebastião de Abreu são pescadores que armam “covos” – espécies de gaiolas hoje feitas com garrafas pets – para capturá-los. Uma pesca de subsistência no mangue feita, geralmente, à noite. Turno de maior atividade dos guaiamuns.
De 2012 para cá, ainda se vê um ou outro caranguejo azul na Trilha Principal e, raro, na Trilha do Rio. Tenho alguns registros durante a quadra chuvosa/inundações ou quando o mangue seca que a terra racha. Nos terrenos degradados dos campos de futebol, ponto onde mais se descarta lixo nas trilhas da Sebastião de Abreu durante os fins de semana, já não existem tocas.
Na Trilha do Rio, onde havia maior atividade dos caranguejos citados aqui, não se fotografa mais “procissões” de aratus escalando as árvores. Em menor quantidade, podem ser vistos embaixo da ponte. Os chama-marés, e seu ritual de exibir a pata grande de corpo miúdo, nem isso. Sumiram.
O risco é se repetir a mesma sina do “rentável” caranguejo-uçá, desaparecido da lama da Trilha do Rio. Em dez anos, e indo em diferentes horários e dias nos meses, fiz um registro de um indivíduo próximo à ponte. O guaiamum segue a mesma escrita da insustentabilidade de coexistir numa floresta que se tornou urbana.
DEPOIMENTO
O parque da infância
A relação com o Parque do Cocó vem desde a infância. Das memórias de Alexandra Monteiro, 26, vêm os passeios com tios e primos. Finais de semana e feriados no contato com árvores, com alguns animais, com a terra e a experiência do espaço expandido além dos limites do viver dentro de casa. “Aproveitávamos o frescor e o ambiente para fazer trilhas e andar de bicicleta (no Adahil Barreto)”, lembra a mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Hoje, reconhece Alexandra Monteiro, as idas não são tão frequentes ao Cocó. “Não vou sempre. Fui muito na infância e na pré-adolescência, mas sempre passo em seu redor. Olho e sinto uma sensação de paz vinda do Parque”, afirma.
Desafios pós-demarcação
Regeneração e uso sustentável
O desaparecimento de crustáceos de uma área pode influenciar de forma insustentável noutra região. É o perigo do efeito em cadeia por causa do uso inadequado de um bioma sem zona de amortecimento e muito urbanizado. Caso do Parque do Cocó. Quem afirma é Luciana Mendes, engenheira de pesca e doutora em Ciências Marinhas Tropicais pela Universidade Federal do Ceará/Labomar. Ela é professora do Curso Técnico em Recursos Pesqueiros do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Macau, e estudiosa da reprodução do guaiamum em laboratório.
Sua pesquisa busca entender como esses animais conseguem sobreviver em regiões hipersalinas, com áreas com braços de mar, sem nenhum rio para diminuir a ação da salinidade. No Parque do Cocó, mais precisamente nas trilhas da Sebastião de Abreu, onde há 10 anos venho fotografando o comportamento desses animais, a redução das populações de guaiamuns, chama-marés, aratus e caranguejos-uçás é um alerta. Pode estar ligada ao uso inadequado do bioma. (Demitri Túlio)
O POVO – Crustáceos como o guaiamum, aratu e o chama-maré, presentes no Parque do Cocó, são espécies migratórias?
Luciana Mendes – Os crustáceos variam entre diferentes classes, ordem e famílias. Além, claro, das espécies. Os caranguejos mais comuns, que vivem nos manguezais ou na praia e que são muito conhecidos pela população por seus nomes vulgares, não são animais migratórios. Salvo durante o processo reprodutivo, quando saem de suas tocas e procuram águas mais ricas em nutrientes e oxigênio para ali despejarem suas larvas. Retornando em seguida ao seu habitat natural. Essa “pequena” migração temporária para reprodução é mais comum em períodos de luas cheias, crescentes ou novas. E, em se tratando das espécies que têm grande importância não só ecológica, mas econômica, como é o caso do guaiamum (Cardisoma guanhumi) e do caranguejo-uçá (Ucides cordatus), o pico da reprodução corresponde aos meses de dezembro a fevereiro, para o guaiamum, e os meses de janeiro e fevereiro, para o caranguejo-uçá.
OP – Na migração, qual a distância do deslocamento?
Luciana Mendes – No caso do guaiamum, que vive em zonas de mangue, porém longe das grandes influências das marés ou nas restingas mais altas onde a água salgada não alcança (como é o caso das zonas de apicuns), podem ficar a quilômetros de distância do mar, e até mais de 30 metros da faixa de água do estuário. O caranguejo-uçá, basicamente, migra em uma área menor, uma vez que estão mais próximos das zonas de marés. Todavia, se ocorrer grande descarga de água doce no estuário, é possível que esses animais migrem para o mar. Para terem maior acesso à água salgada, da qual são fortemente dependentes. Ao contrário do guaiamum que, quando adulto, pode viver tranquilamente em água doce. Uma vez que sua toca pode atingir até mesmo o lençol freático devido à sua profundidade. Outros caranguejos, como o aratu ou o chama-maré, é possível que possam ter sofrido migração devido à alteração na qualidade da água, ou mesmo diminuição do tipo de componente de sua dieta diária, fazendo-os migrarem para outras áreas próximas.
OP – A intensificação do uso do Parque, sem critério, poderia influenciar no desaparecimento de aratus, chama-marés e guaiamuns?
Luciana Mendes – É possível que fatores antropogênicos possam afugentar esses animais, bem como a poluição do seu habitat. Barulho intenso, movimentação constante no solo pode alterar o comportamento animal, principalmente o do guaiamum que tem hábito noturno. Ao contrário do aratu, caranguejo-uçá e ucas (chama-maré).
OP – Em área de mangue, o que determina a presença deles no bioma?
Luciana Mendes – A alimentação da maioria dos caranguejos é composta basicamente de folhas de mangue. Todavia, alguns microcrustáceos também podem compor a dieta destes animais. Diminuição de uma determinada espécie de mangue (como é chamada a vegetação) pode influenciar o comportamento alimentar dos animais. Ou a inclusão de substâncias químicas na água, sendo absorvida pelas raízes, alterando o sabor desse vegetal, já que o manguezal é considerado um grande filtro biológico. É possível que a presença de espécies não nativas também possam interferir no comportamento dos animais, ou mesmo desmatamento. No caso do guaiamum, que possui hábito noturno e é considerado por alguns autores um caranguejo terrestre, ele constrói suas tocas em locais de difícil acesso. Debaixo de troncos, de folhas caídas, sob o capim em áreas de apicuns. Se há alteração nesse ambiente, provavelmente, construirão suas tocas em outros lugares (sofrerão uma migração em busca de melhores lugares para sua sobrevivência – um novo habitat.
OP – Qual a função deles no manguezal?
Luciana Mendes – Em geral, os crustáceos de manguezal têm a importância ecológica como manutenção da cadeia trófica (ligação de cadeias alimentares) e ciclagem de nutrientes. Como é o caso do guaiamum, uma vez que possui toca muito profunda.
OP – Como ocorre a reprodução deles no mangue?
Luciana Mendes – Durante o período de maré cheia, os machos saem em busca das fêmeas para copular. A exemplo do caranguejo-uçá, ficam muito visíveis devido ao seu tamanho e expostos durante o dia. Nesse período, chamado de “andada”, também ficam vulneráveis ao ataque de aves, animais maiores, e ao homem. Nas espécies Uçá, exemplo do chama-maré e outras do gênero, há relatos em trabalhos científicos que machos dão uma batidinha na toca da fêmea. Para que saia e copulem. No caso do guaiamum, antecedendo a reprodução, a fêmea muda de cor, alterando sua coloração azul lavanda, ou roxa amarelada, para esbranquiçada ou amarelada. Em alguns casos é perceptível essa leve alteração nos machos de guaiamuns, também. A fêmea, entre 15 e 17 dias, permanece com sua massa de ovos (chamada de fêmea ovígera, como termo técnico ou ovada no termo usual). Depois, migra para a água já próximo à eclosão (nascimento) das larvas, que se dá dentro da água com o rompimento do ovo. Se as pessoas pescam esses animais ainda pequenos, suas populações diminuirão drasticamente, já que demoram a crescer. Ao contrário dos camarões, cuja carapaça é fina e fácil de ser removida durante as mudas.
OP – O Parque do Cocó, na área da Sebastião de Abreu onde fotografo há dez anos, é habitat do guaiamum, que aparece na lista das espécies ameaçadas de extinção/Ibama. Como deveria ser o uso dessa área?
Luciana Mendes – Sabemos que o Parque do Cocó, apesar de ser uma área ambiental, um parque ecológico, não teve a inclusão de sua zona de amortização, ou melhor, aquela área a qual o separaria da proximidade do contato urbano. Se observamos bem, edifícios, supermercados, rodovias, dentre outros empreendimentos, estão não só no entorno do manguezal, mas dentro dele. Associemos barulho, luminosidade intensa, alteração na vegetação, contato com alimento descartado pelo homem. Em ambiente confinado, a fim de estudo do guaiamum, foi possível administrar legumes, verduras, na dieta desse animal. Todavia, em um parque, sabemos que os visitantes descartam comidas industrializadas como pipocas, salgadinhos e outros alimentos. Consumidos por estes animais, poderão lhes causar sérios danos em seu sistema digestivo, além de produtos químicos carreados em sua hemolinfa (sangue azul dos crustáceos). São necessárias ações maiores de conscientização (e de pesquisa) por parte do poder público, das instituições de ensino técnico e superior, das comunidades pesqueiras e extrativistas. Além da população que faz uso do parque para suas atividades diárias. Se uma população de crustáceo é reduzida em uma dada área, essa redução gradativamente impactará outras regiões.
PERFIL
Luciana do Nascimento Mendes é engenheira de pesca pela UFC, doutora em Ciências Marinha Tropicais pelo Labomar/UFC e professora do Curso Técnico em Recursos Pesqueiros do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Macau. Ela pesquisa a reprodução do guaiamum em laboratório. Este ano, defendeu a tese de doutorado onde estimou, com dados da larvicultura e dados de campo, que o guaiamum tem uma alta longevidade. Tendo crescimento rápido até os 6 anos. A pesquisa indica uma longevidade entre 15 e 20 anos de idade. Também investiga a abundância e a densidade da espécie em uma faixa de manguezal do município de Macau (RN). A pesquisa busca entender como esses animais conseguem sobreviver em regiões hipersalinas, com áreas com braços de mar, sem nenhum rio para diminuir a ação da salinidade.
Sentimento de pertença
A instalação do conselho gestor do Parque do Cocó é o próximo passo da gerência da Unidade de Conservação, recém-criada em Fortaleza. Para o gerente do Parque, Paulo Lira, a participação de segmentos da sociedade contribuirá para fortalecimento do sentimento de “pertencimento e uso sustentável” da área verde.
A composição e o funcionamento do conselho ainda serão definidos. O certo, no entanto, é que não deverá seguir os passos do conselho gestor do Parque Natural das Dunas da Sabiaguaba - área que faz parte da bacia hidrográfica do rio e do vale do Cocó.
O conselho da Sabiaguaba é pouco efetivo no acompanhamento e vigilância às agressões ao Parque municipal que tem 11 anos de existência. A área sofre com invasões constantes (não há cercas) e nem sequer tem uma sede. Além do conselho, Paulo Lira aponta a necessidade urgente da elaboração do plano de manejo e retirada de espécies invasoras no bioma. A presença e reprodução de gatos, pontua o gestor, são uma ameaça à fauna do Parque.
Em uma ação de parceria, entre protetores dos gatos e instituições públicas, como Uece e Centro de Zoonose, foi elaborado um Plano de Convivência. De agosto de 2015 a abril de 2017 foram realizadas 63 adoções, 100 castrações e dois mutirões de vacinação/vermifugação. De acordo com Paulo Lira, até houve a “diminuição dos animais domésticos em situação de abandono”, mas não é a situação ideal. Principalmente no interior da Unidade de Conservação.
DEPOIMENTO
Sala de aula a céu aberto
A professora Galeara Matos, 64, enxerga uma grande sala de aula a céu aberto no manguezal do Cocó. Um espaço onde o visitante “aprendesse como amar uma floresta, como cuidar de um rio”.
Frequentadora de eventos como shows, aulas de Ioga e fins de tarde no Parque do Cocó, Galeara Matos diz que se “sente pertencida” ao lugar. Mas revela ter uma ponta de medo apesar da presença da Polícia Militar. “Queria, mesmo, poder passear mais por entre os caminhos. Queria ficar, ali, horas só ouvindo o que o Cocó tem para nos dizer, mas não me sinto segura”, confessa a professora.
OS PRÓXIMOS PASSOS
Após a demarcação, assinada pelo governador Camilo Santana no último dia 4 de junho, quais seriam as medidas necessárias ao Parque do Cocó? O POVO e especialistas (*) fizeram um levantamento das questões mais urgentes.
1. Elaborar o Plano de Uso Público para a Unidade de Conservação, antes do plano de manejo. Para sistematizar o acesso dos visitantes, bicicletas, animais domésticos, sinalizações, mobiliários específicos para o controle do lixo e mapas temáticos em escala de detalhes para as atividades de monitoramento (componentes da natureza e do número de visitantes).
2. No Plano de Uso Público, definir os procedimentos para a utilização das trilhas (diagnóstico para evidenciar os impactos) para interdição dos campos de futebol na área interna do Parque e transferência da atividade para o campo e quadra na área dos shows (Padre Antônio Tomás). Para recuperação do espaço degradado e início do monitoramento das trilhas e dos demais sistemas ambientais relacionados, das práticas de ecoturismo, ações de educação ambiental, atividades de lazer e pesquisa científica.
3. Plano de manejo. Inclusive pensando na ocorrência do guaiamum ou guaiamu (Cardisoma guanhumi), espécie de caranguejo (azul) que se encontra em estado de conservação de vulnerável à extinção, segundo Portaria 445/14, do Ministério do Meio Ambiente.
4. Planejamento para recuperação das áreas degradadas e mapeamento dos pontos de contaminação e contaminadores (esgotos domiciliares, industriais e comerciais).
5. Efetivação de um plano de intervenção (consorciada com os municípios) ao longo de toda bacia hidrográfica (recuperação da mata ciliar e saneamento).
6. Estudo para definir as funções ecológicas do Parque e como deverão ser incorporadas em atividades continuadas de monitoramento.
7. Pesquisa para definir quais os prejuízos à diversidade de paisagens e ao ecossistema manguezal do Cocó com a não inclusão das dunas da Cidade 2000 e demais dunas fixas (com bosques arbóreos). Uma área de aproximadamente 400 hectares.
8. Estudar e propor estratégias de integração das Unidades de Conservação existentes na cidade de Fortaleza e ao longo das bacias hidrográficas dos rios Cocó, Pacoti e Ceará.
9. Delimitar os territórios utilizados pelas comunidades tradicionais de pescadores e marisqueiras e potencializar a relação de sustentabilidade com os ecossistemas manguezal, das dunas, dos lagos e das planícies de maré.
10. Elaboração do inventário oficial de fauna e flora. Substituição programada das espécies invasoras e retirada dos gatos do interior do Parque.
11. Estudo para fechamento do Parque às segundas e terças-feiras para diminuir o impacto do uso na semana, sábado e domingo. Sem prejuízo para atividades que passam, na segunda e terça, a ser feitas no calçadão ao redor do Parque e área dos shows.
(*) O POVO fez levantamento em seu acervo do Banco de Dados e do jornalista Demitri Túlio, ouviu os pesquisadores Jeovah Meireles, geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará, autor dos planos de manejo da Área de Interesse Ecológico do Cocó e do Parque Natural da Sabiaguaba, e também o agrônomo Antônio Sérgio, integrante do Movimento Pró Árvore.
Falta gestão na Arie do Cocó
A Área de Relevante Interesse Ecológico das Dunas do Cocó (Arie) é fundamental para o equilíbrio ambiental do Parque do Cocó e, consequentemente, de Fortaleza. Apesar de ter ficado fora da demarcação das poligonais, as dunas fixas, a vegetação rasteira e as nascentes dali compõem uma Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) do Governo Federal.
Criada em 2009 pela então prefeita Luizianne Lins (PT), a Arie aguarda até hoje que a Prefeitura de Fortaleza defina seus usos numa zona que amortece, por exemplo, as cheias do rio Cocó e entrada do mar sobre o bairro do Cocó. Os 15,25 hectares, protegidos por legislação municipal e federal, estão mapeados a partir da esquina das avenidas Sebastião de Abreu com Padre Antônio Tomás e vão até perto da Cidade 2000.
Em entrevista ao O POVO, o prefeito Roberto Cláudio (PDT) afirmou que “os possíveis usos da zona de amortecimento serão definidos com a elaboração do plano de manejo” do Parque do Cocó. A questão é que, desde outubro de 2014, a Arie já possui um plano de manejo e independe do Estado. A gestão é municipal.
Elaborado pelo geógrafo Jeovah Meireles, da Universidade Federal do Ceará, o plano prevê a criação de um corredor ecológico que integre aquela Unidade de Conservação ao Parque do Cocó. Nem Luizianne Lins nem Roberto Cláudio cumpriram o que determina documento. A UC não tem sede nem gestor.
Apesar de possuir uma área degrada (próximo ao manguezal), a Arie ainda mantém uma cobertura florística robusta na parte das dunas. Segundo estudo do Movimento Pró Árvores existem, ali, pelo menos 125 espécies vegetais nativas.
No final da gestão Luizianne Lins, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da procuradoria do próprio Município autorizou a construção de prédios de um empreendimento imobiliário na Arie. Protestos de entidades ambientais e representações judiciais fizeram com que a Justiça desautorizasse a obra. O caso ainda é motivo de disputa.
Os artigos 15 e 16 da Lei Federal 9985/2000 determinam que as Aries são unidades de uso sustentável. Pode haver usos diretos e ocupação humana, desde que as atividades desenvolvidas sejam compatíveis com a conservação da natureza e sustentabilidade dos recursos naturais.
Prejuízo ambiental na Arie
Jeovah Meireles, geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará, afirma que a falta de um Conselho Gestor ou de um administrador na Área de Relevante Interesse Ecológico do Cocó (Arie), criada em 2009, só contribuiu para o acúmulo de prejuízos ambientais.
Caso existisse, o conselho ou a gerência já teria traçado estratégias para recuperação do ecossistema que está ligado ao Parque do Cocó. Jeovah Meireles aponta, por exemplo, o replantio das áreas degradadas e a retirada dos entulhos de restos de material de construção e lixo acumulados nas dunas e em outros locais.
Por se tratar de uma Unidade de Conservação (UC), a Arie do Cocó já deveria ter um portal de entrada, trilhas demarcadas e sinalizadas. O plano de manejo, elaborado em 2014 por Jeovah Meireles, prevê placas indicativas para acessos às atividades de educação ambiental, pesquisa e lazer. Também a sinalização informativa sobre a diversidade de paisagens e a biodiversidade. Além das proibitivas – para que se evite o uso de ambientes frágeis e de áreas em processo de recuperação.
A Arie deveria ter ainda um programa de ações administrativas para se integrar ao Parque do Cocó e às bacias hidrográficas dos rios Cocó, Pacoti e Ceará, compondo um mosaico de Unidades de Conservação.
Quanto custou a demarcação
A maior parte da terra incorporada às poligonais do Parque do Cocó é de marinha. Segundo Artur Bruno, secretário do Meio Ambiente do Ceará (Sema), os terrenos foram transferidos, principalmente, do patrimônio da União para compor os 1.571 hectares da nova Unidade de Conservação.
Para se chegar à demarcação atual, que vai do Anel Viário da BR-116 (Maracanaú) à foz do rio (Caça e Pesca), o governo do Estado pagou R$ 1.125,265 em estudos.
Recurso retirados da Câmara de Compensação Ambiental.
Pelo Diagnóstico Ambiental do baixo curso da bacia do rio Cocó foram desembolsados R$ 474.573,52. A Sema investiu mais R$ 375.000,00 para ter um relatório Sócio Ambiental das ocupações inseridas na poligonal.
Além disso, pela materialização do georreferenciamento do Parque, foram pagos R$ 275.692,00. E coube à Secretaria das Cidades fazer o levantamento topográfico para a delimitação do trecho da BR-116 à desembocadura do rio.
Os demais estudos, explica Artur Bruno, foram realizados pelo Grupo de Trabalho do Rio Cocó – coordenado por uma equipe técnica da Sema, sem ônus para o Estado.
Até aqui, segundo o secretário, ninguém foi indenizado por benfeitorias nos terrenos de marinha. De acordo com Artur Bruno, o número de “proprietários” dessas áreas públicas será definido pela “elaboração da malha fundiária com a respectiva avaliação financeira dos terrenos e imóveis inseridos na poligonal”.
Atualmente, o custeio de manutenção do Parque do Cocó é de R$ 124.297,80/ mensal. Recurso que deverá ser redefinido a partir da elaboração do plano de manejo, agora, de uma Unidade de Conservação de 1.571 hectares.
Ponte Estaiada Com a demarcação do Parque do Cocó, ficam proibidas intervenções urbanísticas na área da Unidade de Conservação que passou a ter 1.571 hectares. Segundo Artur Bruno, secretário de Meio Ambiente do Ceará (Sema), a Ponte Estaiada está fora dos planos do governador Camilo Santana (PT). Uma resolução, de janeiro deste ano, cancelou um contrato para construção do empreendimento. Mas não descartou. Parte do equipamento seria construído na área do Parque. Segundo o prefeito Roberto Cláudio (PDT), “a Ponte Estaiada está contemplada na Lei do Sistema Viário Básico de Fortaleza. Caso o governo do Estado confirme ao Município sobre a desistência da implantação da obra, numa revisão, a Prefeitura analisará e fará novos estudos para, se for o caso, fazer a substituição por outras alternativas de transposição do rio”.
DEPOIMENTO
Dois manguezais imprescindíveis Quem se deve uma visita ao Parque do Cocó é Francisco Alberto Lopes, 57, morador da Barra do Ceará e dono do restaurante Albertu´s. Ativista pela conservação do mangue do rio Ceará, o comerciante tem certeza que se “sentirá em casa” quando for conhecer a nova Unidade de Conservação. “Nunca fui ao Cocó, mas deve ser parecido com o manguezal daqui. Eu me daria bem”, diz. Francisco Alberto reclama, no entanto, que a Área de Preservação Ambiental do rio Ceará tem menos apelo de ações para investimento e sustentabilidade. “Não é que o Cocó tenha muitas, a demora na demarcação prova isso”, mas o mangue do rio Ceará “é mais invisível para o governo do Estado e para Prefeitura de Fortaleza”, diz o comerciante da Barra do Ceará.
10 desafios pós-demarcação, por Paulo Lira
Os principais desafios apontados por Paulo Lira, gerente do Parque Ecológico do Cocó, após a demarcação dos 1.571 hectares das poligonais da Unidade de Conservação (UC)
1. Promover o reassentamento das comunidades não tradicionais inseridas dentro da poligonal do Parque em áreas relativamente próximas.
2. Firmar e fortalecer a parceria, formalmente, com as comunidades tradicionais do parque, tornando-as co-gestoras e guardiãs do Parque.
3. Ampliar o serviço de limpeza e desobstrução do canal principal do rio Cocó a montante, haja vista que a proposta de proteção do Parque agora vai da foz vai até a Barragem Cocó.
4. Implementar o Pacto pelo Cocó, com vistas a recuperar a balneabilidade do recurso hídrico, desde as suas nascentes (APA da Serra de Aratanha) até a sua foz (Parque Estadual do Cocó), por meio da participação dos diversos órgãos e entidades do poder público e da sociedade civil.
5. Cercar do perímetro do Parque (com inserção de corredores de fauna), a fim de evitar atividades degradadoras, bem como rotas de fuga de assaltantes.
6. Elaborar, publicar e implementar o plano de manejo da UC.
7. Resolver a problemática das espécies alóctones, com foco principalmente nos gatos domésticos, para a proteção dos animais silvestres.
8. Implementar o Plano Estratégico de Concretização do Parque: manutenção e a ampliação dos equipamentos e estruturas de lazer. Condição para potencializar seu uso e contribuir com a proteção ambiental, por meio da apropriação do espaço.
9. Criar e fazer funcionar o Conselho Gestor do Parque.
10. Implementar o mosaico de Unidades de Conservação no entorno do rio Cocó – com a integração da proteção dos espaços territoriais especialmente protegidos municipais e estaduais (APA da Sabiaguaba, Parque Natural Municipal de Sabiaguaba, Parque Linear Adahil Barreto e Arie Municipal Dunas do Cocó juntamente ao Parque Estadual do Cocó).
Linha do tempo: demarcação do Parque do Cocó
1977. Após protestos e reivindicações de ambientalistas contra a construção da sede do BNB no Cocó, o prefeito Evandro Ayres de Moura torna de utilidade pública a área pretendida pelo banco.
1983. Decreto 5.754 dá a denominação de Parque Adahil Barreto às terras onde seria construída a sede do BNB, no Cocó. Uma área de 10 hectares.
1986. A prefeita Maria Luiza (PT) criou a Área de Proteção Ambiental (APA) do Vale do Rio Cocó.
1989. O Parque do Cocó é criado a partir do decreto nº 20.253, que ampliava para 1.046,22 hectares a área do parque Adahil Barreto. Durante o governo Tasso Jereissati.
1993. O decreto nº 22.587 estabelece o interesse social para fins de desapropriação da área do Parque do Cocó, que abrange manguezal ao longo do rio Cocó.
2006. Na gestão da prefeita Luizianne Lins (PT) são criados o Parque Natural Municipal das Dunas e a Área de Proteção Ambiental (APA) de Sabiaguaba. Territórios ligados à Área de Proteção Permanente do rio Cocó.
2008. Decreto do Governo do Estado cria um grupo de trabalho para elaborar o programa de revitalização do rio Cocó e promover a Unidade de Conservação do Parque do Cocó.
2009. Criação, na gestão Luizianne Lins, da Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) das Dunas do Cocó.
2016. Poligonal do parque é definida com 1.050 hectares. Camilo Santana (PT) marca assinatura do decreto de criação do parque para junho. "Não passa de 2016", afirma.
4/6/2017. Decreto do governador Camilo Santana cria o Parque Estadual do Cocó. A poligonal fica com aproximadamente 1.500 hectares e passa a ser Unidade de Conservação Integral.