Padroeira de Fortaleza

Um povo de fé

Por Bruna Damasceno

 

No dia 15 de agosto celebra-se a padroeira de Fortaleza, que no Ceará também foi escolhida como protetora de Viçosa. Dia de Nossa Senhora da Assunção para os católicos. Dia de Iemanjá para os umbandistas. Milagre da fé que une o povo em torno dessas figuras femininas. Para falar sobre sincretismo, religião, cultura e devoção O POVO Online revisita o passado e percorre a atualidade em conversa com historiadores, mães de Santos, um padre, teólogos e devotos.

A história da Padroeira de Fortaleza

 

A assunção do corpo da mãe do Salvador aos céus em 43 d.C se tornou dogma de fé em 1950 quando o Papa Pio Xll decretou a constituição apostólica Munificentissimus Deus, que diz “... Pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a imaculada edifica sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial".

Para a doutrina, a morte de Maria representou o repouso na vida terrestre, assumindo o corpo e a alma celeste. É o que explica o historiador e mestre em educação brasileira, Marden Cristian Ferreira Cruz: “Para alguns, quando Maria morre, o corpo permanece intacto e a alma ascende, entretanto, alguns passam a acreditar que provisoriamente o corpo está dormindo e, depois haverá uma assunção do corpo e da alma”.

A história da assunção entrelaça-se com a do Nordeste quando os portugueses retomam o processo de colonização e o Forte de Schoonenborch, intitulado assim pelos holandeses nas terras do Siará Grande, passa a se chamar Forte de Nossa Senhora da Assunção. Segundo o historiador Marden, esse é o ponto inicial para o crescimento de Fortaleza, que ganha dimensão geográfica ao redor do forte: “No século XII, é construído o forte sob o domínio dos portugueses, naquele momento o governador era Manoel Inácio de Sampaio. Quem vai fazer o projeto inicial é António José Da Silva Paulet, e dali em torno dessa fortaleza é que a nossa cidade cresce”.

Quando a fé caminha

Para os devotos da Mãe de Jesus, muito mais do que uma figura histórica, Maria é a pureza da divindade e do amor maternal. Há mais de uma década, quando foi criada a primeira caminhada com Maria, a procissão religiosa arrasta multidões. O padre Sales, da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, explica a origem da manifestação religiosa. “O Papa João Paulo estabeleceu o ano do rosário há 14 anos, e pediu que todas as dioceses do mundo dessem sua manifestação de fé. A arquidiocese fez esse momento resgatando as origens, escolhendo a data da padroeira de Fortaleza. Na primeira caminhada a imagem de Maria saiu do forte para a Barra do Ceará”, relembra.

A funcionária pública Adriana Farias conta que se tornou devota da santa em um momento de dor. “Comecei minha devoção há cinco anos, minha mãe estava doente, e eu pedia muito pela recuperação dela, foi quando me indicaram a caminhada com Maria”.

Adriana relata como a experiência mudou sua vida: “Eu alcancei a graça, minha mãe saiu da UTI, e depois disso não perco as procissões, vou a todas”. Quando questionada sobre o sentimento que a move nas procissões durante esses cinco anos, a resposta vem acompanhada de um profundo suspiro de gratidão. “Na verdade, o que sinto é uma experiência com a misericórdia de Deus e Maria, um amor, paz – a luz de Deus. Eu vejo muito a presença da Nossa Senhora ao caminhar, sinto Maria do meu lado, sinto essa presença nas pessoas também”.

A devoção por Maria envolve dedicação e simplicidade. “Eu me sinto... Não orgulhosa, não é orgulho, me sinto honrada - em poder fazer parte disso”. Descreve a devota Rita de 59 anos, que trabalha na paróquia Nossa Senhora da Assunção.

A fé insurgente

 

Iemanjá não é celebrada no mesmo dia que a Virgem Maria por acaso. O historiador Julio Cesar Araújo explica que “em uma época onde o catolicismo proibia outras religiões, uma das resistências para a continuidade da prática religiosa de matriz africana acabou sendo o sincretismo religioso”. “O culto aos santos católicos e suas imagens acabaram se tornando um meio seguro de praticar religiões africanas sem serem punidos por isso. Nesse caso, cada orixá correspondia a uma santidade católica”, acrescenta.

Assim, em todo o Brasil os umbandistas definiram que o Dia de Iemanjá seria celebrado em cada cidade no mesmo dia da festa da padroeira local. “Nos anos 1960, a intolerância era quase 100%. Quando meu pai fundou a União Espírita Cearense de Umbanda o preconceito era muito intenso”, afirma Tecla de Oxosse, filha de Manoel Rodrigues de Oliveira, que ao lado de Mãe Júlia iniciou um movimento de afirmação das religiões de matriz africana no Ceará.

Sobre a importância dessas figuras na luta pela liberdade religiosa no Ceará, o historiador Marden Cruz acrescenta: “Mãe Júlia lutou pela ocupação dos espaços públicos, pelas práticas religiosas da umbanda, como também na luta contra a perseguição aos praticantes da umbanda, que a polícia tinha contra os terreiros da umbanda”.

Um só Deus
“Pra que somar se a gente pode dividir?”, já dizia o poetinha Vinicius de Moraes para falar de sincretismo religioso. Umbandista há 60 anos, Mãe Zimar explica: “nós, umbandistas, cultuamos Iemanjá como a deusa das águas e mãe de todos os orixás, mas nem por isso deixamos de honrar e respeitar Nossa Senhora Da Assunção”. E Tecla do Oxosse acrescenta: “a umbanda é uma religião. Existe um único Deus, é nisso que nós acreditamos”.


Padre Sales expressa o mesmo respeito: “a manifestação de fé do povo é expressa de acordo com seu credo, se para os nossos irmãos ela representa a rainha do mar, a gente respeita”.

Culto é maternidade

 

Nossa Senhora da Assunção e Iemanjá são para os seus admiradores o simbolismo do acolhimento maternal. “De acordo com a tradição afro-brasileira, na umbanda, Iemanjá é doadora da vida e dona do ponto de força da natureza, o mar, representa um santuário aberto, onde tudo que é levado para o mar é levado para ser purificado e devolvido. Simboliza a maternidade e o amparo materno”, diz o historiador Marden.

 

Reforçando esse pensamento, a Mãe Regina de Iemanjá acrescenta: “Iemanjá para nós é a divindade mãe de todos os orixás, é a rainha da água, irradia a criação, estimula a criatividade, oportunidade de crescimento, geração e amor”.
Padre Sales também fala da referência à maternidade na santa católica. “Nossa Senhora da Assunção é a mãe de Jesus Cristo, a Igreja a reconhece, ela subiu ao céu, por ser santa, subiu pelos anjos, isso é uma dogma de fé.”

A fé através dos olhares teológicos

O teólogo Jean Souza dos Anjos, licenciado em Ciências da Religião, explica como surge a devoção. “Quando nascemos somos imediatamente inseridos na cultura e é através dessa cultura que temos contato com as coisas sagradas. Normalmente, em momentos de crise, o indivíduo se apega, se torna devoto daquilo que o salva”, diz.

 

A teóloga Aíla Pinheiro complementa o pensamento e acrescenta outro olhar: “A devoção é uma amizade espiritual. O devoto sente, primeiramente, uma admiração e respeito por alguém que viveu grandes dificuldades no passado e conseguiu manter-se fiel à Deus. O santo é como um herói da fé, ele é alguém que não titubeou diante das dificuldades da vida, mas permaneceu fiel, como é digno de fé o devoto lhe confia seus problemas e pede ajuda para poder resolver as dificuldades da vida.”.

Transpassando pelo âmbito sociocultural, os teólogos abordam os limites da fé. “A fé pode ser considerada saudável contanto que ela não se torne fundamentalista. O fundamentalismo religioso é uma das piores coisas que temos que combater no Brasil e no mundo. Muitas pessoas, inclusive da esfera política, usam da fé das pessoas para manipulá-las e obterem vantagens. E há a intolerância religiosa que continua massacrando as religiosidades de matrizes afro-brasileiras e indígenas”, diz Jean.

 

Ele explica ainda historicamente sobre os sacrifícios feitos em nome da fé. “As instituições religiosas têm olhado com muito cuidado para esses sacrifícios que são originários de tempos antigos. Hoje não é mais recomendado, por exemplo, caminhadas de grandes percursos ou outras formas de expressar a fé de modo que o indivíduo se machuque. Essas tradições já foram repensadas pelas instituições, mas nas religiosidades populares ainda são muito praticadas”, conclui.

Aíla Pinheiro afirma que sacrifícios que exigem esforços sobre-humanos são caracterizados como falta de esclarecimento e exemplifica. “Um devoto esclarecido sabe que não há barganha no âmbito espiritual, portanto, se ele faz alguma renúncia é para tentar ser alguém melhor, para tentar corresponder de alguma forma, à ajuda do santo. Nesse sentido, o que o devoto promete é uma reforma íntima, é algo que lhe torne uma pessoa de bem: se faz um jejum é para adquirir autocontrole e assim evitar ter reações intempestivas. Quem controla o estômago, controla os sentimentos. Outras promessas orientam para a caridade, para a ajuda humanitária, e assim o devoto mostra ao santo que além de estar pedindo ajuda, também está disposto a ajudar. Sacrifícios sobre-humanos são frutos de misticismo e de falta de esclarecimento sobre a fé”, diz.

Para a teóloga, a fé é sempre uma benéfica demonstração de confiança. “A fé é sempre saudável, pessoas doentes é que tornam uma suposta fé doentia. A fé é sempre saudável porque é uma escolha da pessoa, e escolher é fazer uso da liberdade. Mas pessoas doentes se tornam fanáticas e o fanatismo não é sinônimo de fé, é uma demonstração de que a pessoa necessita de ajuda psicoterápica”.

Para explicar teologicamente a fé, Dos Anjos parafraseia grandes nomes da literatura brasileira: “Aqui eu preciso citar Rubem Alves quando diz ‘Fé não é acreditar em seres do outro mundo, anjos, céu, inferno e nem mesmo Deus. Fé é uma atitude perante a vida, intraduzível em palavras’. E Adélia Prado quando diz ‘A borboleta pousada ou é Deus ou é nada’ Não há como traduzir ou explicar a fé, mas a fé pode ser sentida e refletida em atitudes de humanidade”.

Ainda na esfera literária, o cientista religioso conclui, “Trago Riobaldo, (personagem do livro “Grande Sertão Veredas”) do Guimarães Rosa, quando diz ‘muita religião, seu moço!’ e não perde ocasião de religião. Bebe de todas. No dia 15 de agosto em Fortaleza, umbandistas e católicos fazem a festa da Grande Mãe. Isso não é lindo? De um lado, temos Iemanjá em todas as praias e, do outro, temos Nossa Senhora da Assunção, a padroeira da cidade. As festas mostram a resistência das religiosidades populares brasileiras que se manifestam em procissões, rezas e entregas de dádivas. É comum que os fortalezenses participem das duas festas, ou seja, entrega flores no mar para Iemanjá e depois faz a caminhada para Nossa Senhora. A fé e o respeito às entidades dão o mote para o diálogo inter-religioso praticado na nossa cidade”.

 

 

Rituais

 

As devotas Adriana e Rita vão à procissão agradecer e adorar Nossa Senhora. A mãe Zimar vai preparar para o evento uma “comida bem temperada”, arroz branco com creme de leite e leite moça, e entregar no mar para Iemanjá. Para ela, “é um presente, é como se você fizesse aniversário e eu fosse lhe presentear”, diz.

Já a Mãe Regina de Iemanjá fará uma festa no seu terreiro, com rosas e decoração azul e branca. A Tecla de Oxosse vai ao cortejo na Beira Mar, como tem sido desde sua infância, uma comemoração rica de história, músicas e dança.

Todas com um só destino – a paz espiritual.

Serviço

Procissão de Nossa Senhora da Assunção
Quando: 15 de Agosto, às 14 horas
Onde: Santuário Nossa Senhora da Assunção, localizado na Av. Dom Aloísio Lorscheider, 960
*Haverá missas durante todo o dia, às 6h, 8h, 10h e 12h.

Cortejo para Iemanjá
Quando: a partir do dia 14, às 18 horas na Praia do Futuro, próximo a Barraca Zé da Praia, localizada na avenida Zé Diogo, 2551
No dia 15 de agosto às 8 horas, da sede da União Espírita Cearense de Umbanda, localizada na rua Castro e Silva, 920 – Centro até a Praia do Futuro

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