Bicicleta: como tornar o Centro mais amigável

O que é possível fazer para tornar o Centro mais acessível ao transporte de bicicleta e requalificar a região? A pergunta move o presente em direção ao futuro

Por Ana Mary C. Cavalcante

O Centro de Fortaleza guarda os passos da Cidade e de cada um. Phelipe “andava muito na Galeria do Rock”. Desde pequeno, ia com a mãe e sempre comprava as coisas “no miolo do Centro”. Já Fausto morou em muitos endereços do bairro, “na rua Floriano Peixoto, na Princesa Isabel, onde você imaginar”. Foi quando a maioria da população não tinha carro e ele “era pedestre, só pegava o ônibus se fosse para o Antônio Bezerra, a Parangaba”. Década de 1950, de vitrines iluminadas à noite, teatro e cinema em pleno vigor, tempo em que “a rua, a calçada e as praças resolviam os problemas de convívio e de deslocamento”.

''a rua, a calçada e as praças resolviam os problemas de convívio e de deslocamento''

Fausto NiloArquiteto e compositor

Phelipe Rabay se tornou engenheiro civil, integra o programa de Mestrado em Planejamento de Transportes da Universidade Federal do Ceará e é presidente da Ciclovida – associação de ciclistas urbanos de Fortaleza. Usa a bicicleta no dia a dia: “Tinha juntado dinheiro para comprar um carro. Desisti, comprei uma bicicleta em 2013”. Adapta-se ao trânsito, conhece melhor onde vive. “A bicicleta foi a segunda melhor compra da minha vida; a primeira, foi a máquina de lavar… Me deu outra relação com a Cidade”. No dia anterior à esta entrevista, ele estacionou a bicicleta no paraciclo da Praça do Ferreira, para assistir a um filme no Cineteatro São Luiz. Phelipe mantém uma relação de encontros com o Centro. “Visito meus amigos que têm loja lá. É um local que tem um potencial muito grande de convivência porque tem muita gente”, percebe.

Já Fausto Nilo cresceu arquiteto e compositor (de músicas e de cidades) e coordena o Plano de Urbanismo e Mobilidade do Fortaleza 2040 – plano de desenvolvimento para a Cidade (fortaleza2040.fortaleza.ce.gov.br). Traça caminhos que favoreçam o ir e vir, os encontros e, assim, o bem querer (também) pelo Velho Centro. Quer de volta o Centro “polifuncional”, de andanças e convívios.

Transformações
Também a bicicleta pode dar carona a esse processo ao possibilitar novos olhares e percepções do lugar e das relações humanas, compartilham ciclistas ouvidos pelo O POVO para esta reportagem. População e gestores vêm somando interesses e propostas para revitalizar a convivência e o Centro e torná-lo mais seguro ao transporte de bicicleta.

 

Rodrigo Carvalho/O POVO

 

Transformações estão sendo estudadas, informa Gustavo Pinheiro, engenheiro da Prefeitura de Fortaleza. Existem, por exemplo, indicativos de tornar o tráfego mais lento (até 30km/h) em algumas vias. Outras ciclovias ou ciclofaixas de acesso ao Centro devem ser implementadas entre abril e maio próximo. Mais três estações de bicicletas compartilhadas serão instaladas no entorno, ainda este mês. E as praças do Coração de Jesus e da Estação estão nos planos de 2016 do Programa de Bicicleta Integrada – que liga o uso das bicicletas aos terminais de ônibus. Gestores e população demonstram: a cada dia ou decisão, é possível outros caminhos e outros modos de caminhar.

Resumo da série
Durante três tardes, O POVO uniu o Centro histórico de Fortaleza à bicicleta. Foi por ruas e praças do coração da metrópole para lançar um desafio à Cidade: é preciso experimentar outros caminhos e outros modos de caminhar.

6 estações de bicicletas ompartilhadas existem no uadrilátero e no entorno do entro (endereços em ww.bicicletar.com.br)
40 iagens por estação é a média iária registrada no Centro; entre as estações mais utilizadas do sistema, stão: Praça Coração de Jesus, Praça o Ferreira e Praça da Bandeira.
Fonte: Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos.

Mais espaço e menos velocidade

Proibição dos estacionamentos em vias públicas mais reforma e ampliação das calçadas são ações rápidas e de baixo orçamento que podem melhorar a convivência do Centro (histórico) da Cidade com a bicicleta, indica o engenheiro civil e presidente da Ciclovida Phelipe Rabay. Some-se a isso, o aumento do número de paraciclos e bicicletários e uma maior fiscalização do trânsito.

Outra sugestão do ciclista é tornar o Centro histórico uma zona de tráfego com velocidade reduzida – até 30 hm/h. “Porque a convivência é muito mais saudável. E a bicicleta convive muito bem com o pedestre”, afirma. Nesse sentido, implantar faixas de pedestres elevadas e oferecer atividades em espaços públicos ao ar livre também contribuiriam para essa convivência.
E ainda seria preciso “frear um pouco o uso do carro. Usar mais racionalmente é muito importante”, reforça Phelipe, sugerindo restringir o tráfego de automóveis em determinadas ruas.

Gustavo Pinheiro, engenheiro da Prefeitura de Fortaleza, dialoga: o Centro, por sua natureza (de ruas mais estreitas, desde os primeiros traçados) desestimula o uso de veículos motorizados. Mas, pondera, o quadrilátero que compreende o Centro histórico “precisa ser estudado mais profundamente” para as mudanças necessárias ou desejadas.

Fortaleza, o Centro de bicicleta

Um passeio pelas ruas, lugares e gentes que formam o Centro da Cidade. Unir o Centro à bicicleta é uma maneira de ampliar a percepção do que já existe e do que se pode e se quer ter. E é também um desafio que O POVO propõe à Capital

Por Ana Mary C. Cavalcante

Um roteiro pelo Centro de uma cidade é como ter acesso ao coração de um lugar. Ambos, Centro e coração, têm lá suas ruas, praças, memórias, desafios. Voltar ao Centro de Fortaleza, pela milésima vez, ir por dentro dele, curiar o que ele deixa à mostra, perder-se em sua profusão de endereços e de gentes, conhecer a sua desordem é sempre descobri-lo mais um pouco. Assim O POVO foi; desta vez, de bicicleta.

Durante três tardes, o jornal pedalou pelo Velho Centro. Os limites são o do “quadrilátero principal” da região, considerado pela Secretaria Executiva Regional do Centro: as avenidas do Imperador, Duque de Caxias e Dom Manuel e rua Dr. João Moreira. Onze praças dão o norte e traçam o mapa desta reportagem.

O POVO foi sem pressa, como quem abraça. A bicicleta, na experiência de cada dia, é essa espécie de carinho com a cidade. Não polui e se demora. Olha de outro jeito e está predisposta à poesia (quem nunca levou um amor na garupa, ainda dá tempo) e ao encontro. É um meio de transporte barato e que favorece o cumprimento e uma atenção no sinal fechado, um “bom-dia”, “o pneu de trás está baixo”, “pode passar”, “cuidado com o ônibus, moça”.

A metrópole de mais de um milhão de veículos (dados do Departamento Nacional de Trânsito) abre espaços para o uso de bicicletas – próprias ou de todos. Políticas públicas ou decisões particulares começam a tomar um rumo que leve à melhoria da qualidade de vida – para a Cidade e para cada um. “Acredito que as pessoas estão usando mais a bicicleta e, como usuários, estão se adaptando”, percebe o professor Raul Bezerra Ponciano, 27 anos. Há três anos, ele optou pela bicicleta como meio de transporte. O que significou também “opção de vida, poder fazer minhas rotas”.
O Centro é um dos locais aonde Raul costuma ir de bicicleta. “Daqui, posso chegar em qualquer lugar em dez minutos”, diz. Na tarde desta entrevista, feita enquanto o professor cruzava a Praça dos Voluntários, ele usava, pela primeira vez, o sistema de bicicletas compartilhadas. “É muito legal como opção, sem ter a preocupação de que vão roubar sua bicicleta”, aprova.

Caminhos

Ciclovias, ciclofaixas, estações de compartilhamento e paraciclos (estacionamentos temporários) estão sendo implementados na Capital; e a expectativa é que a educação no trânsito também se realize. Fortaleza cresceu e aprende a andar de bicicleta. Ainda é preciso infraestrutura básica para o transporte cicloviário e segurança de uma maneira geral, mas a Cidade, por necessidade ou por escolha, demonstra ter disposição para pedalar até alcançar dias melhores.

“Eu pego a Zé Bastos e venho direto, direto, direto… Venho parar aqui, na Duque de Caxias. Entro numa rua e noutra, aí, chego na Prefeitura, na General Bezerril”, segue Moacir Lucas, 43 anos, que trabalha como serviços gerais na Secretaria das Finanças do Município. Gasta “de 15 a 20minutos”, saindo de casa com o sol acordando, para ir da Bela Vista ao trabalho. Há 15 anos “ou mais”, ele vai pra todo canto de bicicleta. Salva-se dos carros e dos ônibus que não respeitam ou diminuem a velocidade. A paciência abre os caminhos, relata. “Depois das quatro horas (da tarde), (o trânsito) complica. Vou pela Assunção e, aqui e acolá, tô subindo as calçadas. Às vezes, quando o sinal fecha, acelero mais um pouquinho. Assim, tô chegando”, despede-se, ao tempo em que se torna parte do entardecer do Centro.

Como o corpo recria o espaço

Foto: Rodrigo Carvalho/ O POVO
Rodrigo Carvalho/ O POVO

A percepção do Centro da Capital se amplia quando é visto da bicicleta. Inevitavelmente,está mais perto porque a bicicleta nos coloca corpo a corpo. Vemos seus detalhes, ouvimos suas vozes, sentimos seus cheiros, experimentamos seus sabores. E, dessa forma, também nos tornamos seu ir e vir, suas narrativas e canções, suas saudades e desejos.

Vencendo a sensação de insegurança e outros medos (enfrentá-los é preciso), podemos encostar a bicicleta em uma árvore ou em um banco de praça para saber um pouco mais da Cidade onde vivemos.

O POVO experimentou assim e soube, pela boca de seu Arturo, que houve um lugar “muito bom” no Centro. Tinha merenda, café e as notícias de Deus-e-o-mundo. De um banco da Praça do Ferreira, em frente ao Cineteatro São Luiz, onde o engenheiro agrônomo aposentado bate ponto “às segundas, quartas e sextas”, Arturo Bezerra Acioli Toscano, 78 anos, ainda avista: “O Abrigo Central (décadas de 40 a 60) era o ponto central de tudo, de todas as fofocas, tudo se sabia!”.

Seu Arturo é frequentador da praça desde “1950 e pouco”. Aluno do Liceu do Ceará, sentava-se ali para ver as meninas da Escola Normal. “Quando elas passavam, a gente assobiava pro vento!”, remoça à tardinha.

 

"Quando elas passavam, a gente assobiava pro vento!"

Arturo Bezerra Acioli Toscano, 78 anosEngenheiro agrônomo aposentado

 

Adiante, na banca de revistas da Praça dos Voluntários, Javan Viana, 50, também dança com o tempo. “Música é infinito”, define, ouvindo Raul Seixas, Caetano, Gal, Chico, o Rei do Baião “e o próprio Roberto Carlos, porque quem disser que não gosta do Roberto é um louco!”. Faz pouco, seu Javan colocou um toca-discos na banca e começou o negócio com LPs: “A pessoa, ao invés de botar no mato, traz pra cá”.

No Centro, nada se perde e nem tudo é só de passagem. Naquele canto da Cidade, há um mundo de invenções e uma cotidiana coleção de bens. Além dos prédios históricos por trás dos comércios, até um tamborete e um pedaço de sombra têm seu valor. Depois do expediente, uma rotina que já dura 15 anos desde quando começou a ajudar os irmãos que tomavam conta da banca, seu Javan aproveita para “brincar uma damazinha, valendo. Daí vem as amizades: no meio enxadrístico e damístico”.

V�deo

O Centro de Bicicleta (Ep. 1)

As ruas e pessoas (Ep. 2)

Dicas de segurança

Rodrigo Carvalho/ O POVO

O Centro tem um tráfego peculiar. A mistura e a multiplicidade de carros, ônibus, motos e caminhões, em alguns trechos, parece tornar as vias ainda mais estreitas. E, de repente, surge um pedestre no meio do caminho ou a porta de um veículo estacionado se abre. A partir de orientações da associação de ciclistas urbanos de Fortaleza, Ciclovida, e da experiência vivida nesta reportagem, O POVO sugere os seguintes cuidados para pedalar com mais segurança:

Ao se sentir muito hostilizado em uma via, caminhe com a bicicleta pela calçada até se sentir seguro novamente;

Fique atento se não há pedestres atravessando a rua entre os carros ou caminhando no meio das vias;

Ao parar nos sinais, você pode adiantar um pouco a bicicleta na faixa do pedestre, para sair à frente dos carros. Mas atente para não colocar em risco a vida de quem atravessa a rua, é possível compartilhar o espaço de forma amigável;

Evite usar fones de ouvido. O barulho do trânsito é um indicador de perigos e serve como alguma orientação;

Sempre estacione a bicicleta em um lugar movimentado, onde muita gente está vendo. Situações assim costumam inibir o roubo.

Nunca pedale na contramão. Seguir o sentido dos carros é uma das primeiras normas de segurança;

Use a faixa da direita, assim, as manobras necessárias aos veículos podem ser realizadas com margem de segurança;

Afaste-se do meio fio: é preciso se fazer visível, ocupando mais a faixa;

Usar protetor solar, chapéu e roupas leves e que possam proteger do sol é outro item importante;

Também o ciclista precisa se guiar por uma direção defensiva, contribuindo com a prevenção de acidentes;

Elabore um roteiro prévio: trace vias alternativas para fugir dos locais mais movimentados e hostis;

Não precisa ter pressa. A paciência nos faz chegar aonde queremos;

Vá sem medo. A confiança é fundamental para manter o equilíbrio.

Brincar de memórias

 

O aposentado Luís Carlos de Oliveira, 70 anos,
vai ao Parque da Liberdade (Cidade da Criança)
“desde nove, dez anos de idade até agora, que a senhora tá me vendo aqui”.
Aprecia as árvores e a história do lugar.
“Acredito que faz mais de cem anos que tem esse lago…
E, quando eu era mais novo, tinha música e eu vinha namorar no parque”, restaura.
Seu Luís diz que mora perto do Centro e, toda tarde,
“pega o ônibus de graça” para ler a Bíblia ou passear nas horas,
sentado em um daqueles bancos.
“Às vezes, o calor tá grande, mas eu aguento!
Como já passou a (ronda da) polícia, tô mais seguro.
Gosto daqui, passei minha infância aqui.
Quando tinha o zoológico, era melhor ainda, tinha até leão.
Levaram o zoológico para outro canto,
ficaram essas lembranças.
Eu não me esqueço daqui porque foi minha infância”, encanta-se outra vez.