Celebrar José de Alencar

Por Cinthia Medeiros

Longe de ser unanimidade, seja pelo estilo literário, pela forma como escolheu retratar o País, ou pelos posicionamentos políticos naquele Brasil imperial e escravocrata, José de Alencar é, certamente, um nome que não merece ficar relegado às leituras escolares obrigatórias ou a monumentos maltradados na cidade onde nasceu.

"Inventor" de uma chamada literatura nacional, romancista maior de um tempo, o escritor revela-se, a quem decide imergir em sua vida, figura multifacetada em inúmeros aspectos. Na vida pessoal, na produção artística, na atuação política.

Neste primeiro de maio, data que oficialmente celebra o aniversário de 190 anos do escritor, buscamos por fontes que nos trouxessem olhares diversos para esse Alencar, único e múltiplo ao mesmo tempo. Encontramos desde o pequeno "Cazuzinha", menino sedento pelas letras - e até pudemos imaginá-lo lendo, sentado à sombra de uma frondosa árvore naquele grande terreno da "Mecejana", onde hoje correm nossas crianças em dias de piquenique. Nos deparamos também com o jovem recluso, observador. E ainda com um homem cheio de talentos e ideias - embora de algumas discordemos -, de temperamento forte e saúde frágil.

Agradecemos aos pesquisadores e escritores que partilharam conosco essas visões, que agora dividimos com você, leitor. Celebrar José de Alencar, para nós, é valorizar nossa própria cultura, com toda a diversidade que ela merece e precisa ter. Boa leitura! 

Era uma vez um homem no seu tempo

Há exatos 190 anos, no sossego do Alagadiço Novo, nascia José de Alencar. Homem que, antes de se tornar escritor, viveu uma infância como leitor ávido e manteve, ao longo da vida, temperamento arredio e melancólico

Quando José de Alencar nasceu, na primeira metade do século XIX, "Mecejana" ainda não era um distrito de Fortaleza, mas sim uma vila composta de muitos sítios. Um deles, o Alagadiço Novo, foi adquirido pela família Alencar três anos antes do nascimento do escritor, e, parte do que foi o local, resiste hoje à sombra das mangueiras que guardam os quase dois séculos de história desde a sua edificação. Lá brotou a meninice de José de Alencar que, antes de se dedicar à "invenção" de uma literatura brasileira, ou mesmo de se envolver nas lutas políticas do Brasil Imperial, formou-se como leitor, como filho e como homem do seu tempo.

Antes de se formar como o romancista que se costuma conhecer nas páginas dos livros, José de Alencar foi "Cazuzinha" - apelido pelo qual era chamado na família. Filho do padre e senador do Império José Martiniano Pereira de Alencar, o escritor é o primeiro rebento de uma união ilegítima entre o padre e sua prima, Ana Josefina de Alencar. "Os momentos de leitura em família, em que o pequeno José ocupava o "lugar de honra" - segundo suas próprias palavras - de leitor da casa, ajudaram a estreitar os laços do escritor com o gênero romance, a forma literária de sua predileção", analisa Arlene Vasconcelos, professora do Instituto UFC Virtual, da Universidade Federal do Ceará.

 

Em 1837, na companhia dos pais, José de Alencar viajou do Ceará à Bahia, percurso que marcou-lhe profundamente a memória. "Anos depois, diz serem dessas memórias de onde saíram os primeiros desejos de reviver essas paisagens em alguma obra, desejos esses que ele chamou de 'Uma coisa vaga e indecisa', que devia parecer-se com o primeiro broto O Guarani ou de Iracema”, aponta Arlene.  

Bastante audacioso em sua veia literária, Alencar, que ainda na casa dos vinte anos desafiou o escritor Gonçalves de Magalhães e sua epopeia Confederação dos Tamoios,"foi mais discreto em sua vida pessoal", pontua Arlene Vasconcelos. Não há indícios de que ele fosse afeito à boemia, levando uma vida mais voltada para os estudos, a carreira e a família. "Alencar observava solitário as palestras à mesa do chá, as aventuras da vida acadêmica. Ele confessa que não sentia o menor jeito para essa realidade, devido a seu temperamento arredio e melancólico" complementa Vera Lucia Albuquerque, professora de Teoria Literária da UFC.

"Eis-me de repente lançado no turbilhão do mundo", definiria, anos mais tarde, o próprio escritor, nas páginas autobiográficas de “Como e por que sou romancista" (1893), a época em que se dedicou ao estudo do Direito em São Paulo e em Pernambuco. "Na vida acadêmica, ele era um homem tímido, contrastando com a exuberância retórica de seu pai, o senador. O Alencar polêmico, nacionalista, nasce com a sua obra literária: o romance, a crônica,e também com as peças teatrais", avalia Vera Lúcia.

Como estudante, conheceu muitos clássicos da literatura mundial e seus autores. Como exímio leitor, consolida uma base de referências que acompanhariam toda a sua trajetória literária - percurso sempre vivido em paralelo com a prática política e jurídica, as quais nunca abandonou.

"Na própria literatura de Alencar, seja a de ficção, seja a jornalística, está registrada a sua personalidade. Ali aparece muito nitidamente o seu temperamento, nas suas reações bruscas, nos seus sentimentos extremos, e mesmo nos comentários de pessoas próximas", considera Ana Miranda, autora de Semíramis (2014), romance histórico que refaz a trajetória de José de Alencar. "Nos livros estão a parte mais profunda de sua alma, e sua imaginação expressa perfeitamente a sua visão de mundo", diz a escritora.

Aos 35 anos, Alencar conheceu Georgiana Cochrane, filha de um próspero empresário do Rio de Janeiro, com quem esteve casado até a morte. Em 1873, ele redige Como e porque sou romancista, relato autobiográfico publicado somente duas décadas depois. Vítima de tuberculose, parte para a Europa em 1877, buscando a cura da doença que o acompanhou por pelo menos 30 anos. Faleceu em dezembro do mesmo ano. 

Expirou antes de passar do quinto capítulo da obra Ex-homem, publicado em forma de folhetim no jornal O Protesto, e que, para alguns pesquisadores, poderia ter-lhe garantido o lugar no Realismo brasileiro. Diria Machado de Assis, seis anos depois, que Alencar "escreveu as páginas que todos lemos, e que há de ler a geração futura". O futuro não se engana.

 

 

 

Uma família chamada Alencar

Das famílias brasileiras, a Alencar é uma das que deram origem ao maior número de personalidades marcantes para a historiografia nacional desde o início do século XVIII. Vida e Bravura é o primeiro estudo das raízes da família em Portugal e da genealogia que produziu heróis e políticos como Bárbara de Alencar, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, e o próprio escritor cearense, José de Alencar.

"Eu me perguntava: Será que a minha família Alencar é a mesma do escritor José de Alencar? Foi esse questionamento que me impulsionou a iniciar a pesquisa", lembra  Raidson Negreiros de Alencar, que é coautor do livro. "Durante o processo, descobri que o pai do escritor José de Alencar, o padre José Martiniano de Alencar, era nascido no Crato, mesmo local de nascimento do meu bisavô Raimundo Alves de Alencar. Com o desenvolvimento das pesquisas, chegamos à conclusão de que a família Alencar proveniente da região da chapada do Araripe no Ceará e Pernambuco, que é originária da região de Freixieiro de Soutelo, em Portugal, é sim uma única família no Brasil", pontua. 

 

O escritor José de Alencar faz parte da quarta geração de Alencares brasileiros, tanto pelo lado paterno quanto materno, uma vez que seus pais, José Martiniano de Alencar e Ana Josefina de Alencar, eram primos legítimos. Neto de Bárbara Pereira de Alencar pelo lado paterno e de Leonel Pereira de Alencar pelo lado materno, o autor de Iracema era trineto de Leonel de Alenquer Rego, esse o mais velho dos três irmãos Alenquer que vieram de Portugal e deram origem à família Alencar no Brasil.

A genealogia, enquanto ciência, vai além de simplesmente mapear as ligações biológicas entre gerações de indivíduos da mesma família. Ela também ocupa-se em descrever a origem, história e dispersão de pessoas ligadas não apenas pelo sobrenome, mas também por laços biológicos e afetivos. "Gostar de genealogia é curioso, é algo que vem de dentro. É um interesse que eu tinha desde muito novo, mas que nunca tinha dado os primeiros passos concretos na pesquisa. É uma ciência extremamente importante para a preservação da memória da família", finaliza Raidson.  

 

O escritor do Brasil

Como escritor, José de Alencar vai muito além do romancista conhecido pelo grande público. Pesquisadores da obra do autor defendem que a cada nova leitura, e a cada ano, seus livros e seu projeto estático ultrapassam as fronteiras romanescas

Cronista. Poeta. Jurista. Dramaturgo. Ensaísta. São muitas as faces de José de Alencar. Escritor cearense nascido em primeiro de maio, ele é responsável por uma produção classificada como "múltipla e plural" pelos especialistas ouvidos pelo O POVO. Há outras vozes para além de obras conhecidas do grande público - como Iracema, Ubirajara, Cinco Minutos e Diva. A linha criativa alencarina tem momentos mais intensos em determinados gêneros - conforme explica o professor e pesquisador Marcelo Peloggio. Se o começo da carreira foi especialmente dedicado à crônica e ao teatro, o fim foi voltado para a produção de romances. No meio desse caminho ainda houve a criação para jornais, as poesias, os ensaios.

"Produzindo incansavelmente até pouco antes da sua morte, Alencar deixou uma obra multifacetada, composta por gêneros diversos, como a crônica e o romance, o teatro e textos de intervenção política, e, ao mesmo tempo, dotada de grande unidade e coerência, perceptível tanto no tocante aos recursos estilísticos empregados, quanto no seu alinhamento com o projeto romântico de construção da literatura brasileira e na perspectiva conservadora a partir da qual observa a sociedade e a história", elucida Eduardo Vieira Martins, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). José de Alencar pode até ter entrado para o cânone como romancista - explica Wilton Marques, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - mas ele foi muito mais que isso. "É um escritor muito amplo e foi responsável pela consolidação da literatura brasileira", pontua Wilton, que, entre suas pesquisas, tem um livro com crônicas escritas entre 1854 e 1855 apontadas como possíveis causadoras de problemas para o autor - e, por isso, excluídas de publicações anteriores (Leia trecho de um dos textos na página 12).

Alencar - na opinião de Peloggio - foi o primeiro intelectual interessado em pensar o Brasil enquanto território repleto de gentes, saberes, e existências. "Todos esses alencares, apesar de terem atuações muito específicas, em função das atividades e das particularidades dessas atividades, não deixam de se falar entre si. Sempre estão, vamos dizer, trabalhando em torno de uma ideia de Brasil", acrescenta o professor, que atua no Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). E esse "projeto de Brasil", diferente do que costumamos aprender na escola, não fica restrito apenas ao espaço literário ou artístico.

A obra multifacetada de Alencar - argumenta Marcus Vinicius Soares, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - pode ser sentida na maneira como o autor muda as entonações, as realidades e as formas de ser do narrador. Diferente das obras machadianas - que costumam seguir uma mesma linha de voz - os livros alencarinos se diferenciam em seus tons. "Alguém que sabe escrever, construir personagens, construir tramas, ser dramático quando necessário, ser satírico quando necessário, ser trágico quando necessário. Ele tem domínio da escrita e uma pluralidade na escrita literária. Ele assume dicções diferentes a partir do romance. É uma faceta de se ajustar tecnicamente ao tipo de narrativa que está utilizando", argumenta Marcus, que tem se dedicado a pesquisa sobre o escritor nas últimas décadas.

O José de Alencar que ficou conhecido do grande público, entretanto, é aquele marcado por produções como O Guarani e  Iracema - lidas exaustivamente nas escolas por alunos nem sempre dispostos e professores nem sempre entusiasmados com a produção. Marcus Vinicius explica que a imagem de Alencar como predominantemente romancista ficou mais intensificada a partir de 1929 - ano de celebração do seu centenário. À época, contrariando as expectativas, periódicos do País inteiro deram destaque à efeméride - elegendo o escritor como um "símbolo da nacionalidade". A este fato somam-se as leituras feitas no ensino fundamental e médio, as pesquisas acadêmicas e as centenas de edições baratas feitas dos livros.  

Mas é fato que Alencar, enquanto escritor, não é aplaudido sem ressalvas agora e também não foi em seu tempo. "No período em que ele escreveu, em que era vivo, a recepção dele nem sempre foi unânime. Ele sempre teve que brigar muito pela posição dele como escritor dentro do meio", explica Marcus. As últimas décadas, entretanto, têm sido mais generosas com o autor de Lucíola e Ubirajara. Ao lado de pesquisas sobre famosos romances, atualmente, há acadêmicos dispostos a descortinar outras vertentes das produções alencarinas: a dramaturgia, a filosofia, o poesia, a crônica. "Temos visto trabalhos muito interessantes sobre essas facetas menos discutidas da sua obra, assim como o seu pensamento político ou sua contribuição para a área do Direito", argumenta Eduardo Vieira Martins.

 

A força do realismo no teatro de José de Alencar

Faceta pouco conhecida de José de Alencar, o teatro acompanhou o escritor ao longo da vida. Logo nos primeiros anos de dedicação à escrita, ele foi responsável por conceber peças que, a seu modo, chegaram a fazer certo sucesso. O Demônio Familia, As Asas de Um Anjo, Mãe, O Crédito e O Jesuítasão apenas alguns exemplos da dramaturgia alencarina que, com o passar do tempo, começa a ser mais estudada nas universidades. "Uma das principais marcas, assim como para o próprio romance, foi tentar abrasileirar mais as peças que eram desenvolvidas no País. Contudo, ao contrário do romantismo dos romances, ele acabou por dar força ao realismo nas peças teatrais daquela época", explica Nathan Matos, editor de livros que estudou a dramaturgia do autor durante mestrado em Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC).

 

Assim, diz Nathan, ao invés de suas criações gigantescas como vemos em O Guarani e Iracema, o teatro alencarino tem descrições dos "costumes da sociedade, como o trabalho, a família e o casamento, por perceber nesses assuntos valores éticos importantes a serem postos em discussão". A linha traçada por Alencar, entretanto, tinha como preceito não deixar o público desgostoso. "Ele cria que as peças realistas eram um retrato da sociedade burguesa de sua época e que deveria estar representada pautada em princípios moralizantes, mas não de maneira explícita", explica o editor, que, recentemente, colocou no mercado o livro Como e Porque Sou Romancista - autobiografia literária escrita por José de Alencar em 1873.

 

Ilustre desconhecido: a produção de José de Alencar para além do romance

Por Marcelo Peloggio

 

O lugar ocupado por José de Alencar - o de primeiro grande romancista de nossa literatura -, por intermédio de obras como O Guarani e Iracema, não lhe assegurou, como era de se esperar, o posto de evidência que lhe é devido por direito; pelo contrário, apesar da posteridade, Alencar pode ser considerado, ainda hoje, como um dos nossos mais ilustres desconhecidos.

Essa contradição se explica em razão de alguns fatores, que parecem derivar de uma mesma e única fonte: a vasta produção intelectual do autor cearense. Vasta e muitíssimo variada, diga-se de passagem, denunciando aí inúmeros perfis: não apenas o do romancista, mas o do cronista, do dramaturgo, do jurisconsulto, do político, do etnólogo, do filósofo, entre outros.

Mesmo diante de tal quadro, foi à personalidade literária de José de Alencar que se dispensou mais atenção, sombreando assim os demais gêneros, mas mostrando com esses uma preocupação comum e central: a de pensar o Brasil. De fato, os meios por que Alencar se expressou (o jornal, o palco, a tribuna, o livro) e suas formas (crônica, teatro, discurso, romance, ensaio) sempre tiveram por timbre um interesse amplo pelo Brasil. Daí que podemos dizer aqui, sem qualquer exagero: José de Alencar foi o primeiro a fazer de seu país o objeto de um pensamento profundamente descritivo, crítico e reflexivo, no tempo e no espaço. Isso faz do autor de O Guarani uma das referências fundamentais quando se tem por assunto a vida nacional.

E como a literatura desempenharia a função central, isto é, a de ligar o Brasil por inteiro - geográfica, histórica e culturalmente -, tal qual revelado no prefácio do romance alencarino Sonhos d'Ouro, parece ter sido encarada como uma peça autônoma, sem qualquer relação com as outras produções que o engenho de José de Alencar trouxe a lume. Eis uma hipótese plausível. Todavia, o fato de o literato Alencar sobressair ao cronista, ao dramaturgo, ao político, etc., se deve muito mais ao desinteresse dos estudiosos pelas realizações que não fossem as do romancista, o que constitui, por si só, um grande equívoco.

As últimas pesquisas realizadas a partir de manuscritos autógrafos e inéditos vêm mostrar justamente o contrário: a necessidade de fazer falar os alencares silenciados e dispersos, agrupando em torno de um nome os autores que ensinaram a pensar o Brasil.

 

Marcelo Peloggio é professor da UFC e doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

 

Tudo passa sobre a terra?

Por Suene Honorato

 

No último capítulo de Iracema, Martim retorna com Moacir, o "filho da dor", para fundar a "mairi" dos cristãos; assim, "a palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá". Poti é batizado e se torna aliado do português no combate ao "feroz tupinambá" e ao "branco tapuia". Iracema, que havia morrido de tristeza, já não é lembrada pela amiga jandaia que antes cantava seu nome. O narrador conclui: "Tudo passa sobre a terra". Essa frase não se refere apenas a Iracema; ela sepulta no passado brasileiro um modo de vida. A "verdadeira" religião se impõe, o bronze substitui o maracá, Poti se afasta de sua cultura. Iracema é figura da passagem do estado de "barbárie" à "civilização".

 

Embora o final de Iracema seja apenas um momento na obra de Alencar, ele é emblemático de um discurso a respeito dos povos indígenas que se tornou dominante. No século XIX já se dizia que "não havia índios no Brasil", no que, aliás, o Ceará foi pioneiro, ao extinguir em 1860 todas as aldeias indígenas para reaver os territórios garantidos a essas populações, com base na Lei de Terras de 1850. Mas havia outros discursos: Lourenço Amazonas e Couto de Magalhães, por exemplo, estavam em contato com indígenas e escreviam sobre sua presença na sociedade. Terá sido por suposta falta de "qualidade literária" que esses autores foram esquecidos? Provavelmente não.

 

Na obra de Alencar, Iracema e Peri são objetos, não sujeitos da história, e destinam-se à composição da identidade brasileira (da qual o negro foi excluído). No século XX, a ideia de "assimilação" ainda se fazia presente entre indigenistas e antropólogos. Esse quadro começa a ser alterado com a emergência do movimento indígena nas últimas décadas. A presença dos indígenas na política, nas universidades, na literatura, no cinema, nas artes plásticas tem nos ensinado que o Brasil é um país plurilíngue e poderia ser plurinacional, que este território tem mais de 12 mil anos de história, que há 500 anos essa é uma história de luta contra o genocídio sistemático que ainda está em curso.

 

No Ceará, 14 povos indígenas hoje lutam pela garantia de seus modos de vida, direito conquistado na Constituição de 1988. Filmes como Espelho Nativo e 

Suaçuamussará contam um pouco dessa história. Em entrevista destinada a uma investigação em curso, realizada pela antropóloga portuguesa Paula Godinho em 31 de março deste ano, Cacique Pequena disse: "vivo nesse mundo novo da modernidade, mas não deixo de ser índia e nunca vou deixar de ser".

 

Suene Honorato é professora do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

Caminhos refeitos

Artesã das palavras, Ana Miranda se debruçou em um delicado e minucioso tecido ficcional para descobrir na história, na sociologia, na antropologia, e na poesia, sobretudo, as miudezas do passado literário e biográfico de José de Alencar, cearense considerado fundador do romance de temática nacional. É o que faz no seu livro Semíramis, texto no qual retrata um dos nomes de maior expressão do romantismo brasileiro, o típico "homem de letras" do século XIX.

Semíramis refaz o caminho de Alencar com base em seus antepassados no interior cearense a partir de imagens e cenas extraídas dos próprios textos do autor, algo que a escritora planejava retratar havia muito tempo. "O processo de pesquisa histórica foi especialmente interessante para mim, pois pude aprender sobre a minha terra natal. A pesquisa começou com antecedência, pois eu tinha precocemente a ideia de escrever um romance sobre José de Alencar", revela Ana.

A escritora visitou o Alagadiço Novo, o Crato, o Icó e fez o percurso da viagem realizada no livro pela narradora, Iriana, e seu avô. Para escrever Semíramis, tornou-se íntima da obra e do tempo de Alencar. "As impressões de Iriana e as de sua irmã Semíramis expressam as minhas impressões sobre Alencar, mas também incorporam outras impressões percebidas por mim no seu meio social. No entanto, quando incorporo essas impressões alheias, elas passam a ser minhas também. Sobretudo os comentários de Iriana e de Semíramis, que o amam, como eu o amo", completa.

O livro é estruturado em pequenos capítulos, escritos em primeira pessoa por Iriana, irmã de Semíramis, que dá nome ao romance. Iriana acompanha o pai em uma viagem ao Alagadiço Novo, terra dos Alencar. Lá, se encontra com a mãe do futuro escritor, que vive maritalmente com o padre José Martiniano, nos últimos dias de gravidez. A narradora acompanha o nascimento do menino, que logo ganha o apelido de Cazuzinha, e logo sente que, de alguma forma, ele fará sempre parte de seu destino.

Para falar da vida de Alencar, a autora recupera os traços psicológicos do escritor, reconstruindo sua literatura e os aspectos de sua vida muitas vezes usando de sua própria intuição. "Vejo-o, e assim ele é retratado no romance, como um menino prodigioso, mimado, altivo, inteligente, que se tornou um adulto extremamente complexo, corajoso, franco, combativo, às vezes agressivo quando se trata de política, trabalhador, muito produtivo, consciente de seu papel, de questões literárias, e da formação de nossa nacionalidade, amoroso, apaixonado, muito sensível e telúrico", define. 

 

V�deo

O Desconhecido José de Alencar

Ao correr da pena

Publicado entre 1854 e 1855 no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, o folhetim Ao Correr da Pena ganhou edição em livro apenas em 2017, pelas mãos do pesquisador Wilton Marques. Abaixo, reproduzimos texto inédito da obra, que representa capítulo significativo da produção alencarina

Os últimos dias da semana passada vieram-nos fazer recordar aqueles belos tempos de outrora, em que se contava com a trovoada por volta da tarde, assim como se conta com o sol ao meio-dia e com as chuvas ao anoitecer.

Naquela época o relógio era um traste bem dispensável; ajustava-se o passeio, a entrevista, o encanto para depois da trovoada, e quando acabavam de escorrer de todo as últimas enxurradas da chuva, abriam-se as gelosias verdes das casinhas térreas, e aparecia um ou outro rostinho gracioso que vinha espiar, com o sorriso nos lábios e o rubor nas faces, a passagem habitual de certo estudante que todos os domingos se encontrava na missa.

É verdade que as velhas viam-se obrigadas a rezar mais dois ou três rosários de Padre Nosso por dia; e que os pais de família tinham no seu budget uma verba especialmente consagrada às velas de cera.

Mas em compensação, depois de duas ou três horas, uma viração bonançosa varria o temporal, e dentre as nuvens pardacentas, e dentre o manto rasgado da tempestade começava a desdobrar-se uma tarde fresca e anilada, ainda toda rociada das gotas da chuva, como uma sultana ao sair de seu banho perfumado.

Dava-se algum passeio agradável, respirava-se um ar tênue e puro, e à noite em volta da mesa de jacarandá de pés torneados fazia-se o serão costumado. Os velhos jogavam a bisca ou o trunfo; a dona da casa inspecionava a ceia, e a filha bordava crivo n’algum lencinho, bordando ao mesmo tempo na imaginação os sonhos prazenteiros de uma afeição pura e serena.

Naquele belo tempo, em que não havia progresso, nem ópera, e bailes esplêndidos, ainda não se tinham feito certas descobertas que depois transformaram completamente a ordem das coisas, trazia-se o dinheiro no bolso da calça ou do colete, e os alfaiates não se haviam lembrado de inventar as algibeiras no peito das casacas, como se usa hoje para que o coração esteja sempre em contato com a carteira. E como estas, muitas outras invenções, que dão matéria larga às reflexões bem filosóficas.

A botica nessa época era apenas o lugar onde se jogava gamão, onde se ia saber novidades, e comprar macela e flor de sabugueiro para as moléstias do tempo, que não passavam de algum defluxo ou indigestão. Não se conhecia nem febre amarela, nem febre escarlatina, nem febre azul, enfim todo este prisma completo de febres, como me parece havemos de ter brevemente, se as coisas continuarem pelo mesmo jeito em que vão.

Agora é inteiramente o contrário. Além das tísicas e erisipelas, e do enorme catálogo de enfermidades que temos para o nosso uso, todos os anos no tempo de verão recebemos a visita de algum vagabundo lá da Europa, que se nos mete em casa, vive uma porção de meses à nossa custa, e por fim toma gosto à terra e naturaliza-se cidadão brasileiro, para o que começa assinando termo na Câmara Municipal, segundo exige a lei.

É verdade que a culpa é nossa, e que o mal provém da nossa incúria e do nosso desleixo proverbial. Se não lhe preparássemos boa pousada e boa cama, estou certo que dificilmente aquela espécie de parasita nos viria incomodar. Mas nós somos um povo eminentemente hospitaleiro: temos ruas e praias imundas, temos charcos de águas estagnadas, valas abertas, e conservamos cuidadosamente todas estas preciosidades para receber com as considerações devidas qualquer epidemia que nos queira honrar.

Fala-se já por aí que vamos receber brevemente a amável visita do Judeu Errante, que segundo dizem parece que não vem desta vez em forma de romance, mas sim com ares de tragédia. Não sei donde parte a notícia, mas tenho minhas razões de supor que são simples boatos de uma veracidade muito duvidosa.

Lembro-me que Eugenio Sue quando escreveu a biografia daquele senhor e de sua irmã, disse-nos que ele não podia sair do continente do velho mundo, tanto que quando sentia-se com saudades da Sra. Herodia ia para o estreito de Berhing para vê-la à luz das auroras boreais, visto que naquela época ainda não havia gás.

Ora, não creio que aqueles, que anunciam a sua vinda à América, saibam mais a seu respeito do que o escritor francês, que com ele comeu e viveu muito tempo.

Lembro-me também que de vezes quando há falta de matéria, os jornalistas, gente aliás muito capaz, inventam certas coisas, como a vinda de Alexandre Dumas à América, afim de ter sobre que falar e discorrer. Isto não quer dizer que cometam o pecado da mentira, porque um jornalista ortodoxo tem à sua disposição certas frases sacramentais à guisa de consta-me e é de supor, que fazem o efeito de um exorcismo ou de uma pia de água benta.

Enfim não creio que na Inglaterra, um país tão bem policiado e tão filantrópico, que tantas provas têm dado de afeição ao Brasil, se conceda passaporte a um indivíduo de tão má reputação, como é o Judeu Errante, um vagabundo que há muito tempo devia estar em Batany-Bay ou em Pedras de Angoche.

Desconfia-se porém que o tal sujeito viaja incógnito, e por isso antes de ontem quando chegou o paquete de Southhampton, imediatamente mandou-se ficar de quarentena, até conhecer-se se entre os passageiros viria algum homem mursuflo e de botas ferradas em forma de cruz, sinais característicos dados pela polícia de Paris.

Sei que muita gente queixou-se desta providência, e que muitos médicos riram-se dela. São empíricos, que andam a par do progresso da ciência, e que ainda acreditam que o cólera se propaga pela transmissão do ar.

As últimas descobertas, começadas por Eugenio Sue, alta capacidade médica que deu provas exuberantes do seu talento escrevendo romances marítimos, demonstraram a evidência que o cólera não se transmite nem pelo ar, nem pelo contágio.

A moléstia é uma espécie de quebranto. O Judeu Errante é um homem de sobrancelhas unidas, com um olho de crocodilo, que basta olhar qualquer sujeito para fazê-lo sentir imediatamente tremores e dores de barriga. Em algumas pessoas, esses efeitos são também sintomas do medo; e por isso não estou longe de crer que em muitos casos os remédios da botica são que fazem a moléstia.

Seja como for, o caso é que não se pode negar que à vista da importante descoberta feita pela ciência, a única medida preventiva é a quarentena como se pratica novamente. Chega um navio: desembarcam-se as cargas, as malas, os jornais, enfim tudo quanto não é homem, tudo quanto não teria barriga nem pernas, e que por conseguinte não pode ter recebido o quebranto. Quando muito, por excesso de precaução, defuma-se aquilo tudo como um quarto de noiva ou mete-se em conserva de vinagre e não há miasma que resiste.

Tende-se pela chegada a um resultado desta ordem, não se pode mais recear a invasão da moléstia, principalmente com a descoberta de um remédio eficaz no óleo de rícino (castor-oil).

Este último achado sobretudo é interessantíssimo para a indústria nacional. Uma fábrica brasileira de óleos vegetais, que existe em Botafogo e quem tem sempre lutado com dificuldades pela concorrência de produtos estrangeiros, poderá agora tomar a sua desforra e vender óleo de rícino às pipas.

Depois do jantar em vez do café tomar-se-á, em canecozinhos de porcelana da Índia, uma dose de óleo de rícino. O Francioni fará sorvetes abaunilhados preferíveis aos de creme; e o hábil cozinheiro do hotel d’Europa deve já ir cuidando em preparar-nos algumas gelatinas para os grandes jantares.

Entretanto é bom que o governo tome sérias providências a respeito da iluminação de certas cidades do norte, que ainda se servem do azeite da mamona. Pode suceder que muitas noites a população usurpe os privilégios das torcidas e chupe todo o azeite dos lampiões deixando a cidade às escuras.

Outra providência muito necessária a tomar-se seria a abastança dos mantimentos, porque é fácil de prever que começando a moda do óleo de rícino deve manifestar-se imediatamente um apetite devorador, e então nem os açougues monstros serão suficientes para manter a cidade. Fora portanto conveniente cuidar em ir construindo pequenas cidades de açougues, e edificando ruas do Rosário monstros.

Descansemos, que o governo tomará todas estas medidas, e que o seu zelo pela salubridade pública destruirá todas essas apreensões que sem pensar se vão incutindo no ânimo público. Descansemos, porque esses receios infundados vão produzir-nos um grande benefício, trazendo à nossa bela cidade o asseio, a limpeza, e as condições higiênicas de que tanto necessita.

O que nos cumpre, não é enchermo-nos de um terror pânico, e exagerar o perigo: e sim auxiliarmos o governo na obra que vai começar, exigir toda a solicitude em remover as causas de infecção que existem por aí a cada canto da cidade. Pensais que é somente o receio de uma moléstia especial que nos deve excitar a isto? Não: é a saúde pública em geral, que sofre todos os anos, e a multidão de homens que durante a quadra do verão são vítimas de uma epidemia qualquer, ou de uma moléstia diferente, mas que provem das mesmas causas. Que importa o nome das enfermidades? Que importa se o soldado que morreu na guerra foi ferido por um obus, ou por uma bala de fuzil?

Deixemos pois as ideias tristes, as palavras agoureiras. O verão aí se anuncia carrancudo, é verdade; mas não há nada neste mundo que não tenha uma compensação, tanto mais doce, quanto o mal é mais cruel.

Se a estação é incômoda, se os dias são de calma, vem com eles o tempo dos passeios campestres, das sestas passadas à sombra das árvores, da convivência familiar do campo, e daquelas alegres noitadas ao relento, tão plácidas e tão isentas de cuidados e preocupações.

De manhã, a natureza se arreia com suas galas mais delicadas para desenhar-nos um desses belos quadros do nascer do sol, tão tristes na cidade, mas tão agradáveis no campo entre as árvores e as montanhas.

A moda também sofre uma metamorfose completa. Desaparecem os pesados toilettes sem graça e sem elegância, que fizeram dizer a um fidalgo francês que a mulher é uma criatura humana, qui s´habille, qui babille, et qui se deshabillé. Aí vem o tempo dos graciosos vestidinhos brancos, das gases ligeiras, dos toilettes singelos, que tem apenas uma fita por ornato, e uma simples flor por toucado.

A quadra dos grandes bailes e dos esplendidos soirées, que este ano foi de um brilhantismo extraordinário, despediu-se quarta-feira com a reunião da Fileuterpe, que correspondeu ao que se esperava. Tudo quanto há de elegante e de fashionable na sociedade desta corte se reuniu naquele dia no melhor salão de baile que temos presentemente, a fim de concorrer para o benefício da orfandade desvalida.

A munificência generosa dos ricos, a presença de belas senhoras, a parca e modesta oferenda daqueles a que a fortuna não habilita a seguir os impulsos do coração, nada faltou; nem mesmo a inspiração de um poeta traduzida em versos de uma simplicidade e de uma singeleza encantadora.

Apareceram toilettes de muito gosto, e realçava sobre todos um vestido branco com franjas de penas escarlates. As agulhas trabalharam, as modistas fizeram um esforço supremo, talvez que pressentindo já a revolução que se preparava, e que ameaça apeá-las do seu trono da rua do Ouvidor.

Mme. Gustin, Mmes. Barat e Dazon. Dagnan e Blachon, reis e rainhas da agulha, chorai sobre as glórias passadas! O vosso reino acabou! Os Estados Unidos, invejando o vosso poder, mandaram-nos uma porção de máquinas de coser, que começarão a trabalhar num estabelecimento que se vai fundar na rua Nova do Conde. 

Sedas, veludos, panos, cambraias, toda a casta de estofo, passa rapidamente das mãos de Mme. Besse entre as agulhas curvas de uma máquina, e num momento aparece preciosamente cosida com o ponto que se deseja, e pela forma que mais agrada. De maneira que agora sai um homem pela manhã, compra pano na loja, passa pela fábrica, e de tarde recolhe-se com o seu enxoval pronto para ir ao baile. 

Viva o progresso! Não há nada como as máquinas. Dizem que Pascal inventou uma de somar. Não estamos muito longe de ver por aí surgir qualquer dia alguma máquina de comer, de ler, de escrever, e até de fazer folhetim, do que não gostarei nada.

Os Americanos sobretudo, gente que anda sempre ruminando um invento qualquer, são muito capazes de apresentar quando menos o esperarem alguma máquina-homem, que sirva para todos os misteres a que se presta o bípede implume. 

Teremos então máquina-negociante, máquina-advogado, máquina-médico, e uma variedade de máquinas políticas e sociais para o uso dos governos.

Ora, isto não será muito de admirar, visto que alguns países já descobriram uma espécie muito importante daquele melhoramento: a máquina-deputado. Todos sabem a organização de semelhante maquinismo. A máquina-deputado é movida pelo interesse, agente de maior força que o vapor, e o mais poderoso que se conhece hoje. O maquinista chama-se ministro, e quando a máquina se enferruja um pouco, aplica-lhe, em vez de azeite, pão-de-ló.

Esta máquina serve para votar, levantando-se e sentando-se para dar apartes, fazer cauda aos ministros nas ocasiões necessárias, preencher o número de deputados que as constituições exigem, e finalmente para resistir aos deputados-homens, gente de consciência, que tem a balda de só apoiar os governos ilustrados. Bem se vê, que para semelhante fim era escusado nesses países empregar-se um homem livre e inteligente, e que basta uma máquina, a qual não possa opor tropeços à marcha da administração.

Ia deixar a pena, mas não o devo sem dar-vos a notícia do incômodo de S. A. a Sra. P. Isabel, o qual felizmente é passageiro e não pode causar o menor receio.

 

AL.

 

 

 

O político das tradições

Paixão tardia, José de Alencar ingressou na política apenas em 1860. A trajetória do conservador foi marcada por uma vasta produção que revela a historiografia do País

Na obra autobiográfica Como e por que sou romancista (1893), José Martiniano de Alencar sentencia: "O único homem novo e quase estranho que nasceu em mim com a virilidade, foi o político. Ou não tinha vocação para essa carreira, ou considerava o governo do estado coisa tão importante e grave, que não me animei nunca a ingerir-me nesses negócios. Entretanto eu saia de uma família para quem a política era uma religião". Filho ilegítimo de um padre católico embrenhado na política desde os tempos das cortes de Lisboa e neto da revolucionária Bárbara de Alencar, o cearense já consagrado escritor ingressou na vida pública apenas em 1860, aos 31 anos. A paixão tardia, entretanto, desvelou a faceta talvez mais complexa e controversa de José de Alencar: a de intelectual que entreviu, agônico, a passagem do Brasil antigo à modernidade.

A primeira concorrência de Alencar a um cargo público se deu ainda em 1856, quando se candidatou a deputado geral pelo Partido Liberal do Ceará - mas, ainda descrente da trajetória política, sofreu uma fragorosa derrota nas urnas. Três anos depois, em 1859, o patriarca da família endereçou uma carta ao jornalista e correligionário João Brígido: "Meu maior desejo é fazer Alencar deputado e retira-me da política para descansar". O fervoroso liberal morreu no ano seguinte, após dias e noites de febre contínua. Ainda enlutado e decidido a preencher a vaga do velho Martiniano no parlamento, Alencar divorciou-se das raízes liberais e lançou sua candidatura pelo Partido Conservador. Sob a acusação de "vira casaca", elegeu-se deputado e participou de quatro legislaturas seguidas. Em 1868, assumiu brevemente a pasta da Justiça e em 1869 chegou a se eleger senador, mas teve o nome vetado pelo imperador D. Pedro II.

A obra política de Alencar é vasta e plural: inclui incontáveis tratados, ensaios, discursos, cartas abertas, panfletos, relatórios ministeriais, artigos de jornal, entre outras linguagens. Apesar do notório caráter de construção da nacionalidade a partir da literatura, "missão" tomada pelos românticos no século XIX, a produção não ficcional do cearense ainda é pouco desbravada na leitura do País à época - provavelmente, por exigir um amplo esforço de contextualização dos escritos. Taxado como "inimigo do Rei" por seus desacordos com D. Pedro II e "colecionador de desafetos", segundo aponta o biógrafo Lira Neto, José de Alencar vivenciou uma trajetória pública tão enredada que sobrepuja estigmas.

"José de Alencar traz marca indelével do enfant terrible. Se você, porém, ultrapassar esses rótulos e simplesmente ler o que ele tem a dizer, o retrato muda de figura. Você perceberá que ele tinha um pensamento consistente. Um projeto de país completo, em 360 graus. Um programa claro para o que deveria ser, e como os brasileiros deviam entender, a expressão artística, o sistema representativo e a escravidão trissecular dos negros no Brasil", argumenta o professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Tâmis Parron. Entre as obras políticas de Alencar, destacam-se as cartas abertas publicadas sob o pseudônimo de Erasmo; uma alusão ao teólogo e humanista neerlandês Erasmo de Roterdã. Meio comum de participação no debate público durante o Segundo Reinado, as cartas de Alencar foram múltiplas em temas e destinatários: em 1865, lançou Ao Imperador, Cartas de Erasmo; em 1866, Ao Povo, Cartas Políticas de Erasmo; e, entre 1867 e 1968, as críticas Ao Imperador, Novas Cartas Políticas de Erasmo.

Se as cortantes e didáticas cartas ao imperador de 1865 abordavam temas como as relações entre a Coroa, o Executivo e o Parlamento, Ao Imperador, Novas Cartas Políticas de Erasmo destilaram uma incontestável defesa de José de Alencar ao sistema escravocrata e foram retiradas de sua Obra Completa que a editora José Aguilar lançou em 1959. Pesquisador da obra política de Alencar, Tâmis Parron é responsável pela publicação da segunda série epistolar apagada da história, obra lançada em 2008 sob o título Cartas a favor da escravidão. 

“Assim como os escravistas não se chamavam de escravistas e os traficantes não se chamavam de traficantes, os militares e a direita conservadora de hoje não chamam a ditadura militar de ditadura militar. Daí a importância de publicar as cartas políticas do Alencar dizendo de cara o que eram: cartas a favor da escravidão", defende o autor. "Evolucionista no pior sentido do termo", como define o Doutor em Memória Social pela UniRio e professor de curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri Tiago Coutinho, o conservador atuou como um arqueólogo das ruínas: entre a Guerra do Paraguai, a abolição da escravidão nos Estados Unidos e a emergência das imigrações em massa, Alencar defendeu seus interesses marcadamente tradicionais perante um mundo que já avançava.

"O cativeiro humano é, nos termos de Alencar, um 'instrumento da civilização'. Fazer do homem o escravo do próprio homem teria sido o primeiro passo para a humanidade sair do estado selvagem da natureza e entrar na vida social", explica Parron. O político acreditava que a escravidão moderna civilizava o escravizado e que, naturalmente, esse sistema de dominação seria superado. "Na sua visão, graças às alforrias individuais, os senhores brasileiros educavam os negros aos poucos para a liberdade e a cidadania. Portanto, o Brasil não produzia apenas café, açúcar, pinga e fumo. Produzia também negros livres e cidadãos. Sua defesa da escravidão é o embrião do mito da democracia racial", continua.

Autor do livro Sobre rochedos movediços: deliberação e hierarquia no pensamento político de José de Alencar (2012), o doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e diplomata de carreira Ricardo Rizzo defende que o projeto de Alencar integra internamente literatura e política. "Esse jogo entre a representação e a hierarquia percorre o programa político do Alencar, é o seu mote, a meu ver, mesmo nas suas expressões mais literárias. Como viu o Silviano Santiago, ela está em O Guarani, é um desejo de apresentar a 'liderança' colonizadora e a hierarquia estabelecida na colonização como alternativas à violência política aberta, e com isso fundar na história uma ordem política legítima. Acredito que ela marque também fortemente o teatro de Alencar, as suas duas peças sobre a escravidão - Mãe e O Demônio Familiar, não só pela construção das relações hierárquicas entre os personagens escravos e brancos e pelo jogo que apresenta a liberdade como punição ou como violência, mas pela opção estética que termina por colocar esses personagens em situações discursivas tensas, 'deliberativas', o que faz com que o discurso avance por vezes além do programa conservador", considera Rizzo ao retomar a obra alencarina intitulada Systema Representativo (1866).

Quase 200 anos depois de seu nascimento, a obra de José de Alencar nos revela fratura expostas de uma sociedade que precisa se debruçar sobre sua história para compreender o presente. "José de Alencar nos educa como leitores críticos. Lendo essas obras, acho que terminamos sendo levados a nos perguntar sobre o que move os personagens atirados de um lado para outro por forças não nomeadas, o que esse silêncio sobre as relações escravistas está tentando encobrir, o que essa vertigem narrativa está buscando negar, o que essa violência dos elementos está de alguma forma revelando... Ou seja, somos defrontados com "defeitos", incongruências, às vezes com "um quê de bobagem" na literatura de Alencar, como disse Roberto Schwarz, que a meu ver são as pistas muito consequentes de muitas outras histórias que ficaram encobertas nesse processo de institucionalização literária. Acho que a obra de Alencar nos educa porque sua armadura moderna, comprometida ao mesmo tempo com a salvação da 'nação' herdada do passado, termina denunciando esses nódulos da história, essas violências 'ilegítimas', na mesma medida em que tenta nos mostrar um mundo ordenado, em que os destinos de senhores e servos convergem em um projeto comum, mesmo que apenas concebível num futuro que só chega depois da catástrofe, do incêndio ou do dilúvio", finaliza.

 

O indianismo político de Alencar

"As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra". Nas linhas finais de Iracema (1865), renomado romance alencarino, o escritor cearense esboça a gênese de uma nação profundamente marcada pelo vínculo colonial: morta a índia nativa e batizado Moacir, filho dela com o europeu Martim, o nome da "virgem dos lábios de mel" foi esquecido em suas terras. Eternizada em estátuas, equipamentos culturais, hotéis, ruas e epíteto até de um trecho litorâneo da Capital, Iracema é símbolo do Estado - mas, em um contexto de tamanha violência epistêmica, o que essa escolha reflete sobre a historiografia do Ceará? Pesquisadores da trilogia indianista de José de Alencar - Iracema, O Guarani e Ubirajara - destacam a importância de uma leitura crítica dessas obras clássicas. Para Tiago Coutinho, Doutor em Memória Social pela UniRio, "o pensamento de Alencar sobre raça é extremamente eugênico: ele defende a supremacia do povo branco sobre todos os outros povos. Vale lembrar que, em 1850, é declarada a Lei da Terra no Brasil - o documento determina a destinação de terras aos indígenas reconhecidos pelo governo. Em 1863, é lançado um relatório provincial bastante controverso: ao mesmo tempo em que o texto aponta a não existência de índios no Ceará, ele mostra o conflito de terra com os índios. Em 1865, dois anos depois desse relatório, Alencar publica Iracema e a conclusão do livro mostra a protagonista morta, o filho dela já é considerado um mameluco e os índios restantes foram cristianizados. Negar a existência indígena e depois utilizá-la como símbolo do Ceará é cinismo". Suene Honorato, professora do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa a construção do imaginário indígena por Alencar. "A ideia de brasilidade construída pelo discurso alencarino é baseada na exclusão do negro; na submissão do índio ao branco e na fixação do índio como elemento do passado. A imagem do indígena na expressão alencarina é a que acabou se consolidando: um índio idealizado, enobrecido para se tornar nosso ancestral mítico, mas desde que fizesse parte do passado brasileiro. No presente, não existiria 'índio', pois os povos indígenas teriam sido 'assimilados' à "civilização". Esse argumento vem sendo usado há séculos para expulsar os indígenas de seus territórios. Até o surgimento dos movimentos indígenas na década de 1980, a ideia de 'assimilação' ainda dirigia as políticas indigenistas. Os direitos garantidos pela Constituição de 88 são um marco da resistência dos povos originários, que continuam em luta para que tais direitos sejam efetivados. Há muitos modos de ser 'índio' no Brasil de hoje e todos eles precisam ser reconhecidos e respeitados. Precisamos ouvir o que os indígenas têm a nos dizer, desbastar as 'camadas de colonização' que têm distorcido nosso olhar", encerra.

Leia entrevista com Tâmis Parron

Tâmis Parron é professor e pesquisador do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF)

O POVO: A obra política de José de Alencar é vasta: são cartas abertas, ensaios, tratados, artigos de jornais; enfim, uma diversidade de linguagens. É possível contabilizar essas produções, Tâmis? Como o ingresso na trajetória política influenciou a literatura do cearense?

Tâmis Parron: Atualmente, não. Ainda está por surgir o livro “Alencar político: obra completa”. O organizador dessa obra imaginada encontraria inúmeros artigos de jornal jamais republicados em livro, portanto desconhecidos dos leigos e dos especialistas. Alencar era versátil. Usou todas as linguagens ao seu alcance para tratar de política: a da imprensa, a do Parlamento, a dos tratados teóricos, a do teatro, a dos romances, a dos ensaios, a da alegoria satírica e a dos manuais clássicos de virtude do Príncipe. Hoje, seria como dirigir um Blockbuster, escrever para a Folha de S. Paulo, disparar tuítes e ser um youtuber, tudo ao mesmo tempo.   

 

O POVO: Ainda no aspecto de sua vida pública, quais os principais marcos de Alencar na carreira política? Enquanto um "colecionador de desafetos", como podemos pensar nessa figura a partir das inúmeras contradições que envolvem sua trajetória, mas sem reduzi-lo a estigmas simplistas?

Tâmis Parron: É curioso. O Alencar histórico tem o aparente perfil sociopsicológico das personagens literárias excêntricas, aquelas irredutíveis ao compasso comum da vida. Filho de padre num país católico, político conservador numa família liberal, monarquista que se desaveio com o monarca, ele traz a marca indelével do “enfant terrible”. Se você, porém, ultrapassar esses rótulos e simplesmente ler o que ele tem a dizer, o retrato muda de figura. Você perceberá que Alencar tinha um pensamento consistente. Um projeto de país completo, em 360 graus. Um programa claro para o que deveria ser, e como os brasileiros deviam entender, a expressão artística, o sistema representativo e a escravidão trissecular dos negros no Brasil.     

 

O POVO:  Como você coloca logo na introdução de sua obra, a segunda série epistolar de Alencar é continuamente apagada em publicações editoriais — possivelmente pelo teor escravocrata. Você, inclusive, decide publicá-las sob o título "Cartas a favor da escravidão". Por quê? Qual é a importância de demarcar os posicionamentos de Alencar sobre a escravidão?

Tâmis Parron: Veja, o Brasil foi a única sociedade escravista de soberania plena nas Américas ao longo do século 19. O país também foi o que mais se esbaldou com o tráfico negreiro. Apesar dessas “honrarias”, os senhores brasileiros do século 19 não estampavam os termos “escravista” ou “escravocrata” nos seus jornais. E mudavam a palavra “tráfico” para “tráfego”. Em suma, não chamavam os seus crimes pelo nome. Isso tem implicações de longo prazo. Não é à toa que a nação mais escravista da época moderna criou o mito de que é uma democracia racial. Ainda vejo outra coincidência. Assim como os escravistas não se chamavam de escravistas e os traficantes não se chamavam de traficantes, assim também os militares e a direita conservadora de hoje não chamam a ditadura militar de ditadura militar. Daí a importância de publicar as cartas políticas do Alencar dizendo de cara o que eram: cartas a favor da escravidão.

O cativeiro humano é, nos termos de Alencar, um “instrumento da civilização”. Fazer do homem o escravo do próprio homem teria sido o primeiro passo para a humanidade sair do estado selvagem da natureza e entrar na vida social, evoluindo depois da vida rudimentar dos nômades para as civilizações do Egito, da Grécia e de Roma. A escravidão é uma alavanca do progresso humano. Alencar dizia que colonizar as Américas foi como reencenar a conquista da natureza pela civilização vivida nos primeiros tempos da humanidade. E que, sem a escravização dos negros, a Descoberta da América teria sido só um “acidente geográfico”. A América seria uma Antártida tropical: bela e inútil (diria o senso comum). Alencar também afirma que a escravidão moderna civilizava o escravizado. Na sua visão, graças às alforrias individuais, os senhores brasileiros educavam os negros aos poucos para a liberdade e a cidadania. Portanto, o Brasil não produzia apenas café, açúcar, pinga e fumo. Produzia também negros livres e cidadãos. Sua defesa da escravidão é o embrião do mito da democracia racial.


O POVO: Falamos de um autor que nasceu há quase 200 anos — situar sua obra no tempo é, portanto, importante para compreendê-lo. Mas buscamos um exercício de atualização: como é possível pensar em José de Alencar nos dias atuais? Podemos identificá-lo em um provável posicionamento ideológico ou mesmo político-partidário?  

Tâmis Parron: Se Alencar estivesse vivo hoje, teria ideias extremamente conservadoras como Olavo de Carvalho. Mas saberia conceituá-las com uma inteligência superior, como a de Celso Furtado, e expressá-las numa linguagem envolvente, como Alfredo Bosi. Ainda bem que não temos um José de Alencar no Brasil do século XXI| (risos)

 

O POVO: Qual é a importância de nos debruçarmos sobre a vida política de José de Alencar para compreender a sociedade brasileira à época de sua atuação?

Tâmis Parron: Alencar viveu um tempo de crise profunda. A Guerra do Paraguai, a abolição da escravidão nos EUA, a emergência das imigrações em massa, a crise do regime representativo no Brasil: tudo isso exigiu um esforço enorme de interpretação do que o Brasil era e do que o Brasil deveria ser. Agora parecido aconteceu na década de 1930, quando a crise de 1929 fermentou o ensaísmo sociológico de Sérgio Buarque, Caio Prado e Gilberto Freyre. O papel que esses intérpretes tiveram no século XX, José de Alencar teve no século XIX.

 

Confira edição do O POVO do dia 1º de maio de 1929, centenário de José de Alencar

José de Alencar 190 anos

No dia em que se celebram os 190 anos de nascimento de um dos maiores nomes da literatura brasileira, o Vida&Arte reencontra a história do cearense e apresenta o perfil multifacetado por trás do famoso escritor. Leia especial publicado no Vida&Arte sobre o homem, o escritor e o político.