Mariposas à procura de um farol

Por Jáder Santana

Em texto de março de 1976 publicado em O POVO, o jornalista Carvalho Nogueira vai à ordem dos lepidópteros para falar das “mulheres de vida fácil” que esvoaçavam ao redor do Farol do Mucuripe. Bêbadas da luminescência noturna, as “mariposas” engendravam, ao lado de marginais e marinheiros, de policiais e “mais de mil crianças”, cenário digno de romance de Jorge Amado: “À noite, o Farol é todo festa”.

A alusão ao autor baiano não é inoportuna. Em outra matéria, capa da edição de 23 junho de 1955, são discutidas estratégias para salvar nossas crianças dos prostíbulos, das prisões e dos grupos de “capitães de areia”. No romance de Amado que popularizou a expressão, publicado em 1937, a narração das estripulias de um bando de moleques dissimula — ou, antes, evidencia — a ineficiência de sistemas de proteção infantil e a fragilidade de um tecido social segregador e fundamentalmente excludente.

Embora houvesse, nos primeiros textos de O POVO sobre o assunto — das décadas de 1950, 1960 e 1970 —, esforços estilísticos evidentes no sentido de elaborar uma narrativa estetizante, é também perceptível que essa construção — aos moldes do que era praticado por Amado (que em sua monumental popularidade, em meados do século passado, deve ter influenciado gerações inteiras de repórteres) — trazia em seu núcleo a denúncia de uma realidade cada vez mais alarmante da capital cearense.

A exploração sexual infantil — como tema, constatação, denúncia e cobrança — aparece nas páginas de O POVO em quase uma centena de ocasiões ao longo de sua trajetória de publicação. De matérias que se desenham, em suas décadas iniciais, a partir de uma perspectiva algo antropológica, a reportagens investigativas que submergem nos caudais lodosos da violência sexual no interior do Ceará, nossos repórteres mantiveram suas agendas atentas à urgência de uma tragédia que ainda parece longe de ser totalmente superada.

Fortaleza, Ce, BR - 18.08.21 Ruinas do Antigo Farol do Mucuripe no bairro Serve Luz  (Fco Fontenele/O POVO)
Fortaleza, Ce, BR - 18.08.21 Ruinas do Antigo Farol do Mucuripe no bairro Serve Luz (Fco Fontenele/O POVO)

Este projeto especial parte do resgate histórico e documental das edições de O POVO que abordaram questões ligadas à exploração sexual infantil, com uma linha do tempo que apresenta as principais reportagens, matérias, notas e editoriais publicados sobre o assunto em nossos quase cem anos de história.

Três reportagens lançam olhares mais detidos para a questão. A primeira mira o passado e tenta situar a cobertura realizada ao longo das décadas por O POVO em um contexto maior que é indissociável de componentes sociais, políticos e econômicos.

As perspectivas de abordagem da exploração sexual infantil em nossas páginas, assim como questões relacionadas à economia interna do texto — com seus componentes lexicais e elementos textuais, imagéticos e gráficos — são analisadas sob uma ótica crítica que revela não apenas a vanguarda de nossa cobertura, mas também elementos que, hoje, sinalizam para a presença de preconceitos e estereótipos em uma sociedade ainda desnorteada entre o ímpeto modernizante e o passado conservador.

A segunda reportagem resgata as linhas da cartografia da cidade para, a partir de um mapeamento de recorrências e disfunções (muitas delas ainda não superadas), revelar ao novo leitor por onde se espalhavam os focos de exploração sexual infantil em Fortaleza e no interior do Estado.

Seguindo esse levantamento histórico e espacial, a terceira parte da série mergulha no universo complexo das estatísticas relativas ao crime para propor ações que, mirando o futuro, ajudem a fazer cessar o drama de crianças e adolescentes envolvidos em situações de exploração sexual.

Dados variados — em suas dimensões locais, regionais e nacionais — e diálogos com pesquisadores, especialistas e gestores do poder público nos ajudam a conceber estratégias para a detecção e monitoramento de situações de vulnerabilidade, a inibição de agenciadores e, por fim, o acolhimento e reinserção social dessas crianças e jovens.

Por fim, um documentário, produzido por nosso núcleo de audiovisual, extrapola e transforma em imagem viva parte dessa história que é presente, passado e futuro. Resgatando o episódio da “Chacina dos portugueses”, que assombrou a população cearense em agosto de 2001, O POVO apresenta um aspecto pouco comentado dessa narrativa: as vítimas do crime estavam em Fortaleza para usufruir de uma complexa rede de turismo sexual que continua ativa nos dias de hoje.

Como veículo de imprensa com quase cem anos de história, assumimos nosso o dever de, lançando mão das práticas de bom jornalismo que o tempo e a experiência nos ajudaram a consolidar, jogar luz (como um farol) sobre um problema que, embora historicamente combatido, segue vitimando, em uma linha subterrânea de violência, nossas crianças e adolescentes.

Anos 1950-1970

Concentradas em torno do Farol do Mucuripe, as primeiras matérias sobre o tema eram elaboradas a partir de narrativas com viés literário que, muitas vezes, acabavam romantizando o problema.

Anos 1950

23.06.1955

Anos 1960

Editorial

09.01.1969

Anos 1970

Cidade

30.03.1976

Anos 1980

Os focos de exploração sexual infantil começam a se espalhar para outros espaços da cidade e as matérias publicadas alertam para o crescimento do problema.

Anos 1980

Polícia

17.12.1980

Capa / Manchete / Internacional

10.07.1987

Reportagem

11.07.1987

Anos 1990

Década que concentra a maior parte das reportagens e matérias sobre o tema, nas quais são gradualmente esclarecidos os detalhes da complexa rede de turismo sexual que também vitimava crianças e adolescentes.

Anos 1990

Especial

19.08.1990

Cidades

27.03.1991

Cidades

05.04.1992

Editorial

06.04.1992

Cidades

31.03.1993

Cidades

25.04.1993

Cidades

04.08.1993

Reportagem

15.08.1993

Cidades

21.08.1993

Cidades

16.10.1993

Cidades

09.11.1993

Cidades

11.01.1994

Editorial

17.05.1994

Editorial / Cidades

11.08.1994

Cidades

13.03.1995

Cidades

18.02.1997

Turismo

27.11.1997

Ceará

05.12.1999

Anos 2000

A partir de comissões parlamentares realizadas em níveis local e nacional para debater o problema, o combate à exploração sexual infantil entra, definitivamente, no debate político.

Anos 2000

Editorial

07.09.2001

Economia

07.10.2001

Editorial

04.09.2002

Fortaleza

25.05.2003

Cotidiano

24.10.2004

Capa / Manchete / Cotidiano

29.11.2005

Fortaleza

08.11.2006

Caderno especial

17.12.2006

Capa / Manchete / Fortaleza

05.04.2007

Editorial

18.05.2007

Anos 2010

Operando em níveis ainda mais subterrâneos, as redes de exploração sexual passam a exigir novas abordagens e formas de combate. A popularização da Internet estabelece um novo campo para a ação de criminosos.

Anos 2010

Fortaleza

22.09.2010

Brasil / Especial Infância Sem Copa

05.09.2012

Cotidiano

05.06.2014

Documentário

Em agosto de 2001, seis portugueses desembarcam em Fortaleza e desaparecem. Após dez dias, uma investigação policial desvendou uma teia brutal de crimes, enquanto o real motivo da viagem, aos poucos, vem à tona. "Enterrados vivos" conta a história de crime, dinheiro e prostituição que fez de Fortaleza o principal assunto do Brasil e da Europa no início do Século XXI.

Créditos

  • Diretores Executivos de Jornalismo Ana Naddaf e Erick Guimarães Edição Fátima Sudário e Regina Ribeiro Reportagens Jáder Santana Extração, Análise e Visualização de Dados Alexandre Cajazeira Recursos Visuais Jáder Santana e Wanderson Trindade
  • Design Lucas Jansen Pesquisa Histórica Miguel Pontes, Roberto Araújo Gerente de Produto Brenda Câmara Designer de Produto Davi Jucimon Programadora de Front-End Michele Medeiros