Transformando o lugar em morada

Num quarto dividido com outros dois idosos, Roberto Maia guarda o que acumulou ao longo da vida - o gosto pela literatura, pela música, frases, um espaço para o abraço dos filhos. Com ele, O POVO Online estreia uma série com histórias garimpadas no Lar Torres de Melo

Roberto come�ou formar o arquivo que transportou para o Lar Torres de Melo aos 15 anos - com uma fotopintura (Foto: Camila de Almeida)

No quarto 25, frases de Mahatma Gandhi em um papel ofício decoram a parede ao lado da foto de Charlie Chaplin, imagens de crianças, alguns cordões e o desenho de uma bonequinha feito pela neta compõem o universo erudito de Roberto Souza Maia, de 75 anos.

Na penteadeira ao lado da cama: livros, CDs e discos de vinil se encontram com canetas, porta-retratos, colônia de alfazema, uma xícara de café e muitas lembranças. O vendedor aposentado foi para o Lar Torres de Melo, no bairro Jacarecanga, um pouco depois de se separar da esposa, há 11 anos. Mas ele avisa: tem uma pretendente em vista.

Roberto apresenta a coleção de livros: "Os grandes julgamentos da história”, que comprou há 40 anos. Ele conta que é uma de suas leituras preferidas e que sempre revisita o clássico, se enredando em seus processos. “São oito livros que falam sobre vários julgamentos que nunca foram concluídos”, descreve.  Entre os escritores preferidos do aposentado, está o cearense José de Alencar.

A música também embala sua rotina. E é ao som de ícones da década de 1940, como Carmem Miranda, Lupicínio Rodrigues, Pixinguinha e Orlando Silva, que Roberto planeja suas melhores experiências: viajar para Jericoacoara com a paquera e escrever sua autobiografia. Os artistas Caetano Veloso, Alceu Valença e Chico Buarque, completam sua predileção sonora.

Maia começou a formar o arquivo que transportou para o Lar Torres de Melo aos 15 anos - com uma fotopintura. Depois disso, foi colecionando de acordo com cada experiência de vida. Ele conta que trabalhou por algum tempo no Correio do Ceará e depois foi bancário, neste período, começou a admirar a literatura. No seu último trabalho, como vendedor, viajava pelo interior do estado. Roberto explica que nas viagens descobriu a musicalidade. “Em cada lugar buscava por boa música, sempre gostei do bom”, diz.
Sobre o assunto

O colega de quarto do Roberto, Expedito Gomes da Silva, conta que a música do amigo não o incomoda, e que adora quando ele escuta Orlando Silva.

Roberto Maia foi para a instituição por vontade própria, depois de conversar com os filhos. “Meus filhos disseram que me levariam para conhecer, e se eu não gostasse, voltaria para casa. Conheci, gostei e estou até hoje. Eles me visitam com frequência e também vou visitá-los”.

“O silêncio é um grande auxílio para quem, como eu, está em busca da verdade.”, é a frase escrita na parede rosa do quarto 25 e no semblante sereno do pai, avô, escritor e estudioso das melhores artes da vida, Roberto Maia.

O encontro nos corredores da vida

Em uma casa verdejante o presente se entrelaça nas memórias e constrói uma nova história nas vidas de Maria e Valderez. Antes patroa e empregada doméstica, elas compartilham hoje o mesmo quarto depois de se encontrarem por acaso nos corredores do Lar Torres de Melo

Depois de sessenta anos de convivência, as duas se separaram em 2012 (Foto: Tatiana Fortes)

Cadeiras de balanço, porta-retratos e flores se misturam com lembranças na pequena casa verde de número 14 no Lar Torres de Melo. Neste cenário habitam as memórias biográficas da empregada aposentada Maria Jovelina Alves da Silva, de 88 anos e da funcionária pública aposentada Valderez de Castro Ramos, 83 anos. Elas viveram durante seis décadas em uma relação de patroa e empregada doméstica e agora compartilham o mesmo quarto no asilo.

“Desde criança eu luto e até hoje estou vencendo,” conta Maria - que começou a trabalhar como doméstica aos 10 anos de idade em Ipu, distante 250 quilômetros de Fortaleza, logo depois da morte de sua mãe. Uma história de luta que se esconde nos sorrisos constantes e nas linhas finas do seu rosto. Ela veio para a Capital aos 20 anos e logo começou o trabalho em uma casa movimentada no bairro Benfica, onde morava uma mãe e 10 filhos, um deles, Valderez, com 15 anos na época.

A casa que foi o berço da família Ramos também foi o lar e o trabalho de Maria até os 82 anos. Com memórias falhas e intensos afetos, elas não conseguem dizer as datas exatas dos fatos, mas relatam que com a morte da mãe de Valderez, a relação que não era tão próxima foi estreitando. Acrescente a isso que, aos poucos, os irmãos da então funcionária pública foram se casando, mudando de endereço, e a casa que parecia pequena começou a ter mais espaço para amizade.

Depois de sessenta anos de convivência, as duas se separaram em 2012, quando Valderez caiu no banheiro e precisou fazer uma cirurgia na perna. Na ocasião, um primo a aconselhou que fosse para o Lar Torres de Melo. Depois de sair da unidade de saúde, ela ingressou na instituição com a ajuda do familiar. Maria ficou na casa do Benfica.

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (Vinicius de Moraes)

Foi com passos vagarosos que elas caminharam de encontro as suas histórias em um dos corredores do Lar Torres de Melo. “Fui me vacinar e me encontrei com ela no corredor. O que tu estás fazendo aqui? Achei muito bom tê-la aqui comigo, podia ter ficado em qualquer outro lugar, mas veio para cá”, disse a funcionária pública.

“Ela ficou emocionada, porque nunca pensou que eu viesse para cá, e que nos encontraríamos novamente. Minha reação foi a mesma: emocionada! Passamos muito tempo sem nos ver, aí nos encontramos de novo, e deu aquela emoção, e graças a Deus estamos juntas até hoje”, diz Maria.

Juntas por 60 anos e separadas por alguns corredores, o mesmo que as uniu novamente, a relação que começou de forma hierárquica rompeu o abismo social e o tempo. Jovelina foi levada por uma assistente social ao Lar Torres de Melo; chegando lá, ficou em uma subdivisão da instituição chamada “Casarão” - local em que ficam idosos parcialmente dependentes, o caso dela na época.

“Eu vejo um sentimento muito bonito de união”, descreve o fotógrafo Pedro Jorge do Nascimento, que fazia trabalho voluntário no asilo quando conheceu a história das idosas. Ele conta que acabou se tornando amigo delas. “Na medida em que fui conhecendo a história, fui achando cada vez mais interessante. Eu via que a Maria não ia para a quadra (local onde acontecem as confraternizações) quando a Valderez também não podia ir. E acho o companheirismo delas admirável”, diz Pedro.

Apertando os pequenos olhos com um sorriso largo no rosto, Maria termina a entrevista dizendo: “Essa que é a coisa: a vida, saber viver, saber entrar, saber sair...Conversar com as pessoas, ter amizade sem saber com quem. Fazer o bem, fazer um favor quando precisa, o importante é fazer amizade. Abrace, faça carinho, converse e ache graça, essa que é a coisa!”.

Conheça Jovelina:

 

O amor encontra um lar

Na bagagem do tempo, Wilson e Nazaré levaram para o Lar Torres de Melo as memórias da solidão - o peso das malas acabou depois de um doce e um bilhetinho, que fizeram de suas moradas um abrigo afetivo. Esta é a terceira história da sério Lar Torres de Melo

Wilson pensa em casar, mas Nazaré prefere preservar o clima de namoro (Foto: Camila De Almeida)

Foi em uma festa bem diferente das tertúlias de sua juventude, que o ex-camelô Wilson Vitorino Da Silva, 77, conheceu a mulher que despertou novamente o sonho de viver uma história de amor. Há 13 anos, a ex-cozinheira Maria Nazaré Conceição, de 67 anos, chegava ao Lar Torres de Melo para morar no quarto 29, pelo mesmo motivo que ele: solidão.

Assim que chegou, teve uma confraternização na quadra. Foi quando Wilson a viu pela primeira vez. “Quando a vi, pensei: que morena!”, conta. Na ocasião, Wilson se aproximou e ofereceu um doce, que ela aceitou timidamente. Nazaré conta que teve medo de se apaixonar, mas que no fundo, tinha esperanças de encontrar alguém. Depois de se conhecerem, houve diversos encontros casuais nos corredores do Lar – ele que mora no quarto 25, sempre dava um jeito de esbarrar com a moradora do quarto 29 para investir nos flertes com convites para o cafezinho ou passeios pela quadra, que eram recusados.

Nazaré ficou irredutível até o ex-camelô namorar outra mulher. "Ele arranjou uma namorada para mostrar que era homem para mim, porque ele achava que eu estava colocando muita banca", disse a ex-cozinheira. Enciumada, Nazaré mandou um bilhetinho para ele através da sua vizinha, combinando um encontro. Neste dia, eles se encontraram à noite na mesma quadra em que se conheceram; trocando olhares e sorrisos, decidiram namorar.

"Não troco ela por mulher nenhuma no mundo", diz Wilson. Ao descrever a rotina do casal, cercada de companheirismo e cuidados, ele conta que, quando acorda, bate à porta de Nazaré para saber o que ela quer no café da manhã. Eles fazem todas as refeições juntos, embora não dividam o mesmo quarto. É que no Lar Torres de Melo, só os casais com o compromisso oficializado cível ou religiosamente podem dormir juntos. Wilson pensa em casar, mas ela diz que quer preservar o clima de namoro.

Conheça Nazaré e Wilson:

Do lúdico ao cotidiano na casa de bonecas

Com a leveza e a inocência de uma criança, a moradora do quarto 20, Francisca Pacheco da vidas e afetos as suas bonecas. Esta é a história que termina a série Lar Torres de Melo

Por Bruna Damasceno

No quarto 20 do Lar Torres de Melo, compartilham a cama bonecas, algumas folhas, bichos de pelúcia e uma bíblia; no guarda-roupa ao lado, uma pintura de Jesus Cristo - bijuterias se confundem com alguns terços, mas o que destaca neste cenário é o sorriso de Francisca Pacheco, de 79 anos.

Moradora do asilo há 11 anos, ela encontrou nos brinquedos a alegria que não tivera quando criança. Francisca começou a trabalhar aos nove anos de idade em Aquiraz, distante 32 quilômetros de Fortaleza - uma história marcada de tristezas, que ela libertou das memórias para guardar a infância que não teve na caixa de bonecas embaixo da cama.

Francisca Pacheco e a alegria de seus brinquedos. Foto: Fábio Lima

Enredando fantasias com afetos, Francisca dá vida à sua primeira boneca, que ganhou já na terceira idade - o Francisco. Durante a entrevista, ele tinha viajado para a floresta, já durante as gravações, tinha ido ao Maracanã - a mente viajante de Francisca não tolera mesmices.

Ela conta que começou a coleção de bonecas quando perdeu o namorado Amilton, que também morava no Lar - em alguns momentos, o companheiro dela parecia apenas imaginação, porém, se não existe de fato - há de pulsar verdadeiramente em seu coração.

A idosa não casou e não teve filho. Depois do trabalho braçal feito no interior do estado, ela veio para Fortaleza trabalhar como empregada doméstica na casa de uma irmã.

Todas as bonecas da idosa foram doadas por voluntários e alguns funcionários da instituição. Acompanhada delas, é que Francisca suporta a rotina e vence o tédio – ouvindo repetitivamente as bonecas que falam com o encantamento de uma criança, tricotando ou sorrindo pelos corredores com as rosas brancas no penteado de cabelo, colares de contas e um batom cintilante é que assim, ela vive o melhor da vida – o recreio.

"Quase todos os homens vivem inconscientemente no tédio. O tédio é o fundo da vida, foi o tédio que inventou os jogos, as distrações, os romances e o amor". (Miguel Unamuno)

Instituição

O Lar Torres de Melo existe há 111 anos e representa 40,22% dos leitos que atendem idosos em Fortaleza, abrigando atualmente 220, que ficam instalados em subdivisões dentro da instituição de acordo com a necessidade, já que alguns são totalmente dependentes, alguns parcialmente e outros independentes.

O asilo que fica na rua Júlio Pinto, 1832, no bairro Jacarecanga, dispõe de moradia e assistência médica. O local que é considerado pela ANVISA de Longa Permanência Para Idosos (ILPI) tem capacidade para 240 internos.

Série Lar Torres de Melo

Esta é a última história da série que trouxe a leveza da terceira idade. O personagem Roberto Maia abriu a série, seguido de Valderez e Jovelina. Na sexta-feira, 30, o espaço foi do casal Nazaré e Wilson.

Conheça as bonecas de Francisca Pacheco:

 

S�rie Lar Torres de Melo

OPINIÃO

Artigos sobre o Dia do Idoso retomam a discussão sobre a luta por direitos