Morte de Castelo Branco: mistério que dura meio século
Acidente que matou Castelo Branco completa 50 anos ainda como a mais misteriosa e controversa morte de um ex-governante brasileiro
Por Thiago Paiva
Em 18 de julho de 1967, dois aviões se tocaram no céu e deixaram no ar um rastro de mistério que perdura há 50 anos. Foi numa terça-feira de tempo bom, visibilidade praticamente ilimitada e nebulosidade insignificante. Retornando de Quixadá para Fortaleza, a bordo de um bimotor piper aztec e acompanhado de outros três passageiros, além do piloto e copiloto, estava o ex-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, único cearense a ter cumprido um mandato presidencial (1964-1967).
O primeiro governante da ditadura militar (1964-1985) tinha perfil considerado “moderado” entre os altos escalões das Forças Armadas. Em seu discurso de posse, em 15 de abril de 1964, o cearense falava de “eleições em 1965”. Quando do acidente, havia deixado o poder em um momento de ascensão do grupo chamado “linha dura”, cuja liderança foi também exercida por seu sucessor, Arthur da Costa e Silva. Era a primeira vez que Castelo visitava o Ceará desde sua saída da presidência. Na noite anterior, havia visitado a escritora Rachel de Queiroz, sua amiga.
Na viagem de volta, depois de aproximadamente 40 minutos de voo, ocorreu o incidente que dividiria os brasileiros. De um lado, aqueles que acreditavam (e ainda acreditam) em conspiração seguida de assassinato. Do outro, os que creem em fatalidade.
Vários fatores e imprevistos ocorridos, como atrasos de passageiros e alterações no horário da viagem, tornam improvável que o choque tenha sido intencional. Porém, a falta de transparência na condução das investigações e perguntas até hoje sem respostas alimentam especulações de crime com motivação política. Unanimidade, o caso se tornou uma das maiores tragédias da aviação cearense e é a mais controversa morte de um ex-presidente brasileiro.
A queda
Enquanto se aproximava do aeroporto, já sobrevoando o bairro Mondubim, o avião cedido pelo Governo do Ceará foi subitamente colhido por um jato TF-33A, da Força Aérea Brasileira (FAB). O caça compunha esquadrilha de quatro aeronaves e bateu “com precisão cirúrgica” com a ponta da asa esquerda no leme de direção e quilha do piper, arrancando parte da cauda da aeronave civil.
Do choque até o solo, a queda em giros de parafuso chato foi acompanhada por uma agonia que durou aproximadamente 1 minuto e 30 segundos. Desfecho mortal para o ex-presidente, a educadora Alba Frota, o major Manuel Nepomuceno, o irmão do marechal — Cândido Castelo Branco, e o comandante Celso Tinoco Chagas. Somente o copiloto Emílio Celso Chagas, filho do piloto, sobreviveu.
Enquanto isso, o caça retornou ao aeroporto, onde pousou normalmente, sem os tip-tanques, que ficavam nas pontas das asas da aeronave. Um dos equipamentos foi arrancado na colisão e o outro automaticamente ejetado, para evitar o desequilíbrio do TF-33A.
Em seguida, vieram as investigações e conclusões duvidosas que atravessaram meio século sem que ninguém fosse responsabilizado pelo episódio. As apurações da Aeronáutica e órgão correlatos apontam para acidente. Testemunhos de familiares e amigos das vítimas também. Mas as teorias da conspiração ainda pairam sobre aquilo que não foi dito e sobre o que ainda permanece oculto, sob a guarda dos militares.
Acidente ou atentado?
Por Thiago Paiva
Fatos que alimentam teoria da conspiração
A tripulação do piper alertou à torre de controle quando estava a dez minutos da área de pouso. Desceriam na pista 13. Minutos depois, torre autorizou passagem dos jatos da FAB sobre a pista 31, informando que não havia “tráfego conhecido ou à vista que interferisse com a passagem solicitada”.
Em 20 de junho de 2004, O POVO mostrou, com base na Carta de Tráfego dos Aeródromos Pinto Martins e do Alto da Balança e Publicação de informação Aeronáutica, que os jatos deveriam virar à direita. Em 21 de junho de 2004, O POVO publicou entrevista com Emílio Celso de Moura, copiloto e único sobrevivente do acidente, após as revelações. Ele culpou à FAB e ao Controle do Tráfego pelo acidente. Antes, no O POVO de 18 de julho de 1997, ele havia dito que não invadiu a área dos jatos, mas tinha descartado a possibilidade de atentado, justificando que ocorreram pequenos atrasos que influenciaram nos horários de voo.
Manuel Cunha, do O POVO, fotografou Castelo Branco sendo socorrido. O filme foi recolhido pelos militares e jamais devolvido.
Indícios que corroboram tese de acidente
Na ida a Quixadá, Castelo usou um trole (pequeno carro que anda sobre a linha férrea), mas ficou com dores na coluna e alguém deu a ideia de solicitar o avião do Estado. A viagem aérea, portanto, não era planejada.
A saída do voo de Quixadá atrasou cerca de 30 minutos. Eventual atendado poderia ser atrapalhado pela mudança de cronograma.
Em 1997, o copiloto confirmou que voava em condições visuais e que somente os jatos poderiam tê-los avistado. E queixou-se da torre não ter os alertado da presença dos caças, mas declarou que nada havia a ser esclarecido.
Após a passagem, a esquadrilha fez curva à esquerda para também pousar na pista 13, que possuía tráfego pelo sul destinado às aeronaves de caça, e norte para os demais aviões. A manobra, conforme o Cenipa, foi correta, tendo o piper invadido a área dos jatos. (Em 2004, com base na Carta de Tráfego, O POVO mostrou que ocorreu o contrário).
O piloto que colidiu no piper era o primeiro-tenente Alfredo Malan D’Angrogne, hoje coronel aviador, filho do general Alfredo Malan, grande amigo de Castelo. Conhecia o piloto Celso, que morreu na mesa em que seria operado. Ele também foi entrevistado pelo O POVO. Disse que o acidente o “chocou muito” e refutou a possibilidade de choque intencional. “Existem maneiras menos complicadas de derrubar um avião que se chocar contra ele”.
Aeronáutica não disponibilizou material sobre queda de avião
Por Thiago Paiva
Com base na lei nº 12.527/2011, a chamada Lei de Acesso à Informação ou Lei da Transparência, no último dia 22 de março, O POVO requereu ao Ministério da Defesa (MD) todos os documentos relacionados à investigação do acidente aéreo. Foram solicitadas fotografias, laudos periciais, resultado de inquérito, investigações adicionais, conteúdo de depoimentos colhidos e conclusões de órgãos correlatos, como o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa).
No mesmo dia, a demanda foi direcionada pelo MD ao Comando da Aeronáutica (Comaer), apontado como órgão detentor das informações. Em 11 de abril, a solicitação foi respondida. Os militares encaminharam ao O POVO apenas um relatório, de dez páginas, com selo de “Reservado”, feito à época pela Inspetoria Geral da Aeronáutica.
O documento é o mesmo encaminhado ao procurador da República Alessander Sales, em agosto de 2004. Após a publicação de uma série de matérias do O POVO, em junho daquele ano, apontando a possibilidade de ter havido falha de comunicação por parte da torre de controle, o procurador resolveu verificar e tornar públicas as causas do acidente.
Alessander, assim como O POVO, solicitou cópias do inquérito militar que apurou as causas da colisão entre o caça TF-33 e o piper PP-ETT, além do detalhamento do relatório final sobre o acidente. Mas o documento enviado não contém informações relevantes e não responsabiliza ninguém pela colisão. O relatório é apontado como única peça existente sobre a investigação, realizada há 50 anos.
No dia seguinte, 12 de abril, O POVO encaminhou recurso ao Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, almirante de Esquadra Ademir Sobrinho, alegando que as informações estavam incompletas e eram insuficientes.
A reportagem questionou onde foram parar os depoimentos de testemunhas ouvidas na fase do inquérito (pilotos e até jornalista afirmam que foram ouvidos), bem como o rolo de filme de um dos nossos fotógrafos à época, Manuel Cunha. A equipe do O POVO foi a primeira a chegar ao local do acidente.
É de Cunha o registro em que o então soldado Francisco Uchôa Cavalcante aparece carregando nas costas o corpo de Cândido Castelo Branco, irmão do ex-presidente, também morto no acidente. Na ocasião, Cunha também fotografou o momento em que o próprio Castelo era carregado, mas foi obrigado, pelos militares, a entregar o filme. As fotografias estavam divididas em dois rolos. Involuntariamente, Cunha entregou justamente aquele que continha as fotos do ex-presidente.
O material foi recolhido pela Aeronáutica como parte da investigação e jamais foi devolvido. Além disso, o relatório não revela quem eram os demais pilotos que compunham a esquadrilha da qual o caça fazia parte, se houve falha de algum funcionário da torre de controle, quem era o controlador, na ocasião, ou se alguém foi punido.
Entretanto, no dia 17 de abril, o pedido foi analisado e as informações prestadas anteriormente pelo órgão foram ratificadas. O Chefe do Estado-Maior reafirmou que “todos os documentos relativos ao acidente, disponíveis no Comando da Aeronáutica, foram encaminhados juntamente com a resposta formulada”. Não respondeu, porém, o que aconteceu com o restante do material.
Procurador questiona manobra dos jatos e cobra apuração sobre acidente
Por Thiago Paiva
As informações presentes na Carta de Tráfego dos Aeródromos Pinto Martins e do Alto da Balança e a Publicação de Informação Aeronáutica apontam que foram os jatos da Força Aérea Brasileira (FAB) que teriam invadido a área do piper aztec do Governo do Estado em que viajava o ex-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco 50 anos atrás — não o contrário.
Os documentos conflitantes com a conclusão do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), que apurou as causas do acidente, foram revelados com exclusividade pelo O POVO em série de matérias publicada entre os dias 20 e 22 de junho de 2004, quase 37 anos após a colisão que deixou cinco pessoas mortas.
Com base na versão apurada pela reportagem, o procurador da República Alessander Sales solicitou, em 25 de julho de 2004, cópia do inquérito militar e o relatório final sobre o acidente. O Cenipa, entretanto, enviou apenas uma certidão, considerada pelo procurador “resumida e confusa”. À época, O POVO mostrou que havia erros na documento e pontos que evidenciavam a possibilidade de falha na comunicação entre a torre de controle e as aeronaves envolvidas no acidente.
O material, desta vez, serviu como base para uma Ação Civil Pública, movida por Alessander e protocolada em 15 de fevereiro de 2005. O procurador solicitou aos ministérios da Aeronáutica e da Defesa que “todo e qualquer documento público relacionado com o acidente que vitimou o ex-presidente (...) incluindo-se aí o relatório resultante da investigação responsável, não importando o grau interno de sigilo”, fosse disponibilizado.
O processo foi distribuído para a 6ª Vara da Justiça Federal. Na ocasião, a Justiça ordenou que o material fosse apresentado. Contudo, a mesma certidão foi encaminhada. Um recurso foi registrado no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), insistindo na tese de insuficiência de investigação. Também foi solicitada a realização de prova testemunhal. Mas o pedido foi negado, com base no argumento da Advocacia Geral da União (AGU), que sustenta ser a certidão o único documento existente sobre o caso, e o processo foi extinto.
“O documento apresentado não materializa uma investigação bem feita. Pelo contrário, mostra ausência de investigação. Mas somente com novas provas poderíamos reabrir a investigação. E até agora essas novas provas não surgiram. Esse é um fato ainda nebuloso na história do País”, disse o procurador.
Manobra
Alessander defende que somente uma investigação aprofundada poderia revelar se a manobra feita pelos jatos, que culminou na colisão com o piper, foi um “erro” ou seria “uma rota pré-determinada para atingimento da outra aeronave”.
“Aquele movimento, que foi feito naquele dia, só foi feito naquele dia. Eles consideram uma contingência, em decorrência do treinamento. Só que, em nenhum momento, antes do acidente ou depois do acidente, se tem qualquer documento mostrando que aquela rota tenha sido alterada da direita para a esquerda. Só naquele dia isso aconteceu”, completou.
Perguntas sem resposta
Por que a Aeronáutica não divulga os documentos ou informa se foram destruídos?
Por que a torre de controle não comunicou à esquadrilha a existência dos jatos ou vice-versa e quem autorizou as manobras em 18 de julho de 1967?
Por que os jatos não efetuaram o pouso direto, ao invés de iniciar nova manobra? Por coincidência, o tip-tanque atingido no caça estava vazio, evitando uma explosão.
O relatório do Cenipa apontou que a luz anticolisão do piper estava apagada no momento do choque, mas os pilotos afirmaram que não se viram. Como atestar falha nesse equipamento se ele fora destruído na colisão?
Ex-diretor do Cenipa diz que morte de Castelo Branco foi fatalidade
Por Thiago Paiva
Cadete aviador há época do acidente, o coronel Paulo de Tarso Magalhães Guerra, 70, serviu durante sete anos no Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) e chegou a dirigir a célula de Investigação do órgão. Atual coronel aviador da Reserva e secretário do Turismo e Cultura de Caucaia, conta que se interessou pela queda do piper aztec em que estava Castelo Branco e estudou o material da investigação. Ele assegura: “foi tudo uma grande fatalidade”. Diz ainda que o Cenipa guarda mais documentos sobre o caso do que o divulgado.
O POVO - Qual era a sua patente na época do acidente?
Paulo de Tarso – Ainda estava na academia da Força Aérea. Entretanto, quando assumi um posto no Cenipa, onde fui comandante de várias divisões, me interessei, particularmente, em conhecer detalhes desse acidente. Conheci o piloto envolvido, o tenente (Alfredo) Malan. Vale destacar que ele estava na ala (direita) de uma esquadrilha de quatro aviões TF-33. Ouvi pessoas que conviveram com ele. Uma delas me deu um testemunho de que, quando o jato pousou, o Malan desceu do avião e afirmou: ‘rapaz, eu bati aí num avião’. Um mecânico disse que o viu chorar quando tomou conhecimento de que quem havia caído era o ex-presidente Castelo Branco. Porque, quando se está voando na ala, quem está com o obstáculo é o líder da esquadrilha. Ele era ala.
OP – Então, se houvesse responsabilidade de alguém, seria do líder da esquadrilha?
Tarso – Sim. O líder da esquadrilha é quem tem que manter os obstáculos de forma clara. Entretanto, a área de treinamento tinha uma notificação de aviso de área militar. O avião do Castelo Branco não poderia ter adentrado na área.
OP – Foi uma fatalidade, então?
Tarso – Sim. Reafirmo, mais uma vez, como investigador de acidente, ex-diretor do Cenipa, como responsável pela investigação de centenas de acidentes aéreos, com segurança: houve uma fatalidade. A aeronave do Castelo entrou na área restrita de treinamento de aviação militar, dos caças da FAB. A ocorrência da colisão foi uma tragédia dificilmente prevenida porque os pilotos estavam efetuando descida numa área onde supostamente não deveria ter aviação civil. E tem outro detalhe: o general Alfredo Malan, pai do tenente, servia na Presidência e era amigo do Castelo Branco. Como a gente pode imputar ao tenente uma tentativa de matar o Castelo Branco se o pai dele era um general prestigiado pelo ex-presidente?
OP - Quem foi ouvido e o que foi periciado na investigação?
Tarso - Todos foram ouvidos. Era uma investigação de vários volumes. A vida do tenente Malan foi toda levantada. Foram reavaliadas as últimas 24 horas dele, se estava sob efeito de bebida alcoólica. E não se detectou nenhuma irregularidade. Foi considerada uma fatalidade.
OP – E onde foi para esse material de vários volumes?
Tarso – Estão nos arquivos do Cenipa. Pode fazer a solicitação, eles têm tudo microfilmado.
OP – Já pedimos e nos foi enviado apenas relatório de dez páginas.
Tarso – É isso mesmo. O acesso às peças da investigação você só consegue por via judicial.
OP – Também foi pedido pela Procuradoria-Geral da República, mas não adiantou.
Tarso – Mas por que negaram? Não é escondendo nada, não. É uma filosofia de trabalho. A investigação, como não é para fins judiciais, é para fins de prevenção.
OP - Foi dito que os jatos manobravam com a permissão da torre e o piper também. Não houve erro de comunicação?
Tarso - Essa hipótese de pedir passagem na pista não está na minha memória. Mas o avião civil estava com plano visual. E quando isso acontece, a responsabilidade sobre obstáculo é dele. Na época, não tinha um sistema de radar como temos hoje. A infraestrutura não permitia uma segurança contínua. Desconheço essa passagem baixa, mas eles não bateram no local de passagem baixa. Estavam na operação de pouso.
OP – Mas se o piper foi colhido na cauda pela esquadrilha, os jatos não deveriam tê-lo visualizado?
Tarso - Não. Eles estavam descendo e o piper voando abaixo. Ele foi colhido atrás. Quando acabaram de passar, a ponta de asa bateu.
OP - Por que ninguém foi responsabilizado, mesmo por outros órgãos?
Tarso - Porque o objetivo do Cenipa não é buscar responsáveis. Sobre os outros eu não sei.
OP - Por que os nomes dos responsáveis pelo controle e dos demais pilotos dos jatos não foram revelados?
Tarso – Na investigação, foram identificados todos eles. O comandante da esquadrilha era o capitão Areal. Nunca mais o vi. E o tenente Malan um dos alas. Os outros não interessavam.
OP - Por que os homens da Aeronáutica que retiraram o avião do local não obedeceram aos procedimentos básicos e destruíram a aeronave?
Tarso – Não tenho esse detalhe. O que acontece é que, quando se chega num ambiente desse, você fotografa e filma tudo. E depois que filma e monta um croqui, aí o machado pode entrar. Se tudo isso é feito cientificamente, quando o machado entrar, pode estar seguro que já foi tudo registrado e aquilo não representa mais nada para a investigação.
Pesquisador diz que trajeto dos jatos de acidente foi irregular
Por Thiago Paiva
A Carta de Tráfego e a Publicação de Informação Aeronáutica foram repassadas ao O POVO pelo professor e pesquisador Pedro Paulo Menezes Neto, 61, autor do livro J’Accuse! O Clamor de Uma Verdade. Os documentos definem a circulação das aeronaves civis e militares, orientando sobre rotas que devem ser seguidas antes dos procedimentos de pouso e decolagem. Bem como as regras de tráfego aéreo, orientações sobre busca e salvamentos, além de descrever aeródromos, dentre ouras normas de navegação aérea.
E, com base no que o material aponta, no caso da colisão entre o piper e o caça TF-33, o professor Menezes afirma que a curva feita pelos jatos, após voo rasante sobre a pista, em sentido contrário de pouso e autorizado pela torre controle, deveria ter sido à direita, sobrevoando a Barra do Ceará e retornando à área de pouso. Os caças, contudo, viraram à esquerda e teriam entrado na rota do piper aztec.
“Chama a atenção o fato de envolver um ex-presidente da República. É de se lamentar que mesmo com a existência da Comissão da Verdade, esse fato não tenha chamado atenção para uma apuração detalhada. É um fato ainda nebuloso da história do País”, ponderou o procurador Alessander Sales.
O procurador enfatizou que não busca “reparação de danos”, mas a “exibição” dos documentos da investigação. “Quero crer que esses documentos existem. Porque, se não existirem, ficará claro que a morte de um ex-presidente não foi investigada”, ressaltou.
Castelo Branco, o ditador relutante
Por Érico Firmo
O cearense Humberto de Alencar Castelo Branco pretendia uma ditadura temporária, com rápido retorno da democracia. Primeiro presidente do regime militar, era intelectual legalista e de formação liberal. Talvez tenha sido esse perfil que tenha facilitado a consolidação da ditadura de 21 anos.
“Ele soube se utilizar — e deixou que se utilizassem — de sua imagem de moderado e legalista para conferir um verniz pretensamente democrático ao golpe”, escreveu na Folha de S.Paulo, em 8 de abril de 2004, o jornalista Lira Neto, autor de Castello: a marcha para a ditadura (Contexto, 2004).
Chefe do Estado Maior do Exército quando do golpe, Castelo era leitor de Shakespeare, dos sermões do padre Antônio Vieira e ouvinte de música erudita. Tinha como referências políticas Estados Unidos e França — chegou a estudar em ambos os países. Era crítico da presença dos militares na política. Não por acaso, a partir de 1º de abril de 1964, evitou aparições públicas em trajes militares. “O paletó e a gravata serviriam para dar ares civis ao movimento armado”, resumiu Lira Neto. Em 1954, o primeiro de vários senões no legalismo: assinou o “Manifesto dos Generais” pela renúncia de Getúlio Vargas.
Eleito presidente pelo Congresso Nacional, em 11 de abril de 1964, deveria concluir o mandato iniciado por Jânio Quadros, assumido posteriormente por João Goulart. Prometeu “entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em eleições livres, uma nação coesa”. Três meses depois, o mandato foi prorrogado até 1967. O sucessor de Castelo foi eleito por 295 pessoas.
Não fosse a imagem de Castelo como moderado de inclinação democrática, dificilmente teria tido o apoio de nomes como Juscelino Kubitschek, que liderou a votação da bancada do PSD em favor dele. JK pretendia ser candidato em 1965. Em menos de dois meses, porém, teve mandato cassado e foi para o exílio.
Na tentativa de manter algo próximo à aparência de normalidade democrática, em 1965 houve eleição direta para governadores de 11 estados. Em cinco venceram candidatos de oposição. Foi então que Castelo Branco editou o Ato Institucional número 2 (AI-2). Oficializou a eleição indireta como mecanismo de escolha do presidente e extinguiu os partidos políticos. Passaram a haver apenas dois: Arena e MDB. Castelo teria baixado a medida a contragosto. Mas, não pararia aí. Quatro meses depois, o AI-3 estabeleceu eleições indiretas para todos os governadores e escolha de prefeitos das capitais por indicação. Em 1967, o AI-4 revogou toda a Constituição de 1946 e estabeleceu nova Carta. Não era mais possível manter o regime com emendas à velha ordem.
“Castello queria um ato institucional que durasse só três meses. Assinou três. Queria que as cassações se limitassem a uma ou duas dezenas de dirigentes do regime deposto. Cassou cerca de quinhentas pessoas e demitiu 2 mil. Seu governo durou 32 meses, 23 dos quais sob a vigência de outros 37 atos complementares, seis deles associados aos poderes de baraço e cutelo do Executivo”, escreveu Elio Gaspari em A ditadura envergonhada (Cia. das Letras, 2002). Em outubro de 1966, o Congresso foi fechado por um mês, período no qual Castelo acumulou funções de Executivo e Legislativo.
A tortura não foi tão disseminada quanto passaria a ser após o AI-5. Mas, existiu e foi denunciada por nomes como o escritor Carlos Heitor Cony e o cardeal dom Hélder Câmara. Os fatos chegaram ao conhecimento de Castelo, que designou Ernesto Geisel, então chefe da Casa Militar e futuro presidente, para investigar os fatos. Comprovou a prática e tentou inibi-la. Sem punição, porém, a tortura persistiu.
No fim das contas, Castelo Branco acabou por consolidar uma ditadura, um pouco contra sua vontade. Ao longo de todo o governo, foi pressionado pela linha dura. Se a ditadura tivesse sido desde o início conduzida por esse último grupo, o regime certamente teria encontrado mais dificuldades para se firmar.
Ao deixar o mandato, Castelo teria força para impor o sucessor. Mas, temeu dividir o regime e aceitou a ascensão de Costa e Silva. Com a linha dura na Presidência, a ditadura perdeu quaisquer disfarces.
As horas finais de um presidente
Por Rômulo Costa
O alpendre de onde se enxerga o açude da fazenda Não me Deixes continua igual desde que o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco chegou ali na manhã do dia 17 de julho de 1967. A estrutura é a mesma vista pelo primeiro presidente do regime militar (1964 - 1985) quando desembarcou na estação de trem, a bordo de um trolley-motor e cruzou de carro a estrada de terra batida que dá acesso ao refúgio da escritora cearense Rachel de Queiroz, sua amiga e parente. Foi a última visita que o marechal fez. Na manhã do dia seguinte, 50 anos atrás, haveria de ser uma das vítimas de acidente aéreo cujas circunstâncias ainda ensejam perguntas e silêncios.
A fazenda fica a 30 km da sede de Quixadá, no Sertão Central cearense. Castelo Branco chegou sem seguranças ou cerimônias. Foi recebido pelo marido da escritora, o médico Oyama de Macedo, e também por Rachel de Queiroz, com quem desfiou conversa sobre o País e debelou a suspeita de que poderia se candidatar a senador. Sob o vento fresco que corre do açude, o marechal falou ainda sobre a última viagem que fizera à Europa, já depois de deixar a presidência.
Desse dia, pouco se sabe na fazenda. Nenhuma das pessoas que hoje moram nos limites da propriedade testemunharam a visita de Castelo. A única que ainda guarda memória sobre esse dia é Rosita Ferreira de Sousa, 87 anos, amiga de Rachel. Ela estava na fazenda quando o marechal encostou na Não me Deixes e chegou a acompanhar a escritora Alba Frota na estação de Quixadá para a viagem com o ex-presidente. Alba foi uma das quatro vítimas do acidente aéreo.
“Eles almoçaram na fazenda. Tinha um banquete. Nesse dia, a Rachel fez peru assado, fez carneiro. Castelo gostava dessas coisas porque era do sertão”, refaz. Ainda morando em Quixadá, Rosita diz que o encontro entre os dois havia sido acertado durante encontro no Rio de Janeiro.
O encontro durou cerca de seis horas até o marechal se despedir, no fim de tarde. “Ele disse que não dormiria na fazenda, como tinha prometido. Iria para a Serra do Estevão, porque tinha um hotel muito bom que queria conhecer”. Era a Casa de Repouso São José, administrada à época por freiras beneditinas alemãs, onde Castelo Branco chegou sem avisar. Antes, o ex-presidente ainda desviou o caminho até o açude do Cedro e passou quase anônimo pela cidade de Quixadá.
Rastros
“O comentário (sobre a visita) foi depois. Ele chegou de surpresa na Cidade, não tinha nada oficial”, recorda o memorialista João Eudes Costa, que tem livros publicados sobre a história do Município. Ele lembra que chegou a ver Castelo Branco na estação de trem de Quixadá, mas sem muito alarde. “A repercussão maior foi quando souberam do acidente. As pessoas aqui sentiram um pouco mais por ser o último lugar que ele passou”, atesta.
Foram alguns meses de movimentação anormal de visitantes na Serra do Estevão, em busca de conhecer o lugar onde Castelo dormiu a última noite. Cinco anos depois, o cômodo de número 18 recebeu placa alusiva ao marechal e manteve os objetos da época expostos à visitação.
Em 1986, o material — cama, chinelo, sabonete e livro de hóspedes com assinatura de Castelo — foi transferido para o Museu Histórico Jacinto de Sousa, no Centro de Quixadá. O resgate dos últimos instantes do marechal pela Cidade é difícil. Os moradores mais antigos sabem pouco, pouco viram, lembram por ouvir dizer. O quarto e os objetos usados por ele naquele 18 de julho final talvez sejam ainda o pouco que sobrou da derradeira passagem de Castelo Branco por ali.
A visita que Castelo Branco não fez
O marechal Castelo Branco não deveria ficar apenas nos limites de Quixadá. Além de visitar a amiga Rachel de Queiroz, o ex-presidente também havia programado encontrar outro amigo, com o qual mantinha não só relação pessoal, mas também política. Tratava-se do cearense Armando Falcão, que mantinha latifúndio na cidade de Quixeramobim, também no Sertão Central. Hoje, a área está nos limites de Madalena.
Naquele 1967, Armando já havia sido ministro da Justiça e Negócios Interiores do governo de Juscelino Kubitschek. À época, ele ocupava cadeira de suplente na Câmara dos Deputados. O cearense tinha relação estreita com os militares. Foi ele um dos políticos que se alinharam às Forças Armadas na conspiração para a retirada de João Goulart do poder, abrindo caminho para a Ditadura Militar. Anos mais tarde, Armando voltou a ser ministro da Justiça, dessa vez no governo do general Ernesto Geisel.
Um desencontro entre Castelo e Armando impediu a visita à fazenda Massapê Grande — um dos maiores latifúndios da região. Assim justificou a escritora Rachel de Queiroz. Para a escritora, isso foi fundamental para a sucessão de acasos que findaram no acidente que vitimou o ex-presidente. “Talvez não tivesse morrido se não tivesse acontecido um desencontro, que o impediu de ir para lá”, disse a escritora ao O POVO três dias depois da queda do avião.
Chico Almir, 48, primo de Armando Falcão, ainda mantém uma propriedade na região. Ele diz que Armando relembrava o caso. “Por mais de uma vez eu ouvi comentando que tinha essa visita do presidente Castelo Branco. Não sei por qual motivo não deu certo”. E emenda: “Eles tinham uma grande afinidade política e pessoal”.
Hoje a fazenda guarda sinais de abandono. Na entrada, uma corrente protege o portão de acesso. Não há moradores. Armando Falcão morreu em 2010, aos 90 anos, vítima de pneumonia.
O nome
A grafia do nome do marechal Castelo Branco sofreu divergências ao longo dos anos. Na época do acidente, os jornais brasileiros, inclusive O POVO, grafavam o nome do ex-presidente com apenas um L (Castelo).
Anos mais tarde, descobriu-se que a escrita que constava nos documentos era com L duplicado (Castello). Neste especial em alusão aos 50 anos da morte do militar, O POVO optou por manter a grafia tal como fora publicado em 1967, ano do acidente que o vitimou.
Marco-zero foi arrancado e soterrado
Ermo e de difícil acesso, o local onde caiu a aeronave em que viajava o ex-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, em 18 de julho de 1967, ficou abandonado por 16 anos. Até que, como forma de homenagear as vítimas da tragédia, no dia 18 de julho de 1983, o então prefeito de Fortaleza, César Cals Neto, ao lado governador do Estado à época, Gonzaga Mota, inaugurou o chamado marco-zero, demarcando o ponto exato em que o avião alcançou o solo.
O monumento, composto por uma pedra de mármore na forma de trapézio, adornada com uma placa em memória das vítimas, foi apresentado em solenidade pomposa, reunindo diversas autoridades.
Antonieta Castelo Branco, filha do ex-presidente, descerrou a faixa às 9h40min, mesmo horário do acidente. Contudo, passada a cerimônia, o local — num raio de 50 metros, o terreno foi doado pela Prefeitura ao Estado — caiu novamente no esquecimento.
O desfecho da história do monumento foi ainda mais lamentável. Em meados de 2014, esquecido e deteriorado, o marco foi removido, inadvertidamente, por trabalhadores que realizavam a escavação da barragem do Cocó, no bairro José Walter, obra do Governo do Estado. Já sem a placa alusiva, a descoberta da pedra em meio ao carnaubal casou certa curiosidade entre os operários. Porém, por desconhecimento, ela acabou soterrada com o restante dos rejeitos da barragem.
Responsável pela obra da barragem do Cocó, Paulo Wagner conta que achou “esquisito” a pedra de mármore branco ter “aparecido” no solo, considerado de primeira qualidade, onde quase não havia rochas. Engenheiro da Secretaria das Cidades, ele diz que “não sabia desse detalhe” do monumento e que a pedra foi retirada juntamente com mais de 2 milhões de m³ de material escavado nos 230 hectares da bacia.
“Ela foi retirada da bacia e deixada nas laterais, fora da escavação. Essa pedra ficou muito tempo por aí. Não tinha nada escrito nela. Era toda irregular, como se fosse uma pedra comum. Não sei por que carga d’agua surgiu ali dentro. Tinha mais ou menos um metro por um metro. Não tinha forma detalhada e bem definida que desse a entender que era alguma coisa que tinha sido colocada ali. Ninguém se interessou por ela porque nunca tentaram nem quebrar pra levar um pedação”, lembra.
Descaso
A instalação do memorial era ideia antiga e levou anos para se concretizar. À época da queda, a intenção era construir uma praça com capela no local do acidente. O prefeito José Walter e o governador Plácido Castelo pretendiam desapropriar o local e construir um obelisco.
Uma estrada seria traçada pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) até lá. Mas, por conta das dificuldades, foi decidido construir um mausoléu ao lado do Palácio da Abolição. A ideia do obelisco, porém, se manteve.
Em 1974, dois anos despois dos restos mortais de Castelo serem trazidos ao Ceará, e depositados no mausoléu, nada havia sido feito.
Em 1975, o governador César Cals e o prefeito Vicente Fialho sobrevoaram o local e decidiram que seria feito um bosque com nome do ex-presidente, preservando a mata da região. Nada feito. Somente 1983, o marco foi colocado, apresentado como uma semente de um Parque Florestal, onde também seria erguido um monumento maior, de autoria do engenheiro Francisco de Carvalho Martins. Mas a ideia foi, novamente, esquecida.
Saiba mais
O “avião de Castelo” pode ser visto no pátio externo do quartel do 23º Batalhão de Caçadores, no Bairro de Fátima, na esquina entre as avenidas 13 de Maio e dos Expedicionários.
Já uma reprodução do jato TF-33 está exposta frente à Base Aérea de Fortaleza, na avenida Borges de Melo, 205, no bairro Aeroporto.
Quando a morte de Castelo foi confirmada, rádios pelo País tocavam músicas clássicas e fúnebres, intercaladas por notas oficiais em sinal de pesar.
A equipe doO POVO foi a primeira a chegar ao local do acidente. O caminho, das proximidades da avenida Perimetral até o local da queda, era de cerca de 8 km mata a dentro, em terreno pantanoso. Oficiais e praças abriram caminho com facões.
Testemunhas contaram que Castelo foi retirado ainda com vida dos destroços, mas não resistiu. O laudo cadavérico apontou que ele teve três fraturas na perna direita e sofreu violenta pancada na região lombar, comprimindo seus pulmões.
O corpo de Castelo foi transportado num jipe onde também estavam: o governador Plácido Castelo; o comandante da 10ª Região, general Dilermando Monteiro, o vice-governador, Humberto Ellery, e o coronel Libório. Eles aguardavam no aeroporto e foram ao local após serem informados da queda por um oficial.
Memória em imagens
CASTELO BRANCO
Monumento em homenagem a Castelo Branco próximo a Leste-Oeste, na antiga Praia Formosa, do lado onde hoje fica o hotel Marina Park. (Fotos: Aurélio Alves/ Especial para O POVO)
Local que caiu o avião do Castelo Branco há 50 anos, onde hoje está sendo construído uma barragem.