Retornamos à expectativa, aonde a água ainda não apontou. O leito imaginário, desenhado, embora não encharcado. O lado de cá de nossa estiagem permanente. Tardamento, inquietação, esperar para crer. Na outra ponta, ainda deste mesmo Nordeste de chuva que não chora tanto, a presença confirmada. O rio desce. Verídico, crível, acontecendo, de molhar mãos e pés e sorrisos, e roças e previsões. Mais para lá do semiárido, Paraíba e Pernambuco, o São Francisco é irreversível, contínuo, manso e correnteza. Como em breve se imagina e que será urgente no Ceará.
O POVO voltou ao projeto da transposição, nos seus dois caminhos: o Eixo Norte, onde o rio é a espera, a demora, as obras só agora sendo retomadas após uma paralisação de um ano dos serviços; e o Eixo Leste, que escoa, abastece, rega canais e a realidade, além de perenizar o rio Paraíba - antes só vivente nos invernos sertanejos.
O repórter especial Cláudio Ribeiro, o repórter fotográfico Mateus Dantas e o motorista Leandro Costa viajaram 3 mil quilômetros, durante duas semanas de julho passado. Sempre com o céu nublado, apenas respingos. Já não era o tempo mais de chover da região. Mas é o céu que ameniza as perdas no estio e que sombreia e esfria água.
O São Francisco transposto, neste momento ao custo de R$ 11 bilhões, precisa de ajustes. O Governo Federal, frágil politicamente, admite que preferiu acelerar o caminho do rio para depois dar os acabamentos. Fez assim no Eixo Leste, para levar o quanto antes o socorro para Campina Grande, faz o mesmo no Eixo Norte, para salvar Fortaleza da agonia hídrica. Reservas mínimas, há um segundo semestre inteiro de sol quente e evaporação.
O rio, santo e milagreiro, já não é tão forte. Debilitado, salva e pede ajuda ao mesmo tempo. Seca em seu leito natural. A transposição é uma ideia antiga, dos tempos do Império. Tornou-se possível. Quase dez anos de execução - o dobro do tempo previsto. Ficou mais cara quase o triplo do primeiro combinado. São Francisco pena em nome do milagre de atender ao que nem era seu sertão de obrigação.
São Francisco e a peleja da água
A transposição do São Francisco é contada no O POVO, em grandes reportagens etnográficas, desde quando as intenções eram só papel. Travessia do rio de nascente a foz, ver até onde resistiria. Desenhos de futuros canais para o Velho Chico se confirmando. Outros Nordestes precisando dele. Até que o céu esquenta numa grande estiagem, a maior de quase um século. Chuvas que não encheram rios nem barragens. O planeta virou seca. Bateu a peleja por água. Na marca centenária de um grande romance cearense: Os Quinzes. Obras da transposição a caminho, apesar de crises políticas e econômicas. Até peixes já sem água. Mas qualquer pingo do céu desfaz saudade de inverno. O afeto sertanejo não desagradece. Peleja sempre haverá.
Projeto gráfico: Do barro ao concreto, uma leitura visual
Por Gil Dicelli
A cada especial, o desafio e o prazer de dar feição ao conteúdo. A identidade visual de mais este suplemento da série A Peleja da Água é moldada no barro, rastro simbólico do rio que chega às terras devastadas pela estiagem. Esse encontro delineia vidas, santos, bichos, imagens.
Memória ancestral de onde viemos e pra onde vamos, em meio ao aparato do concreto e da tecnologia de uma mega-obra dessa natureza. Nesse cenário, convidei o artista plástico Carlus Campos para dar vida às esculturas deste suplemento. Paredes laterais em argila guiam o fluxo do conteúdo das páginas, orientam a navegação e registram, através dos desenhos no barro, as várias narrativas. A tipografia vernacular, em títulos e detalhes, dialoga e referencia um povo. Colunas de textos têm desenhos inspirados no canal que contorna chãos e traz a água. É a nossa tradução.
GIL DICELLI é editor-executivo do Núcleo de Imagem
Webdoc: A reinvenção da carranca
Por Emerson Maranhão
O webdoc que integra este projeto especial pega a estrada e nela segue encantado com a paisagem. Ou as paisagens, para ser preciso. Tanto a geográfica, rodovia após rodovia, quanto a humana. Em ambas, sobressaem-se as modificações que as águas do Velho Chico anunciam, impõem, frustram ou alimentam. Tanto uma quanto a outra enchem nossa tela para nela escorrer suas narrativas. Rotas alteradas pelo novo trajeto, ainda em processo. Assim com a carranca, ícone máximo do rio São Francisco, rompe com a miudez do barro que lhe dá forma e se reinventa numa outra natureza.
ÉMERSON MARANHÃO é editor de conteúdo do Núcleo Audiovisual
Dois rios na palma da mão
Por Cláudio Ribeiro (textos)Por Mateus Dantas (fotos)Por Carlus Campos (esculturas)
E de que serve um rio sem água? Janeiro de 2017, o rio Paraíba ‘na pedra’, só cascalho. Um leito seco de paisagem ao lado das terras de José Casimiro da Costa, o Seu Deda, em São Domingos do Cariri (PB). Cenário de secura não mudou muito desde menino, quando acompanhava o pai no plantio no cercado do Sítio Melo. Não mais que três meses no ano, épocas de chuva, deixava de ver o fundo do rio. Água nunca havia sido fartura.
Agosto batendo, seu Deda é que cuida do chão herdado, junto com a mulher e os três filhos. Aos olhos dele agora está o que seria miragem tempos atrás. “Marminino”, solta instintivamente, ao responder se cogitassem daquela água toda à sua frente fora do tempo de chover. Agora aos 69 de idade, do que era improvável, tem não apenas um, mas dois rios cabendo nas mãos. O leito do Paraíba está sendo aguado pelo rio São Francisco, a partir do projeto da transposição.
Seu Deda nem sabe por onde os canais se estendem. O final do canal do Eixo Leste, da água que chega ali, é em Monteiro (PB). “Sei que o rio vem de longe” – a nascente é em Minas Gerais. Não imagina a quantas cifras e adversidades tem saído a conta: R$ 11 bilhões, nove anos de execução, desvios, três presidentes da República, prazos esticados, redesenhos, custos alterados... Uma empreiteira, a Mendes Jr, abandonou o canteiro de obras após ser apontada nas denúncias da Operação Lava Jato e considerada inidônea para participar de licitações públicas.
Esse imbróglio todo, Seu Deda foi acompanhando de longe. Mas nem é por esse rosário de histórias que o agricultor se motiva. Nem assunta muito sobre as questões políticas da transposição – embora critique o momento político e elogie os que iniciaram a obra de fato. A sabedoria de seu Deda se vale da simplicidade: o novo Paraíba está ali, farto e ao seu alcance.
É o que lhe basta. Deslumbramento. Sensação boa a da água nos pés, sem ter mais o chão esturricado. Ele tira as botas e se lava. A água ali é mais fácil de entender e explicar. “Apareceu até mais passarinho. Os bicho tão achando é bom”, descreve da alegria de um bando de galos-de-campina em revoada, pousando ao lado de nós na cerca. Cantarolam e sacodem as penas molhadas. Deu para ver sabiás, corrupiões, sanhaçu, cancões em pares, canários, garças.
Inté que veio
Já parece ser um verde novo no lugar – descreve, do seu jeito, noutros dizeres. “Tá mais bonito”. Mas não é mais só um esverdeamento na caatinga. É diferente. “Olhe, isso foi uma riqueza pra gente. Graças a Deus. Chovia, mas não era chuva de fazer água. Desde que me entendia de gente que o povo falava nele, no São Francisco. De trazer essa água pra’qui. Inté que veio. É vida pra todo mundo. Depois que a água chegou, mudou, viu? Tudo”.
E a fala vai contando da nova rotina, sem firular. Até abril, pagava carrada de pipa para abastecer sua casa. Agora está bombeando do rio para ‘fazer chover’ em seu plantio. Tem quatro bicos aspersores ligados quatro horas por dia. Por enquanto, regando ‘ração’. Que é como chama o capim plantado que vai dar para seu gado hoje muito pouco.
Criava reses, mas teve que ir se desfazendo. Vendeu quase todas para não vê-las definhar na estiagem. Não morrem mais de fome. Também pretende usar o gotejamento para germinar a maniva da macaxeira, o jerimum rastejar, feijão, milho, maracujá... Quer encher os cinco hectares de roça. E colher em três meses.
Nem todos estão autorizados a já captar a água do São Francisco dentro do Paraíba. Seu Deda diz que já pode. Poucas semanas antes da conversa com O POVO, ‘gente do governo’ foi até ele, o incluiu num cadastramento com outros que seriam liberados a iniciar suas irrigações particulares. “Aí ouvi na rádio que já podia ligar (a bomba d’água) pra irrigar. E tô molhando meu capim devagarim, todo dia. Enquanto eles liberarem”. Difícil a tentação de ter a água passando em frente e não poder captar.
O São Francisco tem mudado mais coisa naquele pedaço do Cariri paraibano, além do rio Paraíba e da crença de Seu Deda. Em Caraúbas (PB), vizinha a São Domingos do Cariri, a cachoeira de Cangati voltou a ser o espetáculo local. Permanente. A água corrente, forte, larga. Barulho de rio cheio. O estudante Diego Amorim arrisca jogar tarrafa. Pegando piaba. Carlos Eduardo Santos, também estudante, se estica numa bacia de pedras. Apenas para tomar banho. Desfrutar de um Paraíba – que também é São Francisco - mais abundante que o da infância de Seu Deda.
Entre orar, desfrutar e vigiar
Em Monteiro (PB), a água do São Francisco está corrente no canal da transposição. Cerca de 3 mil litros por segundo (3 m³/s). Já foi mais do dobro disso (7,8 m³/s), no início operacional do projeto. Poderia estar entre 9 m³/s ou até 12 m³/s, como eram previstos. Oficialmente, o período atual ainda é de testes. Em 10 de março deste ano, o presidente Michel Temer (PMDB) levou foguetório e aliados para o ato inaugural na cidade. Abriu as comportas e ‘liberou’ formalmente a água para o restante do sertão.
Os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff (PT) também estiveram em Monteiro, nove dias após Temer, e fizeram o que chamaram de ‘inauguração popular’. Organizaram um ato político no desemboque do canal, que joga a água do São Francisco no leito do rio Paraíba. Quiseram demarcar a paternidade da obra. No placar local, o comentário é de que foram mais bem recebidos que o atual do Palácio do Planalto.
Apesar de oficializada para a passagem da água, a estrutura segue sob reparos em Monteiro. A situação, aliás, de ter a operação já funcionando mesmo com a construção por terminar, foi decisão assumida pelo Governo Federal. Foi assim no Eixo Leste, será feito o mesmo no Eixo Norte, que atenderá o Ceará, para acelerar a chegada do rio.
Mesmo com pendências. Essa estratégia de antecipação é confirmada pelo secretário nacional da Infraestrutura Hídrica, Antônio de Pádua de Deus. Houve pressão política, além da própria necessidade, para o abastecimento de Campina Grande (PB) - semelhante ao que está sendo acelerado no Eixo Norte, por causa do risco hídrico para Fortaleza. Nisso, vão surgindo incômodos e, trocadilhos à parte, as temeridades.
Na comunidade Mulungu, por exemplo, exatamente de onde o presidente acionou as comportas, os ‘pequenos problemas’ vão se mostrando. Há pontos de erosão, de tamanhos relevantes, na parede de enrocamento, que é feita de pedras jateadas com cimento. Deveria ser justamente para a proteção do canal. Uma algarobeira, planta que dá alimento e sombra a animais no sertão nordestino, cresce altiva em cima da própria barreira. Se não for contida, poderá causar novo deslizamento.
Há fissuras em estruturas de concreto. No dia que O POVO esteve no local, final de julho, havia operários refazendo pontos erodidos e manuseando sustentações de ferro armado. Também trabalhavam num canal de drenagem e numa ponte. A tomada d’água, pequena obra prevista para atender moradores da mesma comunidade Mulungu e vizinhança, ainda não está construída. Está prevista para daqui a dois anos.
Mesmo com o São Francisco canalizado ao lado, os 32 mil moradores de Monteiro ainda estão forçados a racionamento. Água nas torneiras por apenas três dias da semana. O açude local, o Poções, em quatro meses de volume renovado, saltou de 0,8% (março) para 6% (junho, último registro divulgado) da capacidade. À época dessa primeira água do São Francisco chegar ao Poções, o volume do reservatório só resistiria por mais um mês. Está reabastecido, mas tecnicamente segue no volume morto. Há quem já se anime, obviamente, como pescadores, banhistas e visitantes do ponto de encontro dos dois rios, a nova atração turística local.
Outros preferem seguir vigilantes com a situação. O Ministério Público Federal, em meados de julho, ainda tentava informações oficiais sobre qual vazão, de fato, tem sido liberada no trecho de Monteiro. O fim do racionamento, previsto para agosto, já foi até adiado. Sem data anunciada.
Motor em conserto
Os reparos e ajustes na transposição têm exigido a vazão reduzida, segundo declarações do presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba (Aesa), João Fernandes. “Não foi redução por pane, mas, sim, por manutenção necessária”. Coincidentemente, no dia 21 de julho último, por volta das 15 horas, O POVO acompanhou testes com o segundo motor da EBV-1, a primeira estação de bombeamento do Eixo Leste, localizada em Floresta (PE). Havia sido religado ao meio-dia, estava parado desde 2 de junho.
Para a reativação do motor em testes, os técnicos buscaram uma peça trazida da EBV-3. É chamada de atuador e permite o funcionamento da válvula, que controla justamente a vazão. Na captação, feita do reservatório Itaparica, ao lado, a mesa operacional exibia 8 m³/s de vazão com os dois motores. Deveria estar o dobro naquele momento. As avaliações continuariam.
Da providência do rio santo, vale o dito: orai, desfrutai, vigiai. O vereador Cajó Menezes (PSDB), de Monteiro, não deixa de exaltar a chegada do São Francisco ao território paraibano. “Tínhamos esse sonho grande de ver a água passando por aqui”. Chuva pouca, de 300 a 400 mm/ano de média no Estado, não fosse o céu e não teriam mais de onde tirar. Curiosidade: no mesmo dia que a água transposta começou a apontar em Monteiro, um chuvoeiro de 120 mm.
Sobre a obra, Cajó prefere continuar diligente ao que ainda virá, de bom ou não. Há, por exemplo, ribeirinhos agora ‘ilhados’. Porque o canal lhes tomou o que antes eram acessos escolas, postos de saúde, moradias. “Há mais ou menos 200 famílias nessa situação”, diz o vereador, mencionando distritos entre Monteiro e a vizinha Camalaú. A reivindicação havia sido pauta de reunião no dia anterior com a diretoria da Aesa - que indicou levar a demanda para o governo federal. A expectativa também é saber quando a água será liberada para pequenas irrigações - cenário ainda não totalmente definido.
Deixa o rio desaguar
O forró, de mais de duas décadas, é de autoria do sergipano Aracílio Araújo. O intérprete e sanfoneiro Flávio José, paraibano de Monteiro, gravou Deixa o rio desaguar em 2000. Os versos são da época de FHC presidente, mas trazem descrição precisa da atualidade: “O São Francisco com sua transposição/ No meu Nordeste o progresso vai chegar/ Se é que o Brasil agora está na mão certa/ Na contramão o meu sertão não vai ficar...”.
A letra também cita a secura do Jaguaribe e do Castanhão. Do projeto, Flávio José diz querer saber “quando vão definir o uso dessa água pela zona rural. O agricultor vendo o São Francisco passar e não poder usar. A esperança é que esclareçam, para as pessoas poderem trabalhar”.
Tempo de guardar
A data para o fim do racionamento em Campina Grande estava marcada. Deveria ter sido no último sábado, 26 de agosto. Porém, o Ministério Público local preferiu desconfiar que a água vinda do São Francisco não estaria armazenada em quantidade suficiente. E foi apresentada ação civil pública cobrando explicações. Com a chegada da água à região, o segundo maior município paraibano, de 400 mil habitantes, já pode se dar o luxo de parar de poupar água?
A partir do questionamento jurídico, feito à Companhia de Água e Esgoto da Paraíba (Cagepa), o fornecimento parcial foi mantido: metade da cidade com água nas noites de domingo até quarta-feira; a outra metade, das madrugadas de quinta às manhãs de domingo. Ainda é tempo de guardar. Mas a empresa ainda avalia até quando segurar a distribuição.
A escala de abastecimento em Campina Grande foi iniciada desde 6 de dezembro de 2014. Chegou a ser pior: eram cinco dias da semana sem nada nas torneiras. À época, o açude Boqueirão, que abastece a cidade, acumulava 22% de volume. Já preocupava.
Agravou-se ao ponto de ter somente 2,9% em 18 de abril deste ano. Eram 11 milhões de metros cúbicos (m³), quase seco. Foi o dia que a vazão da transposição entrou no reservatório. Teriam sido apenas mais três meses de abastecimento. Por dia, quando não estava sob racionamento, Campina Grande consumia 1.300 litros/segundo (l/s). Com fornecimento limitado, caiu para 950 l/s.
Com a crise hídrica amenizada pelo Velho Chico, a régua do Boqueirão marcou 8,1% no último dia 16. Medição ainda considerada volume morto - quando o traço não passa de 8,2%. Para o MP paraibano, apesar do aporte significativo nestes quatro meses e meio, poderia haver mais água na barragem e o risco continua iminente.
As preces
A vazão recebida tem sido de 3, 5 mil litros por segundo (m³/s) - expectativa era de 7 m³/s. Até a primeira quinzena de agosto, o Boqueirão somava 33 milhões m³, dos 411 milhões m³ de capacidade. “Sem a transposição, o abastecimento em Campina Grande não teria tido opção”, admite Ronaldo Menezes, gerente da Cagepa na Regional Borborema. A cidade é a maior no caminho do Eixo Leste do projeto.
A solução pela chuva, sempre incerta, mais uma vez não viria. O rio Paraíba também morrendo de sede. São Francisco não faltou às preces. “A partir de agora, o desafio é saber como usar melhor essa água (do São Francisco) de modo racional”, reforça Menezes. Campina Grande tem 140 mil ligações prediais e pelo menos duas grandes indústrias como consumidoras locais: a Coteminas (têxtil) e a Alpargatas (calçados). O rio está provendo Campina Grande e mais 31 cidades. A região mais agoniada, com quase nada de reserva disponível, é a do Brejo. Entre os municípios estão Lagoa Seca, Pocinhos, São Sebastião de Lagoa da Roça, Lagoa Nova e Matinhas.
Valdemiro Carolino, gerente adjunto da Cagepa na Regional Borborema, tem 66 anos e trabalha há 42 na empresa. Atuou como responsável pelo controle operacional da água disponível no período mais crítico. “Era como uma operação de guerra, a gente não sabia se sairia vivo ou morto. Confesso que nunca acreditei que o São Francisco chegasse aqui”.
A tensão foi “uma boa lição para todos, sobre o respeito à água”, acredita Valdemiro. Ele diz que a empresa tem se preocupado, “como dever de casa”, em cercar as distorções e irregularidades. “Estamos tentando reduzir perdas com micros e macromedições, controle de vazamentos, fiscalizando pontos de água cortada e de qualquer água usada indevidamente”.
Na régua
Boqueirão, oficialmente denominado de açude Epitácio Pessoa, completou 60 anos em 2017. Pertence ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Desde janeiro, quando aniversariou, está passando por obras de modernização e recuperação, numa lista de barragens antigas que se encherão das águas do São Francisco. “Conserto de açude era sempre com água. Hoje é no seco”, diz Severino de Normandia, 61 anos, o Nanan, servidor do Dnocs há 32.
Ele já trabalhou em grandes reservatórios do Ceará, como o Banabuiú, Orós e Pentecoste. Nanan faz diariamente a leitura das réguas que marcam o volume acumulado no Boqueirão. Aponta quanto chega pela transposição. “Numa situação que temos aqui, não há inverno suficiente na região para pegar mais volume e vem essa água da transposição, pra mim já é tudo. O São Francisco, apesar do nível muito baixo, está conseguindo atender nossa demanda. Pra mim, já está acima da expectativa. Essa água da transposição é um rio perene, contínuo. Só tem a crescer, o volume só vai aumentar”, afirma.
Água de cartão postal
Campina Grande cresceu. Já cantou o conterrâneo Jackson do Pandeiro: "Alô, alô, minha Campina Grande/Quem te viu e quem te vê/ Não te conhece mais...". Antes de torres comerciais de até 40 andares, avenidas largas e congestionamentos, foi o pequeno Açude Velho, de 440 m³, que segurou o abastecimento. Por 120 anos, entre 1830 e 1950. Virou cartão postal no Centro da cidade. Todo dia, a limpeza de lixo e plantas no espelho d’água é feita por Roçado e o filho Roçadinho - Antônio Alves, 52, e o filho Edigley Alves, 27. A água é usada para regar praças. À margem está o Museu de Arte Popular da Paraíba, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
Hora de tirar o atraso
Barreiras que já esburacavam o solo e desenham o fundo do canal estão destruídas. São grandes erosões na extensão da parede. A chuva desfez tudo. Criou poças de água suja, de pouca serventia. A lama também escorreu e formou entulhos. As marcações anteriores, das medições executadas pela construtora Mendes Júnior, precisarão ser refeitas. Muito retrabalho pela frente.
A antiga empreiteira largou o serviço após ser denunciada judicialmente, dentro das investigações da Operação Lava Jato. Foi considerada inidônea. E a obra abandonada - junho/2016 a julho/2017. O matagal enraiza e também ajuda a desmanchar. Diante do que se vê ao redor, será preciso correr para tirar tanto atraso e cumprir o cronograma. Ainda é assim que está um trecho significativo do caminho da transposição entre Salgueiro (PE) e Penaforte (CE), já chegando a Jati (CE).
No momento, é o cenário mais atrasado do projeto. Está dentro da chamada Meta 1N, a primeira etapa de obras do Eixo Norte - tem 140 km e sai de Cabrobó (PE), passa por Terranova (PE), Salgueiro, Verdejante (PE), até Penaforte. Segundo o Ministério da Integração Nacional, a execução deste trecho chegou a 92,47%. É o ponto em que o rio São Francisco alcançará o Ceará. Ou por onde deveria estar escoando. Pelo menos desde julho último os serviços começaram a ser retomados.
A desolação já dá lugar a uma rotina renovada. Nova montagem de canteiros, convocação de mão de obra, ajuntamento de material, máquinas voltando a circular nas estradas de terra batida. Apontar o que precisarão reconstruir. Poeiral outra vez subindo ao lado dos roçados. O barulho de caçambas está de volta.
O consórcio Emsa-Siton foi o vencedor da licitação aberta pelo Governo Federal para concluir as pendências deixadas pela Mendes Júnior. “O valor da proposta renegociada pelo Ministério da Integração Nacional com o consórcio para a execução das obras foi de R$ 516.873.208,24”, informou o site da pasta, no início de abril, quando confirmaram o desfecho da concorrência.
Venceu o Emsa-Siton, apesar de outros dois consórcios terem apresentado preços até R$ 76 milhões menores na disputa. Foram desclassificados por critérios técnicos. Houve questionamento jurídico das empresas, por isso os serviços da transposição só puderam ser reiniciados no mês passado.
Mão de Obra Local
E outros imbróglios vão surgindo. No último dia 21 de agosto, um grupo de trabalhadores desempregados de Penaforte realizou protestos em um trecho da obra, na comunidade Areias. Eles reclamaram que a mão de obra local não está sendo aproveitada nas recontratações da transposição.
“Muita gente de fora está vindo para nossa cidade e conseguindo emprego facilmente. Penaforte tem muita gente qualificada para essas vagas”, afirma Carlinhos Miné, 44, que é motorista e um dos representantes do movimento. Os manifestantes chegaram a impedir o tráfego de tratores e caminhões.
A grita foi apaziguada quando um gerente da Emsa recebeu o grupo. Ficou acertado que o consórcio iniciará novas admissões a partir de setembro. Priorizando os que morem por perto. Uma legislação municipal, aprovada em junho na Câmara de Vereadores e que aguarda sanção do prefeito Francisco Agabio, reivindica que pelo menos 70% dos contratados para as obras sejam locais.
Carlinhos Miné, que deu a sugestão do projeto de lei, conta que trabalhou à época da Mendes Júnior e que já naquele tempo os de fora tiveram preferência. “Nossa cidade é pequena, mas se vê a diferença com a retomada das obras. É bom para a economia local, tem que ser bom para a população”, diz. O Ministério informa que ainda há cerca de dois mil trabalhadores atuando nos dois Eixos.
Finalizada a Meta 1N, será por esse mesmo trecho que começará a descer o socorro hídrico para Fortaleza. O rio fará uma curva em Jati para encher o Cinturão das Águas do Ceará e rumar para a Capital. Nas declarações do secretário estadual dos Recursos Hídricos, Francisco Teixeira, a Região Metropolitana de Fortaleza poderá colapsar até o primeiro semestre de 2018, se isso não acontecer. Uma recarga da chuva pode estender a reserva um pouco mais. O projeto da transposição está se prometendo, no apalavrado do Governo Federal, até o início de 2018. O tempo agora é de tirar o atraso. Ou São Francisco continuará na demora de chegar.
Fila por vagas
Cícero Cornélio (à esquerda na foto), 55, carpinteiro, está desempregado há um ano. De 2008 a 2016, trabalhou entre canteiros da ferrovia Transnordestina e da transposição do São Francisco. É de Jati, mas circulou em frentes de serviço de Penaforte, Missão Velha, distrito de Ingazeiras em Aurora - todas do Ceará - enquanto esteve contratado. Saiu quando a Mendes Júnior abandonou o projeto.
Bate agora no portão do novo consórcio responsável, tentando qualquer sorte. Mas igual a ele estavam Clisvaldo de Souza, topógrafo, 63; José Oliveira, 35, encarregado; João Batista da Silva, 34, serviços gerais...Havia uns 40 no dia em que O POVO esteve no local. Salário médio de R$ 1.300 a R$ 1.500. Oito horas por dia de trabalho. Ali, entre eles, nenhuma garantia de que o emprego daria certo.
Enquanto o rio não chega
Por enquanto, seu Zilvan Francisco da Silva, 50, vai cuidando do seu traçado de pomar. Usa o que tem: água encanada mesmo. Não é pouca coisa, em tempo de chuva rareando, mas já queria que fosse a irrigação. O São Francisco, de tanto atraso com a obra da transposição, ainda não chegou no seu terreiro, na Vila Produtiva Rural (VPR) de Retiro, em Penaforte, no Ceará. Culpa dos homens, não do santo.
Seu Zilvan pega um balde para molhar cada muda. Dia sim, dia não. As plantas são pequenas, algumas de menos de um ano, mas já vingam em fileira e prometem sombra e muitos frutos: mamoeiros, mangueiras, gravioleiras, coqueiros, cajueiros, bananeiras, pés de maracujá, de quiabo, acerola, tangerina, goiabeiras, laranjeiras e até pé de canela. A mão é boa, habilidosa, a terra é fértil. Há um jardim na frente da casa, florado, grama verde. Sua mulher, dona Edileuza, 49, e a filha Nádia, 24, também cuidam. Podia estar melhor, mas não lembram de se maldizer.
Neste agosto completou dois anos que se mudaram para a Vila de Retiro. A casa de taipa, de um sitiozinho pequeno no distrito Atalho, em Brejo Santo, foi desapropriada para dar lugar a um dos reservatórios no caminho da transposição. Há mais 30 famílias na Vila Retiro. Ganharam a casa, um roçado de cinco hectares cada, com a promessa de água para irrigar um pedaço dessa terra tão logo o São Francisco desponte.
“Tô doido é que isso chegue logo, pra nós trabaiá”, vislumbra Zilvan. Mas segue a espera. Com pouca chuva e sem o rio santificado ainda presente em território cearense, já foram dois plantios perdidos em Retiro. Ou ralos, colheita pouca. Seu Zilvan tirou de sua roça meia saca de feijão e dez de milho. Dá só para guardar e esperar a outra friagem, para plantar de novo.
A custada da água
Com água para irrigar, estima que teria mais do dobro de milho e muito mais de feijão - o que daria também para comer, vender na feira. Por isso sonha com outras plantas, vai regando o pomar de pouquinho. Ganhando tempo enquanto São Francisco não chega. “Acho que vai dar uma custadinha pra essa água chegar. Estão fazendo o canal ainda aí perto”, conta, da demora e das obras recém-retomadas em Penaforte e Jati, no Eixo Norte. “Tô pensando que daqui pra um ano é que ela (a água) chega”. Tomara menos. Previam que as obras acabariam em 2012. Já se vão nove anos desde que os serviços da transposição foram iniciados.
O presidente da Associação de Moradores da Vila Produtiva Retiro, Antônio Taveira, confirma duas safras já perdidas, nesses dois anos em que estão reassentados nas terras trocadas pelo Governo Federal. “Não teve como tirar legume nesse tempo. Enquanto não vier água para os lotes irrigados, a gente não pode trabalhar com plantio grande, nossa agricultura não vai se firmar. Por isso o plantio caseiro ainda está se aguando com água que é para abastecimento humano”, descreve. Cada família segue recebendo pouco menos de R$ 1.500 de ajuda de custo, para compensar a impossibilidade da irrigação anunciada.
Nos dois eixos do projeto, já foram entregues 18 VPRs, segundo o Ministério da Integração Nacional. Para cerca de 850 famílias (99 no Eixo Leste e 746 no Norte) entre Ceará, Pernambuco e Paraíba. As casas têm, em média, área de 99 m². Desenho igual de três quartos, água, esgoto, energia elétrica, o lote de morar e outros quatro para plantar.
Sobre o documento da terra, Taveira diz que todos ali ainda estão com papéis provisórios. Que lhes permitem o direito de trabalhar, usar o cercado, mas ainda não é o título de posse dos cinco hectares. O posto de saúde tem funcionado em Retiro, a escolinha nem abriu. “A Secretaria da Educação diz que não tem demanda e por isso está desativado. Apesar de tudo bem estruturado”, informa o presidente da associação de moradores. As crianças têm frequentado uma escolinha mais distante, nem tanto, mas poderia ser a da Vila.
Um ano e quatro meses atrás, em abril de 2016, quando O POVO visitou seu Zilvan e dona Edileuza, já habituados à Vila Retiro, mostravam-se felizes com a nova morada. Mais pela perspectiva que lhes apontava. De chão bom e água prometida. Haviam até comprado móveis novos para a casa. Contam agora é da “fulô do feijão que não saiu porque não teve chuva”, aí perderam a safra. Reclamam do vizinho “que inventou de queimar a lenha (o mato arrancado ao limpar o roçado) e tacou fogo foi na metade do cercado dos outros”, acham que vão “precisar cavar logo um poço, mas é muito caro”. Resignados, pelejam e esperam.
Molhar até onde der
É um rio que já foi tanto, bem menor o de hoje porque seca seguidamente de tão pouca chuva, vai descendo agora também para outros nordestes. Enche o rio Paraíba até Campina Grande, é esperado antes de Fortaleza colapsar. Terá volume para todos? Os homens decidiram assim, o santo há de prover. Promessa feita de milagre alheio. Fim de tarde, o ondulado brilha de pôr de sol. Água dourada, o belo clichê de sempre de rio tocando o céu. Fachadas sombreando, escurecendo, noite... E o São Francisco indo. Até onde der.
Manhã seguinte, dia se criando em Belém do São Francisco (PE), agora silhueta de sol nascendo, desta vez é gente vindo. Das ilhas - são 88 na região. O rio baixou tanto que elas parecem mais, ou maiores. Era mais água, agora mais terra. Das voadeiras desembarcam velhos, novos, senhoras, crianças. Uma fila de canoas na margem.
Descarregam bananas, mangas, pimenta de cheiro, jerimum, malas, motos, galinhas, carneiros, cintos, cartões de banco. Para fazer negócios ou resolver as burocracias particulares, mesmo num sábado de feira. Enoque João da Silva, o Noca, 30, tem três ovelhas para negociar. “Qualquer R$ 100 tá bom”.
Osvaldo Jorge da Silva, o Vadim, 58, criado e mergulhado desde menino no São Francisco, tem uma roça na Ilha do Meio e sempre com muita coisa para vender. Frutas e verduras regadas pelo rio. “Também acho que essa água toda indo pra lá, pro Ceará de vocês, vai ajudar. Quando cai no mar é perdida. Vai dar vida a um bando de gente feito nós. O São Francisco vai secar é porque não tem chuva pra encher”, analisa Vadim. Enquanto a mulher, Rosilda, trinca o braço descarregando mais uma penca de banana graúda.
Entre os canais
População de 22 mil habitantes, Belém de São Francisco agora tambem é terra de faculdades para a região - Direito, Ciências Biológicas, Psicologia, Humanas, Exatas. Cotidiano acadêmico, mas é a vida ribeirinha que referencia. Foi cenário de novela global, Senhora do Destino. O mercado público, pescadores, turismo, casario antigo, bonecos gigantes tradicionais no Carnaval local. Na outra margem já se vê a Bahia.
No mapa, Belém está exatamente entre as duas captações da transposição, de onde saem os eixos Leste (Floresta-PE) e Norte (Cabrobó-PE). “Há três anos que essa água tem baixado muito”, diz Luiz Pereira dos Santos, 40, canoeiro, também agricultor da Ilha do Meio. Viver de peixe não dá segurança a mais ninguém. Pouco tucunaré, pirambeba, piau, curimatã. Será que a transposição seca o São Francisco? “Acho que não. É porque não está chovendo mesmo”. Mas tem gente vindo das roças das ilhas quase caminhando até a cidade, lembra seu Vadim.
Das cantorias antigas sobre o Chico Velho - de Caetano, Gonzagão, Bethânia, Geraldo Azevedo, Moraes e Alceu, Sá&Guarabyra, Flávio José, Xangai e Elomar ou Vital Farias e muitos mais - também virão versos novos. Outros que falem de Ceará, Paraíba, de terras potiguares, de pernambucos diferentes aonde não passava esse São Francisco. Talvez o rio mais debilitado que a qualquer música antes cantada. Dificilmente revitalizado e cheio, pelo que está posto. Esperando molhar até onde der... As carrancas talvez serão lendas.
Cara de karranca
O apelido, que “um engraçadinho” colega de trabalho antigo botou, ele pede que escreva com K. Luis Carlos Ribeiro Pires, 54, é conhecido em Floresta (PE) como Karranca.”Ele dizia que eu tinha cara de cavalo, que parecia uma carranca. Aquele cabra safado...Sou mais bonito”. Karranca garante que não guarda raiva. Um dia, quis se desfazer de uma carranca em casa. Consertava ventiladores e deu de fazer muito frio na cidade. “Achava que aquela carranca dava azar. Quando joguei fora, no lixo, ela caiu de pé, de frente pra mim”. Não quis mais a peça, mas passou a respeitar a figura lendária do São Francisco. E se assumiu Karranca.
Téta é do barro
José Viturino do Nascimento, o Tôta, tem 64 anos e há 50 vive do barro. Um dia, meninote em Tracunhaém (PE), em frente a uma olaria, pediu para trabalhar. Aprendeu a burnir (polir), moldar, tratar bem a argila. Nunca mais largou a artesania da terra molhada. Hoje, é um ceramista/escultor que maneja o barro com singularidade, precisão, delicadeza. “Faço de tudo do barro”. A mulher, Sebastiana, esculpe santos. Moram em Petrolândia (PE), à margem da barragem Itaparica, que guarda a água para a transposição. “O São Francisco representa sobrevivência para os que vivem ao redor dele. A transposição não vai beneficiar a mim, mas, pelo que vejo, vai secar o rio. Acho que a solução é viver e sofrer com a tristeza de ver o rio São Francisco se acabar”.
Reinações de Zé de Cila
Zé de Cila dá um filme inteiro. José Nunes de Araújo Neto, 71, é de Cabaceiras, a “Roliúde Nordestina”, no Cariri paraibano. A cidade foi cenário para mais de 30 filmes. Fica ao lado do rio Paraíba, hoje abastecido pelo São Francisco. O pai era Inácio, Cila era a mãe. “Hoje sou ator conhecido no Brasil e no mundo. É um apelido internacional”, diz Zé, todo garboso. A batina, que usa em entrevistas e quando posa com turistas, foi seu figurino como dublê do padre no filme O Auto da Compadecida (2000). Também o chamavam de Zé das Viúvas. “Namorei de dez a 15 viúvas”. É pai de Lindembergue, Rita Nikácia e Sthalyn Platini. Mora só. Sua loja, de produtos artesanais de couro de bode, está sempre aberta. E ele falando dos feitos na Cabaceiras.
Nova empresa fará gestão
O Governo Federal está reavaliando qual modelo adotará para gerir o projeto da transposição do rio São Francisco. Parece ainda não ter fechado questão se será mesmo a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Nesta entrevista, o secretário nacional da Infraestrutura Hídrica do Ministério da Integração Nacional, Antônio de Pádua de Deus, confirma uma licitação, em andamento, que mudará os rumos antes dados como definidos. A empresa a ser contratada, dentro de dois meses, deverá ser a nova gestora de todo o projeto. O secretário diz que a certeza se será mesmo a Codevasf ou uma PPP sairá “do andar de cima” do Governo Federal. “É uma decisão política”, afirma. Ele informa que o projeto, previsto inicialmente para R$ 6 bilhões, deve bater a casa dos R$ 11 bilhões.
Pelo cronograma, era para a água chegar a Jati, se não me engano, em abril. Mas antecipamos para janeiro
ANTÔNIO DE PÁDUA DE DEUS Secretário da Infraestrutura Hídrica do Ministério da Integração
O POVO - Quando o Eixo Norte deve ter as águas do São Francisco correndo em direção ao Ceará?
ANTÔNIO DE PÁDUA DE DEUS - Pelo cronograma, era para a água chegar a Jati, se não me engano, em abril. Mas antecipamos em Jati para janeiro. Vamos fazer a mesma metodologia que fizemos no Eixo Leste. Lá, priorizamos o caminho da água, para ela chegar a Monteiro(PB), depois fomos com obras complementares. Vamos botar a água em Jati, depois ela pega o Cinturão das Águas, para que se destine até o Castanhão e, consequentemente, à Região Metropolitana de Fortaleza. Entendemos que vamos chegar com a água em Jati até final de janeiro. Estamos orientando que, a partir de setembro, a obra comece a funcionar 24 horas com dois turnos. Queremos trabalhar sábado, domingo e feriado, impor um ritmo que atenda às necessidades, visando essa situação desesperadora que está Fortaleza. Há poucos dias conversei com o (secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Francisco) Teixeira. Ele me disse que a água dá até abril, no máximo maio. Depois começa a colapsar. Houve perda de tempo. Não só com a Mendes Jr, que era a empreiteira anterior, mas também com a licitação. Houve por parte do Governo Federal uma composição política. Fizemos defesa técnica junto à ministra Cármen Lúcia (presidente do Supremo Tribunal Federal). Havia um imbróglio e ela deu o parecer favorável à retomada das obras.
OP - Cortes no orçamento do Ministério, anunciados no valor de R$ 400 milhões, podem comprometer os recursos da obra?
PÁDUA - Tivemos a garantia do ministro Hélder Barbalho e do presidente da República que as obras da transposição não seriam atingidas. Foi cortado de algumas obras, mas as da transposição estão garantidas. No Eixo Leste, a obra não foi concluída ainda. Chegamos com a água, tiramos a área metropolitana de Campina Grande(PB) do colapso, vamos intensificar agora o Eixo Norte.
OP - Exatamente quanto há em caixa hoje para o projeto da transposição ser finalizado?
PÁDUA - Aproximadamente R$ 330 milhões. É o que está empenhado. Mas vamos ter ainda este ano duas janelas orçamentárias. Não precisamos ter todos os 500 e poucos milhões (R$ 516 milhões) empenhados agora. Dependendo do ritmo que a construtora atingir nas metas que estamos impondo – antecipar cronograma, acelerar obra, trabalhar 24 horas – aí teremos noção que se os R$ 300 milhões não derem para este ano, em outubro teremos janela orçamentária e se precisar de mais R$ 50 milhões, R$ 60 milhões, a gente bota. Porque não adianta botar empenho e a construtora não gastar isso este ano. Com relação à parte financeira, não haverá problemas.
OP - Quanto já foi gasto na obra da transposição?
PÁDUA - Considerando o que foi pago e o que falta, mais ou menos em torno de R$ 11 bilhões.
OP - Percorrendo a obra, vimos que no Eixo Norte, região de Penaforte e Jati(CE), há muito trabalho a ser refeito ou quase por iniciar, a partir do que foi abandonado pela Mendes Jr. E no Eixo Leste há trechos inaugurados, próximo a Monteiro(PB), e já apresentando problemas de erosão. Somados aos incidentes (arrombamentos na barragem e no canal) de Sertânia e Custódia(PE). Como é o controle de qualidade da obra?
PÁDUA - Esta obra está em andamento há nove anos. Existem trechos que foram feitos há nove anos, agora que a obra está em uso é que são detectados os problemas. Onde detectamos, a construtora que fez barragem que vazou, barramento que deu problema, foi aberto inquérito e ela vai responder judicialmente. Quem vai julgar não somos nós, há órgãos que avaliam e julgam. Quem fez coisa errada vai responder. Temos cerca de 200 engenheiros acompanhando. Onde estamos detectando problema, estamos resolvendo. Teve rotatividade de gerência muito grande, ficou paralisada muito tempo. Tem trecho que está com a terceira ou quarta empresas. É muito difícil de fazer essa gestão, mas onde a gente avalia que houve um problema, é aberto um processo administrativo e temos uma equipe que vai julgar e passar para TCU (Tribunal de Contas da União) e outros órgãos que vão cobrar de quem são as responsabilidades. Nosso foco é o de concluir a obra.
OP - Houve mudanças em relação a quem irá gerenciar o projeto, quando entrar em operação?
PÁDUA - Estamos com uma licitação na rua para contratar uma empresa para fazer a pré-operação. No máximo em 60 dias acreditamos que essa empresa estará com contrato assinado para que comece a receber as obras das construtoras, com nosso acompanhamento. Esta empresa fará a gestão dessas obras, não só do Eixo Leste, mas do futuro Eixo Norte, e vão fazer pré-operação, manutenção, as responsabilidades ambientais, segurança, a gestão como um todo da água, e enquanto o Governo Federal – porque é uma decisão do andar de cima, é decisão política – define se vai ser a Codevasf ou se será noutra modalidade, uma PPP (parceria público-privada). O BNDES está fazendo um estudo para saber qual a melhor modalidade para a gestão do São Francisco, o que ainda não está totalmente decidido.
OP - Então isso é um recuo do Governo Federal, porque a Codevasf foi anunciada como a gestora do projeto.
PÁDUA - Verdade, verdade. De repente, esta empresa poderá passar (a gestão) para a Codevasf no próximo ano. O que estamos reestudando com a PPP são os problemas de uma empresa pública na gestão de um empreendimento desse porte. As amarras que uma empresa pública tem para contratar, licitar, para ter orçamento não contingenciado, problemas que a gente começou a ver quando foi implantar realmente, aí passamos a pensar numa PPP. A gente não tem nada contra a Codevasf, mas você sabe que num quadro de comando daqueles tem placas caras, peças de bomba caras. Se uma bomba daquelas queimar o motor, como a Codevasf vai dar conta de comprar um motor sem a obra parar?
OP - O Dnocs, então, está fora do páreo?
PÁDUA - Acreditamos que sim.
OP - Qual é o custo anual para operar a transposição?
PÁDUA - De R$ 300 milhões a R$ 500 milhões por ano. É caro. É um projeto que precisa ter muita segurança e não é fácil a segurança dessa obra. A energia é muito cara, tem que ter o comprometimento ambiental muito significativo. O projeto exige mão de obra especializada para operar e fazer a manutenção preventiva. Não é qualquer profissional que faz manutenção nas bombas, no painel de controle, que faz a parametrização, a gestão de todo o sistema de automação. E você sabe da dificuldade da empresa pública em fazer uma gestão como essa. Hoje temos contratos, garantias dos fornecedores, mas até o início do próximo ano já começa a vencer a garantia dos fabricantes de quem compramos as bombas. É por isso que precisamos ter a tranquilidade de passar (a gestão) para uma empresa e ela passar para a PPP ou a Codevasf. É uma decisão mais ao futuro.
Ideias de um Novo Chico
O Governo Federal chama de Projeto Novo Chico a proposta de revitalizar o velho rio, cansado de tanto desaguar. O anunciado prevê a recuperação e proteção de nascentes, de matas ciliares, construção de bacias para capturar água de enxurradas. Em julho, foi divulgado que a Codevasf investirá R$ 65 milhões nos próximos dois anos na região de Minas Gerais. É onde o rio nasce - na Serra da Canastra - e segue por 2,8 mil km até o mar - na divisa entre Alagoas e Sergipe. Tudo para aumentar a segurança hídrica. Com múltiplos usos, principalmente os irregulares, o São Francisco tem penado até chegar ao Atlântico.
Outros R$ 7 bi para revitalizar Até o ano passado, falava-se até de R$ 30 bilhões a serem aplicados na recuperação do São Francisco. Fora os R$ 11 bi das obras. O secretário do Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração, Marlon Cambraia, diz que há R$ 7 bilhões num plano orçamentário específico para a revitalização até 2026. “Hoje o São Francisco está doente, embora nas condições atuais consiga garantir água aos nordestinos”, reforça. Por doente, descreve a margem de cidades sem saneamento - no leito original e no desenhado pela transposição -, matas ciliares destruídas, pesca reduzida. Reconhece que os recursos serão uma parte difícil da proposta.
Transpor o rio Tocantins No plano mais ousado do Novo Chico, há um esboço para que o rio Tocantins, vindo desde a região Norte, seja lançado dentro do São Francisco. Pelo projeto, o Tocantins “viajaria” por quase 740 km, percorrendo canais e leitos de outros rios. Ideia iniciada em 2001, na era FHC. O secretário da Infraestrutura Hídrica do Ministério da Integração, Antônio de Pádua de Deus, confirma que “há um estudo de viabilidade técnica em andamento”, de amparar o São Francisco. “Estamos pensando num plano B. Caso daqui a cinco ou dez anos tenhamos problema, já haverá estudo e projeto feito”. A Agência Nacional de Águas monitora o trabalho.
O santo das águas do Nordeste
O projeto de transposição das águas do São Francisco está 96,4% concluído nos 477 km de extensão ao longo dos eixos Norte e Leste. Ainda há 2,1 mil pessoas trabalhando nos trechos finais da obra, no eixo Norte, com cerca de mil máquinas operando
É a 2° maior cidade da Paraíba, com 400 mil habitantes.Estava prestes a entrar em colapso hídrico, antes da chegada das águas do São Francisco no açude Boqueirão. O racionamento, iniciado desde dezembro de 2014, continua. Mas agora em condições mais amenas: eram cinco dias de retenção de água por zona da cidade, agora baixou para três.
Cidade onde fica o reservatório que abastece Campina Grande. Carga de água na barragem estava em 7,3% no dia da visita do O POVO (18/julho), quando se completavam exatos três meses da chegada do Velho Chico é região. Ainda em situação de volume morto, embora em melhores condições. Em abril, havia somente 2,9% acumulados.
Conhecida como "Roliéde Nordestina". Já foi cenários de diversas produções cinematográficas, como "O Auto da Compadecida", "Madame Satã", "Cinema, Aspirinas e Urubus", "A Perseguição de Cristo", "Canta Maria", entre outros. Em junho, realiza a tradicional "Festa do Bode Rei", celebrando o animal que é a base da economia local. Embora não seja abastecida por ele, a cidade é situada na região próxima ao rio Paraíba, agora recarregado pelo rio São Francisco.
O rio Paraíba cruza a cidade, mas quase sempre estava seco %u2013 quase uma década de chuvas abaixo da média na região. Agora o Paraíba tem a proteção hídrica do São Francisco. Já há passagens molhadas cobertas e um novo verde no entorno, com grandes perspectivas para a agricultura local.
Cidade de 33 mil habitantes, é onde está a parte final dos canais no Eixo Leste da Transposição. No desemboque, as águas do São Francisco entram no leito do rio Paraíba. Inaugurado há poucos meses, o canal tem pontos visíveis de erosão. Operários constroem ponte para melhorar acesso das comunidades vizinhas. Trecho ainda aguarda instalação de equipamentos para controle de vazio.
Em fevereiro/2017, foi registrado um grande vazamento na parede de tomada d'água do reservatório Barreiro, construído pelo projeto da transposição. Bem ao lado da PE-280. Foi usado isolante gel para vedação, mas encercadeira feita de pedra continuou apresentando escape de água. Havia impasse, até julho, se precisariam contratar nova empresa para realizar conserto.
É onde fica situada a barragem de Itaparica. O reservatório é usado para produção de energia pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) para o Nordeste. Agora também fornecendo água para outras bacias hidrográficas da região, a partir do projeto da transposição.
A cidade, de pouco mais de 22 mil habitantes, vive do rio, mas também assumiu um perfil universitário, com diversos cursos renomados, como Direito, Psicologia, Turismo ou Letras. Aos sábados, os agricultores residentes nas ilhas do São Francisco - são 88 delas - comercializam frutas, verduras e animais que produzem e criam para o sustento. A novela global "Senhora do Destino" teve cenas rodadas no município. Geograficamente, fica exatamente entre os pontos de captação do Eixo Norte (Cabrobá) e Leste (Floresta).
É onde ficam duas das três estações de bombeamento do Eixo Norte (EBI 1 e 2). O açude Tucutu já tem água do São Francisco, sendo armazenada em testes operacionais desde 2016.
A cidade viveu um boom financeiro durante as obras da transposição. Hotéis tinham apartamentos locados quase integralmente para turmas de funcionários das empreiteiras. O canteiro da Ferrovia Transnordestina também é na região. O município é abastecido por água do Velho Chico, que chega por adutora. Apesar disso, o fornecimento nas torneiras para a população sofre racionamento .
É a cidade por onde a água chega ao Ceará, no Eixo Norte da transposição. A Construtora Mendes Jr abandonou os trabalhos no segundo semestre do ano passado, após ser citada nas denúncias da Lava Jato. Os trechos haviam sido iniciados, mas deverão ser praticamente refeitos por nova empreiteira. As chuvas causaram erosão em diversos pontos dos canais. Na região, operários aguardam chance de emprego nas novas frentes de trabalho.
Com a obra da barragem já praticamente finalizada, operários trabalham na conexão de tubulações que desviarão água a ser armazenada no local para o Cinturão das águas do Ceará %u2013 este sendo executado até Missão Velha.
Principal município da região Sul do Cariri, com 48 mil habitantes, terá quatro dos reservatórios do Eixo Norte. A economia local usufruiu da presença do contingente de operários nos canteiros de obras e deve continuar se beneficiando com a produção agrícola esperada a partir do curso das águas.
Possui 217 km. Percorre Pernambuco e Paraíba. Já está 100% concluído, segundo o Ministério da Integração Nacional. Mesmo liberando água, registra problemas: falha em um dos motores da primeira estação de bombeamento, arrombamento em canais e barragens e erosões no trecho final do canal.
Estende-se por 260 km. É por onde a água chegará ao Ceará. O início é em Cabrobá/PE. Está com 94,92% de execução, conforme registros do Governo Federal até abril/2017. A obra parou no segundo semestre de 2016. Desde o início de julho/2017, as obras vêm sendo retomadas %u2013 principalmente entre Salgueiro, Penaforte e Jati.
A equipe de reportagem visitou 16 cidades na Paraíba, em Pernambuco e no Ceará. Foram 3.100 quilômetros percorridos - entre eixos Leste e Norte da Transposição do São Francisco e obras do Cinturão das águas.