Editorial

Por Cinthia Medeiros
Paisagem longinqua. Óleo sobre tela, de 1956

É preciso olhar para a arte de Antônio Bandeira com olhos despretensiosos. Deixar-se levar por cores, formas, texturas e perceber-se envolto em sensações. Conhecer a história do homem por trás dessa criação torna esse encontro um tanto mais sedutor. Sim, a obra e a figura de Bandeira seduzem. Não à toa, ultrapassaram os limites de Fortaleza, produziram ecos no Brasil, alcançaram o mundo, que hoje o reconhece e reverencia.

Este caderno, uma homenagem ao artista na data que marca os 50 anos de sua morte, traz um apanhado de histórias que buscam reconstruir a trajetória de Antônio Bandeira, analisando o valor de sua obra e o que o tornou um ícone das artes plásticas mundo afora. Mas essas histórias descortinam, sobretudo, um homem apaixonado pela terra natal, por sua rede, sua família e seus amigos.

Ao longo das próximas páginas, refazemos percursos que se entrançam desde a fundição de Sabino Bandeira, onde o menino Antônio fez os primeiros rabiscos, às exposições nos salões europeus, e mostramos o papel determinante que o artista teve para o fortalecimento da arte no Ceará. Um caminho alinhavado por afetos, fogo, poesia e muita luz.

Webdoc

Este especial conta com um documentário que busca recontar uma parte importante da história de Antônio Bandeira por meio de imagens e depoimentos de familiares e amigos, que destacam o quanto o pintor amava a arte que fazia e, principalmente como sua terra natal o inspirava.

Artista fora da curva

Por Isabel Costa e Renato Aba (Textos)
Cidade queimada de sol (1959), uma das mais conhecidas telas de Bandeira

De pedaço de carvão à mão, o menino começou a rabiscar as paredes e a calçada da Fundição Santa Isabel, no Centro de Fortaleza. O pai, seu Sabino, não gostava muito da ideia de ver o filho gastando tempo com desenho: como os irmãos, Antônio deveria crescer e se dedicar à fabricação de peças metálicas. Mas depois do carvão veio a tinta guache, e Sabino se deu conta de que já estava na casa do sem jeito. Foi aí que o pai entregou o filho nas mãos de Dona Mundica, conhecida professora de artes da década de 1930 na Capital, cuja técnica utilizada era a cópia. Pronto. Daí não parou mais. Pintor, desenhista e gravador, Antônio Bandeira se tornou um dos artistas mais singulares das artes brasileiras.

Aquela fundição, com suas fagulhas e explosões, nunca saiu da cabeça do cearense. Assim como o flamboyant, árvore frondosa que encantava os olhos infantis de Bandeira. Esses dois elementos, o ferro fundido e a planta florida, são representativos da obra construída pelo artista ao longo dos seus 45 anos de vida, interrompidos repentinamente no dia 6 de outubro de 1967, por complicações durante uma cirurgia na garganta em um hospital parisiense. Entre o que a natureza dá e o que o homem faz com as próprias mãos, um mundo de cores e traços foi construído e agradou diferentes olhares.

“Ele dedicou a vida à pintura. Meu tio morreu muito novo, mas foi intensa a produção dele”, conta o sobrinho Francisco Bandeira, também artista plástico. Francisco aponta que Antônio vivia com veemência e afeto as cidades pode onde passava e que a obra do premiado pintor é reflexo direto do entorno. “Ele era um andarilho, vivia Paris, Rio, Fortaleza. Quando ele estava por aqui, adorava ir à Praia do Mucuripe, ia para o Mercado São Sebastião comer e beber. Ele aproveitava bem o sol daqui, sempre comentava da importância da luminosidade de Fortaleza para o seu trabalho, dizia que aqui tem uma luz diferente”.

Apesar de ter saído muito jovem da Capital, Bandeira movimentou a cena artística enquanto esteve aqui. Com apenas 19 anos, fundou, ao lado de artistas como Mário Baratta, o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), projeto que deu origem, dois anos depois, à Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap). Por aqui, encontrou apoio de amantes das artes que ajudaram o jovem a conseguir espaço, a exemplo do pintor suíço Jean-Pierre Chabloz (que se tornou um dos mentores de Bandeira ao incentivá-lo a ir à Europa) e Antônio Martins Filho, então reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Não dá mais para pensar o Bandeira encerrado em si mesmo. Pensar o artista é pensar ele na sua rede de relações sociais. Eles (Bandeira e seus pares) proporcionam à Cidade uma conexão com o mundo. É prova de que Fortaleza não estava isolada. Por aqui, circulavam diferentes atores do mundo das artes”, avalia a historiadora da arte Carolina Ruoso, doutora pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Aos 23 anos, o artista mudou-se para o Rio de Janeiro, onde logo apresentou sua primeira exposição individual, no Instituto de Arquitetos do Brasil. Após um ano em solos cariocas, Bandeira conquistou bolsa de estudos do governo francês e ganhou o mundo.

Essas cidades, que acabavam indo parar nos quadros, ajudam a entender uma peculiaridade da obra de Bandeira: o pintor passeava entre o figurativismo (que propõe uma “imitação” do mundo) e o abstracionismo (que nega a figuração na busca de um olhar mais subjetivo). “Bandeira fazia o que podemos chamar de uma abstração figurativa, unindo duas coisas opostas. Ele tinha essa capacidade”, aponta o curador e pesquisador Max Perlingeiro, detalhando que o cearense titulou grande parte dos seus trabalhos, dando, assim, um caminho de apreciação aos fruidores. “Quando você olha uma obra do Bandeira, você fica diante daquela forma, daquela cor e você vê a etiqueta e tem escrito, por exemplo, o título Cidade queimada de sol. Imediatamente você visualiza a cidade e vê que ela está queimando, vê o sol, vê tudo”, descreve o estudioso, que há mais de 30 anos pesquisa o trabalho do pintor.

Indo na contramão da abstração vigente nas décadas em que atuou (quando o protagonismo estava voltado às formas geométricas), Bandeira constrói, desde o começo da sua carreira internacional, um caminho muito próprio dentro da arte. Em Paris, ele ainda chega a frequentar a École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e a Académie de la Grande Chaumière, mas logo sai, pois buscava mesmo uma arte para além do academicismo. “Ele tentou ir para duas escolas, mas Bandeira era uma pessoa muito irrequieta. Ele não se adaptou e fugiu, porque queria descobrir novas linguagens”, conta Francisco.

Curadora da exposição Antônio Bandeira: um abstracionista amigo da vida, atualmente em cartaz na Unifor, Regina Teixeira de Barros aponta as peculiaridades do homem que foi um dos pioneiros da abstração no País. “O expressionismo abstrato, de uma forma geral, é identificado com um certo existencialismo, no sentido mais dark do termo. O Bandeira tem uma pintura leve, não é carregada de um sentimento negativo do mundo. Para ele, a pintura é uma fonte de prazer", detalha, apontando que o cearense definitivamente não pode ser avaliado “preso” a um ou outro movimento artístico. “Ele pintava paisagens, cidades, partia da realidade. O Bandeira desenvolveu um certo pensamento visual abstratizante. Ele é fora da casinha, até mesmo para os europeus que eram contemporâneos dele. Bandeira é um artista peculiar”, define.

Trajetórias

Retrato de menino, óleo sobre madeira, pintado em 1942

Muitos foram os prêmios, exposições e movimentos artísticos na carreira de Bandeira entre Brasil e Europa. Na França, aliou-se a artistas reconhecidos como Alfred Otto Wolfgang Schulze, o Wols, e Camille Bryen. Os três teriam formado um grupo, entre 1949 e 1951, chamado Banbryols (não existem registros, porém, dos trabalhos dessa época). No Brasil, no começo da década de 1950, Bandeira participou da primeira Bienal Internacional de São Paulo e, na segunda edição do evento, saiu vencedor do concorrido Prêmio Fiat. Fez ainda exposições individuais em cidades como Nova York e Londres. 

Artigo: A construção do eu imaginado

Por Silas de Paula
Cidade adormecida, óleo sobre tela, de 1956

Antônio Bandeira foi um grande artista e era performático. Conheci mais um pouco dele quando escrevi um artigo sobre uma série de fotos que deixou para a família. Ele foi um homem do mundo, extrapolou as fronteiras do seu estado e do País. A figura voltada ao cotidiano de sua terra é só uma de suas facetas. Como outros artistas modernos, ele procurou a singularidade e isto se reflete nas imagens. O homem simples, com o “umbigo enterrado no Ceará”, assume imageticamente diversos personagens, principalmente depois de sua viagem à França, em 1956.

Apesar de existirem vários “instantâneos”, boa parte aponta para a construção do “eu imaginado”. Ele posa e sabe o que quer; o visual é parte intrínseca do seu trabalho revelando os papéis desempenhados e, como no teatro, cada tipo expressa o excesso característico do protagonismo que lhe é destinado. Bandeira se engaja, também, no processo de representação ao se colocar nos marcos referenciais de países que visitou. Suas fotos apontam para uma só coisa: aquele local entre o “eu e o outro” tão bem demarcado que não existe espaço para outras jornadas que não sejam aquelas que o trazem de volta ao lar e à família. Um ato de fazer/criar imagem, como um sintoma do desejo, onde os dois conceitos são capturados por um circuito regenerativo mútuo – o desejo gerando imagens e as imagens gerando desejos.

Postura que tem uma relação com aquele momento, no século dezenove, no qual as imagens artísticas foram redefinidas num relacionamento móvel entre a presença bruta e a história codificada; tempo no qual foi criado o grande comércio de uma imageria coletiva, possibilitando aos membros de uma sociedade, com pontos de referência incertos, os meios para se ver de uma maneira satisfatória e com tipos definidos. Um tipo de semelhança que não ofereça a réplica de uma realidade, mas aponte diretamente para o lugar de onde ela provém. O resultado é algo produzido de forma dinâmica no ato da representação, sujeito à rede de sentidos imposta pela cultura, linguagem, história e impresso a partir de uma visão particular de mundo - a visão dominante que um determinado grupo, ou pessoa, pretende eternizar de si mesmo. Porém, “eternidade” é um conceito que não se encaixa facilmente em nosso tempo de vida e, assim, a imagem fotográfica afirma, simplesmente, uma finitude com a qual estamos acriticamente familiarizados: ‘isto foi!’.

Por Silas de Paula - Fotógrafo e pesquisador

Obras

Rastros de um pintor do mundo

Assim como o seu criador, as obras de Antônio Bandeira se espalharam pelo mundo. Com a morte do artista, em 1967, parte dos seus trabalhos foi trazida de Paris para o Rio de Janeiro, onde foi realizado leilão público de mais de duas mil telas feitas pelo cearense. Segundo pesquisas da família, pinturas e desenhos de Bandeira estão em coleções particulares, da África do Sul à Argentina, entre tantos outros países. No Brasil, o artista, que conquistou espaço privilegiado no mercado da arte já no começo da carreira, teve obras compradas por nomes importantes como o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o empresário Adolpho Bloch, fundador da Rede Manchete.

É no Ceará, porém, que Bandeira está em peso. O Governo do Estado adquiriu mais de mil obras do artista, que atualmente estão na reserva técnica do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

Posteriormente, o acervo deverá compor a Pinacoteca do Estado, que ainda não tem data para ser inaugurada. Além do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, que possui as principais telas do cearenses, a coleção do chanceler Airton Queiroz (1946 - 2017), umas das mais valiosas das América Latina, guarda preciosidades do artista. “O núcleo central do início da coleção Airton Queiroz foi uma pequena coleção de pinturas do Bandeira comprada da própria família do pintor”, aponta o pesquisador Max Perlingeiro, destacando ainda a relevância do acervo do artista deixado pela pintora Heloísa Juaçaba (1926 - 2013).

Na ausência de filhos como herdeiros, os seis irmãos de Antônio Bandeira ficaram com suas obras. “Quando foi feito a partilha dos bens, cada irmão ganhou uma parte do espólio. Muitas obras foram vendidas pela família. Eu me lembro que gente de fora vinha aqui comprar os quadros. Eu lembro muito de um casal holandês que veio para Fortaleza comprar uma obra do Bandeira”, aponta Francisco Bandeira, um dos sobrinhos do pintor que hoje são responsáveis pelos direitos autorais do artista.

Perlingeiro calcula que Bandeira tenha deixado cerca de quatro mil obras espalhadas pelo mundo. E, apesar do artista ter passeado por diferentes estilos e suportes para seus trabalhos, todos têm em comum uma “marca” clara de seu autor. O próprio Bandeira falou sobre isso em entrevista à Revista Clã, em maio de 1960. “Minha obra só pode ser entendida na sua sequência, desde o primeiro quadro realizado. Não sou autor de um quadro, senão de uma série deles, que ainda não terminou. O que fiz até hoje só pode ser apreciado no seu conjunto. É por isso que posso dizer que gosto de pedaços de trabalhos meus, uns aqui, outros mais adiante, noutro quadro. O que me interessa é o todo que vou compondo, quadro a quadro”.

Não à toa, Bandeira terá, num futuro próximo, dois catálogos raisonné (publicação que busca mapear toda a obra de um artista). Um primeiro, patrocinado pela Fundação Edson Queiroz com coordenação da Base7 Projetos Culturais, sairá em dois volumes de 500 páginas, mas foi divulgado como “parcial” em relação à catalogação. Já um segundo raisonné, que está sendo organizado por Max, deve ficar pronto em “quatro ou cinco” anos e se propõe completo. “Eu faço um catálogo que mostra absolutamente tudo que ele produziu: desenhos, gravuras, têmperas, pinturas a óleo. Bandeira fez até vitral”, revela o pesquisador.

Antônio Bandeira

O homem, a rede, o fogo

Antônio Bandeira era dono de uma simplicidade inegável. Nas muitas viagens que fez para Fortaleza tinha sempre uma rede - “imaculadamente branca” – à sua espera na casa dos pais. Em Paris, onde alcançou o auge da carreira e entrou para o circuito artístico internacional, se ressentia de não ter armadores na parede. Um detalhe que poderia parecer irrelevante diante dos grandes feitos do pintor – mas, para ele, o balançar e o tecido continuavam necessários.

A personalidade tranquila, o fácil convívio e os belos trejeitos que encantaram os europeus são apontadas como as características mais marcantes do artista. “Durante muitos anos, o Bandeira foi referência na França de uma pessoa afável, uma pessoa amiga, um brasileiro muito comunicativo. Ele se destacava pelo seu tipo físico, fazia muito sucesso. Tinha um tipo físico meio mulato meio caboclo. Era uma pessoa muito simpática”, explica Max Perlingeiro, curador e estudioso de arte.

Nas muitas viagens que fez para o Ceará, Antônio Bandeira era procurado por amigos da família, professores de arte e curiosos que queriam entender: quem era aquele homem que fazia tanto sucesso no estrangeiro. Não fosse pelo ranço das viagens de avião – preferindo sempre os traslados de navio – teria passado mais temporadas em Fortaleza. Quando estava na Cidade, sabia aproveitar cada um dos pequenos prazeres que tanto lhe faziam falta. “Aqui ele pegava uma bolsa dessas de pescador, colocava caju dentro, botava uma garrafa de cachaça e ia para a praia, tomar cachaça, aquela coisa”, conta Francisco Bandeira, sobrinho do pintor. Há registros do artista na orla, descalço ou de chinelos, comprando peixe e fumando.

Antes da propulsão de sua carreira em galerias da França, da Itália e dos Estados Unidos, Bandeira foi um menino criado entre o fogaréu da fundição do pai. Desenhava e criava em meio ao labor dos trabalhadores. E, mesmo na idade adulta, já morando no Rio de Janeiro para estudar arte, não escondia o carinho pelo lugar. A fundição, disse em correspondência enviada à família em 1961, era sua infância. “E ela também é um pouco de mim. É minha infância. De forma que mesmo nunca tendo trabalhado na fundição sou um pouco operário dela. Cresci vendo aquele fogo e a vontade de ferro que vocês tinham e têm para mantê-lo aceso”, dizia. Fragmentos dessas correspondências foram publicados pelo O POVO em outubro de 1997.

Também em correspondência, em 1961, o abstracionista se definiu como uma pessoa de “jeitão calado”, semelhante à personalidade do pai, Sabino Bandeira. Mas a suposta timidez não impediu o artista de cruzar oceanos. Na Europa, afirma Max, Antônio Bandeira era um destemido. Apesar do acerto para residir na cidade universitária, ele investiu em seu próprio estúdio. Passo ousado para um estrangeiro. “Paris é caríssima. Agora aluguei mesmo um atelier que a cada mês pagarei a bagatela de 300 dólares. Mais de quinhentos mil cruzeiros por mês só de aluguel. Já imaginaram?", conta em carta de 1964.

Entre as barreiras que o pintor cruzou ainda existiu o idioma. “Ele não falava francês e passou a ouvir os diálogos nos corredores”, aponta Max. No Ceará, a língua aprendida era o encantamento da mãe. “Ele gostava muito do pai e da mãe. Tinha um carinho imenso pela família. Minha vó pedia para ele falar em francês, aí ele se negava dizendo que ela não ia entender nada, mas acabava falando e ela achava lindo”, pontua Francisco.

Artigo: Bandeira, colecionador de Crepúsculos

Por Milton Dias

Aqui mesmo em Fortaleza, na rua Santa Isabel, o menino Antônio Bandeira teve seu primeiro alumbramento, surpreendeu o primeiro guache, um certo crepúsculo triste e lindo, como estes que costumam aparecer por cá no mês de junho, com raras manchas dum azul estranho. Daí por diante, toda tarde ficava espreitando o espetáculo, foi se fazendo colecionador de crepúsculos, buscando-os diariamente, a princípio na janela de casa, ou na porta da fundição do seu pai, mais tarde junto do mar nas dunas do Mucuripe, no cais do porto; em Maranguape, na Serra Verde, um pouco por toda parte. Depois foi ampliando o seu patrimônio de beleza, ganhou a noite, habitou madrugadas, viu dia nascendo, pescador partindo pro mar, conviveu com gente que enfrentava cada cotidiano com um heroísmo novo e a tentação do artista que já estava lá nele, fazia muito tempo, levou-o a fixar no papel todo aquele material que vinha compondo a tessitura do seu mundo interior. No começo aventurou-se por conta própria, depois frequentou aulas da Mundica, sua primeira professora, depois integrou um grupo de jovens pintores cearenses, que compunham o Centro Cultural de Belas Artes (posteriormente SCAP), depois no Rio, depois em Paris, depois no vasto mundo de que se fez cidadão. Assim formou-se o artista, como se formam os grandes: com talento, com estudo, com trabalho, com coragem, com sofrimento, com amor, numa busca interminável sempre se renovando, pesquisando, perseguido por uma sincera ânsia de realização e somando vivências, amando cidades, navios, gentes, lugares, plantas, coisas, bichos, momentos, captando beleza, com aquela sensibilidade que se pode realmente chamar excepcional, trazendo tudo para seus quadros, transformando tudo em cor, levado pela poderosa capacidade criadora tão cedo revelado, servido por um permanente sentido do poético, uma constante de equilíbrio, que conferem aos seus trabalhos a unidade que valeria bem a pena ver duma vez numa retrospectiva.

A utilização inteligente de todo aquele patrimônio de lembranças reunido com zelosa ternura é outra constante na obra de Bandeira, assim como a definitiva presença da pureza que lhe vem da infância e que o artista cultivava com evidente amor. Que de menino, na verdade, Antônio Bandeira conservou quase tudo - a pureza, a bondade, o riso aberto, a capacidade de ser fazer querer bem, a fácil convivência, essa deliciosa alegria de viver, a simplicidade, a franqueza. Isto tudo somado, o tornou muito verdadeiro, deu-lhe a marca da autenticidade que fez com que em qualquer esquina do mundo, nos bistrôs da Rive Gauche, em Copacabana, na Bahia, ou em qualquer barzinho de beira de praia em Fortaleza em todos os momentos, pintando, conservando, escrevendo, ouvindo, fazendo poesia, fosse sempre o mesmo homem, o mesmo artista, o mesmo poeta, a mesma personalidade com aspectos tão diversos, e ao mesmo tempo tão unidos pela iluminação do seu universo interior.

E, dominando tudo, em todos os ângulos, esse conteúdo humano fabuloso que o faz realmente grande, que está em todos os seus trabalhos, como nota central, vigorosa, esse imponderável tão fácil de ver, e que reflete o homem tranquilo, sem dramas, sem traumas, sem conflitos, mas profundamente emocional, sinceramente afetivo. Tudo isto sem prejuízo do vigor, nem da suave beleza que marcam sua pintura.

As cidades que encontrou, as que amou, as que desamou, as que viu, as que viveu assim como os barcos, estão todos nos seus quadros, pintados pelo poeta, mas são cidades e barcos que se juntam como gente, que se cruzam num milagre de identificação que as vivências cosmopolitas e a força emocional do artista conseguem dentro daquela linha de grandeza humana.
Por Milton Dias (1919-1983)

Reprodução de texto escrito pelo romancista cearense e publicado no O POVO em 27 de julho de 1977. Artigo foi publicado originalmente, em periódicos de Fortaleza, em 1963 e circulou no circuito artístico em razão de exposições feitas por Antônio Bandeira naquele ano.

Conteúdo extra

Confira abaixo entrevista com Milton Dias, publicada no O POVO, em 1963. O diálogo tem sido reproduzido em algumas revistas especializadas e é considerado importante para o estudo da filosofia do artista.

1. Que acha de entrevista?

R. Sou um pouco anti. E no caso do pintor, pintura já é entrevista. Estarei pendurado (os quadros) no Museu de Arte da Universidade do Ceará a partir do próximo dia 03. E por favor não ponha "mago", ou "artista do pincel", "arte de Miguelangelo", "glória do Ceará". Tudo isto é muito gentil mas um tanto "demodé".

2. Porque sua cara aparece tanto em jornais e revistas?

R. Já tenh a cara larga e além disso muitos amigos. Hoje se preocupam muito com a vida do artista-pintor e o público, que é curioso, quer ver a gente despido. Os outros fatores são os milhões de jornais e revistas espalhados no Brasil: brasileiro lê muito.

3. Porque pinta?

R. Pintar é físico e mental. Tenho cabeça e mãos e gosto de fazer alguma coisa "avec".

4. Pintura dá pra viver?

R. A minha dá e muito. Mas no começo é duro, tem-se de insistir demais. O importante é teimar no ofício e livrar-se de empreguinhos. Com o tempo o pintor ganhará seu pão com suor do seu rosto. Precisa de muita inspiração e transpiração também.

5. Porque vive ou predente viver entre o Brasil e a Europa?

R.Sou brasileiro, mas a profissão e o acaso me levaram para Paris. Viajei jovem e amadureci por lá. Isto fica na gente. E até um sentido de gratidão me obriga a ser fiel a Pátria. De volta ao Brasil encontrei meu lugar e me reconheceram como pintor. Como vê, tenho de rebolar e ficar entre os dois continentes. Até o fim dos meus dias, creio que comprarei passagem de ida-e-volta. No fim tirarei "cara-ou-coroa" para saber de que lado corre o veno.

6. Que acha do ambiente artístico brasileiro?

R. Bom. Nesses dez anos o Brasil fez progresso tremendo. Para isso contribuiu remotamente a Semana de Arte Moderna de 1922 e posteriormente os Museus (que agora aumentam de número), as Bienais e atualmente as Galerias de Arte. E como o Brasil será a nova potência como país, tudo tem de progredir paralelamente. Hoje já se investe capital em pinturas, como em prédios. O que nos falta é mais divulgação (principalmente do plano artístico) dentro e fora do país, como publicações especializadas, bolsas de estudo etc. Com a palavra o Itamarati e as Universidades.

7. E do de Fortaleza?

R. Depende em parte do movimento brasileiro. Fortaleza é uma cidade nova, susceptível de aceitar todo movimento de renovação e economicamente capacitada a desenvolver centros de cultura e arte. E que nos tragam mais gente do Sul ou exterior para intensificar cursos, proferir conferências (o que é chato), que nos promovam mais exposições. Educando o público teremos uma mentalidade para compreensão das artes. Não nos falta sensibilidade pois do mais pobre ao mais rico, o cearense vive apreciando crepúsculos e auroras. Imagine se o puserem diante de um bom quadro.

8. Com levar a arte ao povo?

R. Alfabetizando-o e educando-o primeiro para isto. Depois a arte vai a ele ou ele vem a ela. Não é importante quem chegar primeiro. O essencial é chegar.

9. E a elite?

R. Elite já e eleita (sem trocadilho) por berço e independência financeira mas assim mesmo, depende enormemente do povo (leia resposta anterior).

10. Que acha do folclore?

R. Necessário e decorativo para os povos primitivos, até servindo de brinquedos para crianças. O folclore se transforma em erudição, depois de filtrada pelo gosto de colecionadores. Também pode servir de inspiração para obra de arte sendo ele próprio um artesanato consciente e um labor cotidiano de um determinado povo ou região.

11. Acredita em arte primitiva.

R. Arte em geral é sinônimo de estudo de aperfeiçoamenteo e de cultura. Acredito no primitivismo do convento, num Giotto e num Fran Angelico, ou então no primitivismo da criatura ignorante mas sensível. Creio na arte primitiva feita pelos loucos e pelas crianças, mas como aceitação limitada, partida de um princípio emotivo.

12. Tem método ou fórumula para pintar?

R. Já disse que pintar é ato mental, por isto vivo pintando sempre, mesmo quando não estou trabalhando. O método ou a fórmula são princípios matemáticos e o artista é um ser anti-matemático por excelência.

13. A que horas prefere trabalhar?

R. Qualquer hora é hora. O artista deve sempre estar em disponibilidade para o momento da criação. Para isto precisamos duma liberdade total, mas prefiro manhãs e noites, quando os momentos de solidão são mais propícios.

14. Quais os motivos que inspiram sua arte?

R. Todos e tudo. Estou sempre disposto a receber emoções a fim de transmiti-las ao meu trabalho. Porém minha pintura é mais de metamorfose, de transfiguração. É uma transposição de seres, objetos, coisas, momentos, gostos, olfatos que vou vendo no presente, passado, futuro.

15. Que quadro gostaria de pintar?

R. Nunca pinto quadros. Tenho fazer pintura. Meu quadro é sempre uma sequência do quadro que já foi elaborado para o que está sendo feito no momento, indo esse juntar-se ao quadro que vai nascer depois. Talvez gostasse de fazer quadros em circuitos, e que eles nunca terminassem e acredit que nunca terminarão mesmo.

16. Que conselhos daria a um jovem pintor?

R. Primeiro é que ele tenha realmente vocação e vocação não se aconselha. Depois muito talento (também não se aconselha). O resto seria muito trabalho, muito corre-mundo,.. vivendo a vida sem medo e com total liberdade, sem preconceito nenhum.

17. Você se candidataria a uma cátedra duma Academia de Belas Artes?

R. A pergunta cheira muito a "blague". Mesmo asism sou um anti-catedrático por natureza, até para ensinar e aprender. Academia, só mesmo a dos gregos, pois o nome é bonito e nós, contemporâneos, gostaríamos de apreciar aqueles sábios velhotes de túnica conversando e filosofando sobre a vida e as coisas.

18. Você se basta a si mesmo?

R. Uma solidão dirigida até que é necessária. Agora o chato é a gente ficar sozinho quando não quer. O ideal seria ficar no quarto de portas trancadas, com a escola de samba passando ao largo.

19. Por que você não se casa?

R. Também não tinha dizer que "esposei a arte". Casar ou não casar para mim é a mesma coisa. Creio que já nasci com incompatibilidade de gênios e crueldade mental. Talvez me faça falta um filho, mas isto independe do casamento.

20. Teria coragem de viver sozinho numa ilha?

R. E para que ilha maior do que este mundão tão vasto, cercado de gente por todos os lados. Já vivo nela.

21. Que pensa da era dos astronautas?

R. Necessário para a ciência. Pena que estão invadindo e estragando a nossa poesia, tirando todo o mistério e sem mistério a gente não aguenta o mundo. Descobertas são anunciadas e esperadas e antes de Gagárin subir tão alto, o artista já sabia que a terra era azul.

22. Tem alguma ligação entre Saint Germain des Prés, Copacabana e Rua Santa Isabel?

R. Da Rua Santa Isabel guardei o vigor dos meus pais, gosto e cheiro das frutas da infâncias, a ciranda no areial. De Copacabana, onde vivo atualmente e que considero a capital do Brasil, sinto um mundo de praias, de cores e de liberdade. Saint Germain é aquela aldeia que você conhece e que também é uma grande cidade. Sabe, o melhor do "quartier" é que todo mundo se diz bom-dia. E acho que na vida devia ser assim - todo mundo se cumprimentando.

23. Você que tem fama de boêmio, como consegue organizar sua vida?

R. Economia desorganizada é de cigano. Já comi muita vaca magra, só agora estou comendo as gordas. Mesmo pobre numa água-furtada, fui sempre homem organizado Nâo o era antes, foi o viver sozinho que organizou minha rotina. Boêmia é vida e com gosto de viver, tenho de me organizar.

24. Já teve vontade de pular duma ponte para o rio?

R. Tentaria o contrário, pular do rio para alcançar a ponte, pois não sabendo nadar, gosto da vida.

25. Como encontrou o Grupo Clã?

R. Disperso e sem nenhum entusiasmo. Nem aquele passado tão movimentado deixou marca. Sobraram livros publicados, mas até isto já cheira a fruta do passado. Gostaria que o Clã se reagrupasse e produzisse algo de importante.

26. O que seus pais pensam de você e qual a sua afinidade com a fundição?

R. Semeu pai pensa algo, nunca o disse. É aquele patriarcado do homem do Nordeste e eu respeito isso. Aqui eu sou um Bandeira igual aos outros filhos e gosto disto. Da Fundição aprendi misturas que meu pai nem suspeita, mas vendo derreter ferro ou bronze, aprendi muito. Hoje misturo emoções em cadinhos iguais ao sdele, de ferro, de bronze, de corpo, de alma, de vento, de paisagem, de objeto e dessa mistura fabrico as peças para o meu trabalho.

27. Você acha que o Museu de Arte da Universidade do Ceará está no caminho certo?

R. O MAUC é um bom começo. Antes não tínhamos nada, ou melhor, tinhamos, mas nada agrupado. O MAUC promove e qeur promover exposições de artistas daqui e de fora. Espero que todos os artistas dqui compreendam e se unam para a luta. Digo mais: o Museu não é somente da Reitoria e dos que lá trabalham: as portas estarão sempre abertas para todos os artistas de talento e de boa vontade.

Arte riscada em versos

Em pedaços de papel jogados no ateliê ou no fundo de malas, Antônio Bandeira deixou textos literários escritos a partir de um processo criativo múltiplo. “Continuam no fundo das malas. Às vezes, relendo um verso, uma frase, parto para um quadro. A inspiração tem vindo assim, em mais de uma oportunidade”, contou o abstracionista em entrevista ao número 19 da Revista Clã.

O texto mais emblemático de Bandeira é Cidade queimada de sol, homônimo do quadro exposto no Mauc-UFC. Nos versos, ele fala sobre como Fortaleza “envelhece e volta a ser moça”. É mais uma prova de seu afago e de seu amor pela terra natal. Além das poesias, ele também deixou um romance: Flamboyant Amarelo. “Escrito entre 35 a 45, e depois datilografado, nunca mais o reli. Não pensei em publicá-lo para não atrapalhar a pintura. Agora, porém, penso em lançá-lo por intermédio de José Olympio”, disse o pintor na entrevista publicada em 1960 também na Revista Clã.

Em 2007, a pedido da UFC, a escritora Angela Gutiérrez e o artista plástico Estrigas organizaram uma compilação de poesias e desenhos inéditos. Batizado Bandeira: Verso e Prosa, o livro integrou as celebrações pelos 40 anos de morte do pintor. Nos papéis datilografados que recebeu, explica Angela, havia 51 poemas que revelam uma personalidade brincalhona e uma ótica particular para a vida como estrangeiro em Paris.

Há textos em francês, textos em português e outros mesclando os dois idiomas. “Se analisarmos o conjunto, vemos que existem temas comuns”, explica Angela. O primeiro é sobre ser estrangeiro e estar em Paris. “Bandeira esteve na cidade em uma época interessante para os artistas, uma época da Paris mais aberta. Existem esses poemas dedicados a cidade e em muitos deles eu notei aquele tom de humor do nosso modernismo. Uma brincadeira consigo mesmo”. O outro tema recorrente é a saudade. Do pai, da mãe, dos irmãos e do Ceará. “E tem um terceiro recorte, que são poemas que falam da arte de escrever ou da arte de pintar. Quase metapoemas”.

A publicação anos após a morte, acredita Angela, não fere a memória ou os desejos de Antônio Bandeira, pois ela defende que há cintilações poéticas na obra. “Ele era um artista extraordinário. E talvez achasse que os seus textos, poéticos, não estivessem à altura da sua obra nas artes plásticas. Se nós observarmos bem, realmente, esses textos não foram retrabalhados. Foram, digamos... veio a inspiração e ele escreveu”.

Inovações

Além de buscar a própria linguagem a partir das diferentes formas de expressar sua arte, Bandeira buscou inovar nos suportes e nos moldes de criar. O artista pintou em superfícies como papel de jornal e isopor, criou com miçangas, barbantes, fitas adesivas, canutilhos e frascos de perfume (este último numa incursão quase dadaísta).

Max Perlingeiro conta ainda que adquiriu uma obra do pintor feita em bolacha de água e sal. “Era uma tela pequena de 16x22, em que ele pegou quatro biscoitos e passou um verniz, pintou em cima daquilo e deixou dentro de uma caixinha de acrílico”, conta.

Conteúdo extra

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C’est drôle em regardant la mandarde

je trouve les autres maisons si petites.

 

É gozado!

 

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Cidade Queimada de Sol

Bom dia

Fortaleza

te ofereço

êsse carinho de viajor

do filho

que não sabe

se vem ou se vai

o que olha e medita

indo e voltando

à sua cidade

envelhecendo e remoçando

com ela (ela és tu)

 

Fortaleza

te ofereço

êsse carinho de gente

para outra gente

(porque é gente a que

nasce de teu ventre)

 

de corpo e alma também

ofereço

cadinho de ferro e bronze

(uma lembrança de meu pai)

cadinho de corpo e alma

êsse cadinho de raças

Fortaleza

 

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Museu abrigo

Litogravura (sem título), de 1960

Antônio Bandeira foi o primeiro pintor a ter uma exposição solo no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc-UFC). Menos de um mês após a abertura do espaço, em 1961, o abstracionista estampou as paredes do recém-inaugurado equipamento com uma sequência de 33 quadros. Atualmente, 40 obras compõem o acervo de Bandeira no Mauc, considerado o mais respeitado conjunto público do artista no País, segundo Pedro Eymar, diretor do museu.

O acervo – explica Pedro – é primordialmente abstracionista. Estão no museu, disponíveis para visitação, obras icônicas como Cidade queimada de sol (1959) e Retrato de menino (1942). A presença constante de Bandeira na universidade é atribuída à estreita amizade dele com o reitor Antônio Martins Filho, que, diz Pedro, trabalhou com editoração e com grupos como Clã e Scap.

“Há uma ligação dos dois movimentos em Fortaleza: da Scap, que era de artes plásticas, e do Grupo Clã, que era da literatura. O Martins atuava na editoração e era frequente a presença dos artistas, dos pintores e dos ilustradores nesses espaços”, explica Pedro.

Em 1963, durante uma das passagens pelo Brasil, Bandeira volta a expor no Mauc. Foram três eventos ao longo do ano - incluindo nova exposição individual - que deixou de herança mais um quadro ao museu. Pouco depois, a UFC recebeu uma obra doada pelo intelectual Ismael Pordeus. “As histórias dizem que o Martins queria comprar, mas o Pordeus chegou com o quadro embaixo de braço e presenteou”, relata Pedro. Cinco obras do acervo vêm de um álbum de serigrafia feito por Bandeira na Argentina, em 1960. Há, ainda, o icônico quadro Cidade em festa (1961), óleo sobre tela feito ali mesmo, nas dependências do museu.

“O Mauc é fruto de um diálogo internacional, porque o Martins Filho vai encontrar o Bandeira na França e nesse lugar se fortalece a necessidade e se potencializar a ideia de construir no Ceará um museu de arte”, diz a estudiosa Carolina Ruoso. Viajando com alunos e professores, Martins Filho chega a Paris e procura Bandeira, que guia o grupo por museus. Mas, além dos encontros no Exterior, o contato entre o reitor e o pintor foi reforçado por longas cartas.

Tipo físico e simpatia de Bandeira faziam "muito sucesso"

Além dos quadros, o Mauc abriga ainda fotografias, catálogos de exposições, textos de críticos, jornais e revistas que fizeram menção à obra de Bandeira ao longo do tempo. Lá estão também registros do pintor posando, de paletó e gravata, ao lado do reitor durante as exposições de 1961 e 1963. Em uma das imagens, os dois aparecem em um solene aperto de mãos com o quadro Cidade queimada de sol ao fundo. Um registro que mostra como a amizade fomentou o mais belo acervo público de Bandeira no Brasil.

Saiba mais

O Mauc foi inaugurado com exposição coletiva em 25 de junho de 1961, mas, em 15 de julho do mesmo ano, era aberta exposição individual de Bandeira. A mostra teve destaque nos cenários artísticos nacionais – com a presença de intelectuais e críticos como Orlando Mota, Eneida de Morais, Augusto Rodrigues, Paulo Silveira, Mauritônio Meira, Aluísio Medeiros, Alcides Pinto, Goebel Weyne, Walmir Ayala e Fausto Cunha. O prédio do museu, com suas varandas e mangueirais, abrigava o Colégio Santa Cecília.

O pintor Antônio Bandeira fez a doação de quatro óleos sobre tela para o Mauc, em 18 de julho de 1961: Cidade queimada de sol, Selva noturna, Grande cidade vertical e Paisagem azul. As obras foram pintadas entre 1959 e 1960. Em correspondência endereçada a Antônio Martins Filho, então reitor da UFC, o abstracionista diz que louva a iniciativa da universidade e que o recém-inaugurado equipamento iria elevar ainda mais o nível cultural do Ceará.

Os grupos Clube de Literatura e Arte (Clã) e Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap) surgiram na década de 1940, em Fortaleza. Com diálogos permanentes entre os dois, eles executaram trabalhos em parceria e deram destaque às produções do abstracionista cearense. O pintor Antônio Bandeira é citado, entrevistado e tem a obra visitada em diversas edições da Revista Clã. Atualmente, os textos estão disponíveis para consulta de pesquisadores e do público no acervo do Mauc.

Epifania de longa duração

Cidade em festa, óleo sobre tela, com dimensões de 200 x 534 cm, pintado em 1961

A partida precoce de Antônio Bandeira, aos 45 anos, mudou os rumos de uma carreira em franca ascensão. Diferentemente de outros nomes da história da arte, que conseguiram ampla notoriedade somente após a morte, o cearense conquistou múltiplos olhares em vida. “Ele fez muito sucesso enquanto estava vivo, justamente por se alinhar com essa tendência à abstração informal, que crescia”, aponta Regina Teixeira de Barros, curadora da mostra Antônio Bandeira: um abstracionista amigo da vida. Ela, porém, destaca certo apagamento nas primeiras décadas pós-morte do pintor. “A abstração informal havia perdido terreno nos últimos anos para a abstração geométrica, mas agora está havendo um novo interesse por esse tipo de produção. Bandeira tem ganhado ainda mais visibilidade”, formula a pesquisadora.

“Eu tenho uma teoria muito pessoal de que se o Bandeira não tivesse morrido tão jovem hoje seria um dos pintores abstratos mais importantes do mundo”, projeta o curador e pesquisador Max Perlingeiro. “Em 1967, ele estava com duas grandes exposições já marcadas: uma em Bruxelas e outra em Nova York. A obra dele era muito apreciada, Bandeira desde cedo já tinha um posicionamento de mercado muito interessante” explica.

Segundo Perlingeiro, as grandes exposições realizadas nas últimas décadas têm feito o nome de Bandeira crescer em visibilidade e cotação. “A partir do anos 1980, você vê o crescimento. Nos anos 1990, a obra dele passa a ter um valor muito mais alto. Ele faz parte da constelação de artistas brasileiros com pinturas superiores a R$ 1 milhão. Ele tem um mercado consolidado”, detalha.

As cotações atuais do cearense só crescem. Na feira SP-Arte, em 2016, havia obra de Bandeira sendo vendida por R$ 9,5 milhões, o que o coloca no hall de grandes nomes com alto valor de venda como Lygia Clark, Cândido Portinari e Di Cavalcanti. Também ano passado, o escritório de arte Soraia Cals realizou leilão cujo catálogo tinha como capa a obra Sol sobre paisagem (Bandeira, 1962). O maior lance inicial era o dessa obra, com valor de R$ 1,25 milhão. Com o lançamento dos catálogos raisonné, esses valores devem aumentar, pois Bandeira entra para o time raro de artistas com esse tipo de publicação (hoje, apenas Alfredo Volpi, Portinari, Iberê Camargo, Tarsila do Amaral e Leonilson possuem catálogo semelhante).

Max aponta ainda que as últimas telas feitas pelo cearense indicavam novas rotas que o artista seguiria a partir dali. “No ateliê, tinha muitas obras inacabadas que sinalizavam como é que seria o Bandeira da próxima década. Tinha uma abstração mais apurada, a utilização de cores que não correspondiam à paleta inicial dele, que eram as cores primárias. Ele já estava usando obras com uma tonalidade bem diferente”, conta. Bandeira havia falado sobre alterações em entrevista à Revista Clã. “Não pode deixar de haver uma mudança (ou uma transformação) na pintura. Se alguém pinta o mesmo quadro cem vezes, haverá fatalmente uma modificação. O último quadro seria diferente do primeiro”.

Organizador do livro Antônio Bandeira e a poética das cores (2012), o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho resume a importância da produção que Bandeira, que atravessa passado, presente e futuro. “A marca Bandeira é seminal para as artes cearenses. Foi nosso primeiro grande momento. Depois, vieram Sérvulo, Leonilson e colecionamos vitórias. Bandeira é uma epifania de longa duração. Instala uma nova visão de arte e de expressão. É tão único e pessoal, ainda que dialogue com Vieira da Silva e outros artistas do seu tempo. Superou a aldeia e se fez cidadão do mundo”, finaliza.

Bate-pronto

O POVO - Como a paisagem urbana das cidades onde viveu chegava às telas de Bandeira?

Kadma Marques - Bandeira apropria-se de ao menos três cidades - Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris - para convertê-las em objeto de pesquisa plástica, formal, traduzindo sua ligação emocional com elas em imagens cujas cores e traços vibram em um ritmo visual intenso que impactam os mais diversos públicos, mesmo hoje. Neste sentido, Cidade queimada de sol, pintura que integra o acervo do Mauc, é emblemática. Nela, pela experiência dos sentidos que o gesto imortaliza, o artista filtra os efeitos de um sol potente que se expande, a tudo envolvendo em um vermelho que impregna os olhos, ardendo. Vista de cima, a cidade poderia ser apresentada de forma distante, impessoal. Mas o vermelho nos reconcilia com ela, pois ela é quente. O ritmo dos gestos que deixaram suas marcas sobre o quadriculado urbano é outro fator que insere o humano na visão grandiosa dessa paisagem.

OP - De que modo ocorria essa “invenção” de Fortaleza como forma-paisagem?

Kadma - Um artista como Bandeira, acumulado tudo que sua sensibilidade aguçada lhe dava acesso, precisava externar sua experiência, traduzi-la por meio de recursos que lhe possibilitassem restituir ao mundo sua experiência. Com isso, ele descortinava aos nossos olhos a cidade que o tocava, ecoando em nós uma paisagem vivida, pulsante. Nesse movimento, a cidade se depura e se intensifica como forma-paisagem, fazendo-nos reencontrar a paisagem que vemos todos os dias sob um novo registro - aquele da beleza impactante, que nos desestabiliza ao instaurar um mundo novo no seio do mundo que pensávamos conhecer. Nossos olhos cansados de ver redescobrem assim uma cidade de afetos, de memórias, de possibilidades daquilo que poderia ser.

OP - Com o distanciamento temporal de 50 anos da morte do Bandeira, o que ele nos diz hoje?

Kadma - O trabalho de Bandeira permanecerá um marco de invenção, formal e social, uma peça fundamental nas articulações que se deram ao longo do tempo entre agentes sociais e instituições e que estabeleceram hoje outro patamar para atuação dos artistas locais. Bandeira sintetiza em sua individualidade a potência social de sua época, ele funcionou como um vetor único, que porém em sua singularidade não apaga o coletivo do qual se destacou, antes revela-o como força propulsora.

Kadma Marques é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. A pesquisadora é autora do artigo Antônio Bandeira: da invenção da cidade como forma-paisagem 

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Especial Antonio Bandeira