O adolescente que teve irmão assassinado e a vida afetada pelo tráfico hoje mobiliza a favela pela arte
Olhar para o outro é ponto de partida. Para além da sobrevivência, apesar da falta de oportunidades e extrema desigualdade social, jovens de bairros considerados críticos de Fortaleza entendem a necessidade de se descobrir. Mais do que isso, buscar e construir novos caminhos.
Por Rubens Rodrigues
Na segunda parte deste especial, O POVO Online mostra, a partir de quatro histórias, como a arte na favela muda a vida de jovens e crianças. Em meio a conflitos territoriais, eles se deparam, dia após dia, com possibilidades de ressignificar o estigmatizado local onde vivem. Encontram nos coletivos um grito de resistência e protestam: "Estamos cansados de morrer".
É fácil perceber o reconhecimento e apropriação de Alécio Fernandes, de 23 anos, ao falar do local onde cresceu e constrói novas possibilidades todos os dias. Alécio é "D'leste". Há pouco mais de um ano fundou o Coletivo Natora, espaço de acolhimento e efervescência artística e cidadã para jovens e crianças do Grande Pirambu. Artista de rua, educador social e produtor cultural, o idealizador do Natora fez parte do projeto Aqui tem Sinal de Vida, no Morro de Santiago, localizado na Barra do Ceará, onde trabalhou com crianças na luta por uma biblioteca comunitária.
Nem sempre foi assim. Aos 16 anos, ainda no Ensino Médio, Alécio viu, de perto, o tráfico de drogas agir no seu cotidiano. "Foi um baque na minha vida, fui expulso do colégio. Desestruturou toda minha família", lembra. Dois momentos contribuíram para o despertar do então adolescente. O primeiro, quando perdeu o irmão em conflitos territoriais de facções criminosas que incluiu a Polícia. Pesou a indignação no luto e quase ter chegado perto de um destino como o do irmão. O segundo momento foi ter encontrado, na escola, a arte.
O menino da favela foi estudar no Liceu do Ceará, onde conheceu a dança e o teatro. No caminho, vieram o malabarismo, a palhaçaria e um projeto audiovisual sobre a memória da comunidade. "Aqui não tinha memória. Eu não sabia que tinha sido uma ocupação de resistência, que teve a grande marcha do Pirambu que mobilizou lideranças comunitárias pelo direito da moradia. Descobri que meus pais foram parte dessas lideranças". Em 2015, veio a Rede Cuca e expandiu sua visão para as potencialidades escondidas na periferia.
Com o passar dos anos, sentiu na comunidade a energia para se mobilizar. A ação que definiu o Coletivo Natora foi a revitalização de um canteiro abandonado no bairro Carlito Pamplona. Em parceria com coletivos como o Servilost, do Serviluz, o lugar virou a Praça da Castanhola. Lixo e abandono deram lugar às cores do gratife e a comunidade ganhou um novo espaço de ocupação pública. O começo foi assim, sem receita, sem ninguém dizendo o que e como fazer. Aprendendo na vontade e na força.
Começaram a surgir outros encontros. Cine Natora, quando o cinema vai à comunidade. O torneio de travinha Natora Champions League. Leste Limpa Go, evento cultural que une a manutenção do espaço público com música, em uma tentativa de sensibilizar os frequentadores da Praia da Leste. E para encontrar formas de sustentabilidade para a sede e para as ações, a Equipe de Economia Criativa Preta.
"A gente conseguiu fortalecer nossa rede de coletivo com o Sarau Natorart (vídeo). Tem uma identidade de resistência no que diz respeito à mobilização", conta Alécio. "É massa porque mexe com toda a comunidade. Chega a tia que vende espetinho, a tia que faz bazar. Gera economia local também. O Natora surge justamente para despertar essa potência de todos os perfis da periferia". Em sete edições, o Sarau abraça dança, poesia, teatro e outras linguagens. E quem não se reconhecia como artista, se descobre.
"A arte faz uma coisa na gente chamada produzir vida, mostra que existe algo dentro de mim muito forte e que eu posso externalizar", diz o idealizador do Natora. "É um tipo de educação popular que estimula na juventude da periferia o poder de criar. E é isso que muda as coisas. O Natora Champions League não foi criação do coletivo, foi criação das crianças que brincavam de bila aqui na rua. A arte tá na criança despertar a criatividade e enxergar formas de expressão".
É nesses eventos que o grupo passa a tratar sobre direitos, projeto de vida e de um acordo de convivência na comunidade tornando-se referência para quem cresce na favela. “Dialogando, a gente entendeu que o trabalho com os nossos é muito mais potente quando se escuta o que o outro fala. É uma construção que fortalece. É preciso entender por que as mãezinhas estão com medo e pedem polícia, para mostrar a elas que existem outras formas de viver".
Aqui tem potências
Para Alécio, há um racismo institucionalizado que determina os territórios permitidos para o povo negro, como a favela, separada da periferia pela desigualdade social, e o sistema carcerário. E ações como o Sarau Natorart e tantas outras realizadas por grupos espalhados pela Capital são uma forma de quebrar essa barreira.
"A gente tem uma dificuldade de diálogo com as instituições. Entendemos que o Estado vem muito no braço armado e que o investimento na segurança é mais presente que o social. Nós sentimos, desde o começo, essa violência na prática". D'leste afirma que teve a casa invadida pela Polícia logo nos primeiros encontros do grupo. "Eles queriam saber o que era aquela organização de jovens na favela. Foi racismo. O policial chega com a constituição de que o inimigo é o menino preto, aquele que não pode se destacar. O Coletivo chega pra dizer que periferia não é só criminalização. Esse é nosso maior desafio. Aqui tem potências".
O coletivo artístico é, em essência, um grito de socorro da juventude dentro da periferia, seja ela favelada ou não. "Cansamos de morrer", desabafa Alécio Fernandes. Ele lembra que um dia antes da entrevista, realizada em 21 de março último, mais um confronto entre grupos criminosos nas proximidades da sede, localizada na rua Álvaro de Alencar, deixou a comunidade aterrorizada.
"A periferia tá resistindo, mas está um pouco perdida. Querem regulamentar saraus e rolezinhos, querem injetar a polícia nas nossas organizações, mas não vamos desistir. Desistir disso aqui é desistir da gente e dos moleques que entram aqui porque do lado de fora tá um caos", pondera Alécio. "Aqui é favela. E para mim, favela é coletividade. Favela é união, afeto e resistência. Porque se mexe com um, mexe com outro. E estamos todos em cima do mesmo terreno".