À frente da Central Estadual de Transplantes do Ceará (CET/CE) há exatas duas décadas, a coordenadora Eliana Régia Barbosa de Almeida faz um panorama do transplante de órgãos e córneas no Ceará – referência nacional. Em entrevista, a médica fala sobre a trajetória da política de saúde e avalia o protagonismo histórico do Ceará, além de pontuar os desafios ainda a serem superados pelo Estado.
Ela destaca: “Nesse processo de viver e morrer aprende-se a valorizar o que realmente tem significado na vida e que estamos aqui para servir ao próximo”.
Médica do Instituto Dr. José Frota, Régia Barbosa é formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com Máster Internacional em Donación y Trasplantes de Órganos, Tejidos e Células da Organização Nacional de Transplantes da Espanha. Foi membro da diretoria da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos e é parte da Câmara Técnica da Coordenação de Transplante do Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde e Membro do Grupo de Assessoramento Estratégico da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplante do Ministério da Saúde desde 2010.
Qual o panorama do transplante de órgãos no Ceará?
O Ceará tem, hoje, o respeito da comunidade nacional pelo expressivo avanço na redução das desigualdades regionais. O programa de transplante no Ceará se destaca pelo crescimento da taxa de doadores e do número de transplantes realizados. Nossas Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTTs) e de Centros Transplantadores são referências em treinamentos (tutores) para outros Estados. O serviço do processo de doação e transplante no Ceará está organizado com as seguintes composições: uma Central Estadual de Transplante do Ceará, quatro Organizações de Procura de Órgãos (OPO), 20 CIHDOTTs, 27 Centros Transplantadores e 39 Equipes de Transplantes, três Bancos de Olhos, um Banco de Cordão Umbilical, dois Laboratórios de HLA e dois Laboratórios de Sorologias.
Como o Ceará está posicionado, hoje, nesse quesito quando comparamos com o restante do Brasil?
Terminamos o ano de 2019 com uma taxa de 28,6 doadores por milhão da população (pmp), bem acima da média brasileira que é de 18,1. Conforme o Registro Brasileiro de Transplante da Associação Brasileira de Transplantes de Órgão (ABTO) de 2019, somos o terceiro estado em doadores efetivos por milhão da população e o segundo em percentual de efetivação. Com relação aos transplantes no ranking nacional, somos o segundo em transplante de fígado com uma taxa de 25,2 transplantes por pmp, o terceiro em transplante de pulmão e córnea, o sétimo em transplantes de rim, pâncreas e medula óssea e quinto no transplante cardíaco.
Historicamente, o Ceará sempre se destacou nesse aspecto. Na sua avaliação, porque isso acontece?
São vários os fatores. O empenho do Governo Estadual, da Sesa, da equipe da central de transplante, das CIHDOTTs, das OPOs, dos Centros Transplantadores e equipes transplantadoras e outras estruturas especializadas que se desdobram, para que os transplantes sejam realizados em condições adequadas e com segurança, segundo princípios justos e éticos. Os demais profissionais de saúde, notadamente aqueles que realizam seu trabalho em hospitais de grande e médio portes, que colaboram na identificação e manutenção de potenciais doadores, evitando que a doação deixe de concretizar-se por uma manutenção inadequada. O dinamismo das associações de pacientes que muito tem contribuído nas campanhas de esclarecimento a população sobre doação de órgãos e tecidos. Outros agentes públicos e privados também colaborar para que o sistema cumpra seu papel social e para que os transplantes possam acontecer, formando um conjunto de suporte de forma muitas vezes gratuita. À imprensa da nossa terra, que, de maneira correta, responsável e positiva, contribuiu e vem contribuindo para o crescimento das doações de órgãos e tecidos. E a solidariedade da população cearense com o SIM à doação de órgãos e tecidos.
De forma prática, como funciona o procedimento que resulta em transplante? Explicando melhor: onde e como começa, passa por quais profissionais, como funciona a coleta e a recepção do órgão e quanto tempo dura esse processo?
O hospital, através da CIHDOTT ou OPO, notifica a CET sobre doador em morte encefálica ou com parada cardiorrespiratória e que a família autorizou a doação. A CET/CE, após receber todas as documentações, inicia a seleção dos receptores em lista de espera para cada órgão, através de um sistema informatizado e comunica aos centros transplantadores (equipes de transplantes dos receptores selecionados). As equipes de transplante, junto com a CET/CE, adotam as medidas necessárias para viabilizar a retirada dos órgãos (meio de transporte, cirurgiões, pessoal de apoio etc). A equipe de retirada se dirige ao hospital notificante, retirar os órgãos e a CET/CE envia os órgãos para os centros transplantadores e os transplantes são realizados. As córneas retiradas são inicialmente enviadas para o banco de olhos e após avaliação e processamento são liberadas para o transplante.
Como é o acompanhamento do pós-operatório?
Cada Centro Transplantador é responsável pelo acompanhamento contínuo de todos os pacientes transplantados. Os retornos ambulatoriais são pré-agendados de acordo com a necessidade de consultas e/ou exames e os pacientes recebem a medicação de forma gratuita pelo SUS.
O que pode ser feito para tornar esses procedimentos ainda melhores?
Um dos legados da pandemia Covid-19 é a telemedicina e, nessa área de transplante, pode agilizar e ser resolutivo nas consultas de rotina e em algumas intercorrências dos pacientes.
Quanto o Estado tem avançado nos últimos anos quando se fala em transplantes?
No programa de Educação Permanente em Transplante em parceria com a Escola de Saúde Pública, que é um dos pilares fundamentais de uma boa política de transplante, cuja formação dos profissionais da saúde é decisiva para o fortalecimento das ações de doação e transplante. Em parcerias públicas e privadas que potencializam e qualificam o processo de doação e transplante; Em inovação tecnologias: máquinas de perfusão renal, para um melhor aproveitamento dos órgãos; Medula óssea: haploidêntico, aumentando a chance de realização do procedimento.
Quais desafios ainda precisam ser enfrentados?
Esse expressivo aumento no número de transplantes registrados no Ceará, fato que muito nos alegra e reconforta, também impõe novos desafios a serem vencidos. Implantação de centro de transplante pediátrico de fígado e de medula óssea. Implantação de Banco de Multitecidos: pele, osso e válvulas cardíacas. Fortalecer e ampliar a rede de procura e transplante de órgãos. Uma maior integração dos diversos níveis de atenção em saúde, objetivando a prevenção da necessidade de ingresso na lista técnica única de transplante. Na humanização, no ambiente de saúde através de uma relação de ajuda baseada no respeito, autenticidade e empatia.
Como estão as filas para transplantes no Ceará?
Atualmente, 914 pacientes aguardam por um transplante no Estado do Ceará, sendo: 728, rim; 141, fígado; 25, córnea; 15, pâncreas/rim e cinco de coração. O ingresso em lista de espera ainda é considerado pequeno, sugerindo que a maioria dos pacientes que necessitam de transplantes não estão sendo direcionados a essa terapêutica.
Quantos pacientes podem ficar na fila e quanto tempo eles podem esperar para ser considerado "fila 0"?
Esse termo fila zero é aplicável na fila de espera para transplante de córnea. Consideramos um estado com lista zerada para transplantes de córneas, quando a média dos transplantes realizados nos últimos três meses do ano é igual ou superior à média da lista de espera de pacientes com status “ativo” nos últimos três meses (do ano). Desde dezembro de 2016, zeramos nossa fila para o transplante de córnea no nosso Estado.
Como a área de saúde lidou com as mudanças de protocolo devido ao coronavírus? O que mudou nesse processo?
O Governo do Estado e a Secretária da Saúde não mediram esforços no enfrentamento da pandemia de Covid -19 e os mesmos foram estendidos também para as atividades de doação e transplantes. O processo de doação de órgãos seguiu com uma ênfase redobrada na questão da segurança e validação de cada potencial doador de órgãos. O Ceará foi o primeiro estado da federação a realizar o teste molecular RT-PCR para todos os potencias doadores de órgãos e tecidos. Cada equipe de transplante avaliou o balanço entre o risco benefício da realização de transplante em sua instituição, tomando todas as medidas necessárias para segurança do receptor. E no que se refere aos cuidados dos profissionais da saúde envolvidos direta e indiretamente no processo de doação e transplante foram adotadas todas as medidas recomendadas em notas técnicas estaduais e federais para minimizar a possibilidade de transmissão da infecção causada pelo Coronavírus SARS-CoV-2. O Ceará foi o primeiro Estado a ser autorizado pelo Sistema Nacional de Transplante (SNT/MS) a retomar a remoção e transplante eletivo de córnea, após solicitação com demonstração de relatório.
Na pandemia, quantos pacientes de protocolo fechado não se tornaram doadores devido à Covid-19? E quantos deles testaram positivo para a doença?
De 270 potenciais doadores, entre o período de março a outubro (até 09/10/2020), 35 testaram positivo para a Covid-19 (RT-PCR), correspondendo a 13%.
É possível mensurar a queda nos transplantes devido à pandemia?
O Ceará já realizou, neste ano, 670 transplantes de órgãos e tecidos. Desses, 148 foram realizados nos meses de março a junho, em que a situação epidemiológica apresentava dados elevados, mostrando que conseguimos manter o programa de transplante ativo, apesar da diminuição na taxa de doação e transplante no Estado. Nesse sentido é importante destacar o esforço de todas as equipes envolvidas direta e indiretamente no processo doação e transplante e a solidariedade do povo cearense. Desde os meses de julho e agosto já apreciamos uma recuperação progressiva. Em setembro, as taxas de notificação e doadores efetivos já foram superiores às de janeiro e fevereiro, meses antes da pandemia, com repercussão positiva nos números de transplantes.
Qual foi o aprendizado que a experiência na pandemia deixou nesse sentido?
A Importância do trabalho coletivo (coordenação, colaboração, resiliência, criatividade) e a certeza de que a pandemia não roubou a nossa humanidade.