Espaço em transformação

Mover-se pela Cidade é encontrar e esquecer paisagens na velocidade de uma aceleração. Permanecer e seguir. Pertencer e olhar à distância. Em Fortaleza, o que a multidão que está dentro de carros vê — bem de perto — é uma mudança. O trânsito é cada vez menos espaço de protagonismo do motor particular e cada vez mais área de compartilhamento. Bicicletas, ônibus, motos, topiques estão aprendendo a conviver. Chegamos aos 290 anos em transformação.


Fortaleza agora se impõe como cidade com trânsito múltiplo. Acostume-mo-nos e respeitemos o espaço alheio — que também é nosso. Algo que não mudou, porém, é a relação estabelecida entre o fortalezense e os terminais de ônibus. Na Capital, são sete centros ora pulsantes ora pacíficos de passagem e estadia. Conectores de vidas e histórias. Encontros e partidas — como escreve o repórter Paulo Renato Abreu nas páginas a seguir. Nos terminais, Paulo conversou com gente que, todos os dias, tem o terminal como Fortaleza.



O jornalista ainda dialoga com moradores da Região Metropolitana que seguem para a Capital diariamente. A tarefa, que é obrigação, apresenta paisagens e um vínculo diferentes com a cidade agora aniversariante. Mover é uma reflexão sobre como percorremos Fortaleza. Quais são os caminhos que constroem o que conhecemos como cidade?

 

Fortaleza 290 Anos - DOC Matéria da TV O POVO

 

 

Entrevista

Carros: reino ameaçado

Apesar de defender o que chama de “uso consciente” dos automóveis, Mário Ângelo Azevedo, professor do departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), afirma que o carro perdeu espaço na Fortaleza de 290 anos. Em entrevista, o especialista, defende que o transporte individual deixe de ser usado como “armadura” pelo fortalezense.


Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Mário Ângelo: "O uso consciente do carro seria para atividades extras". FOTOS CAMILA DE ALMEIDA

 

O POVO - Segundo dados da Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor), o carro particular ocupa 75% do espaço urbano em Fortaleza e só transporta 20% da população. O que isso representa para o trânsito da Cidade?
Mário Ângelo Azevedo - Representa que o carro ocupa muito espaço e é pouco eficiente — isso apesar de que em Fortaleza não tem uma frota grande, se você for comparar com outras capitais do Brasil. A frota passou de um milhão, mas, desse número, tem 260 mil motocicletas e elas ocupam pouco espaço. A gente precisa trabalhar o transporte coletivo, mas não cabe mais ônibus na Capital, porque está tudo engarrafado. Tem que dar um jeito para que os ônibus se movimentem mais livremente, porque é um meio mais eficiente de transporte. Algumas pessoas dizem que não vão usar ônibus porque vão ser assaltadas, mas isso nos deixa numa espiral, porque estamos usando o carro como uma armadura de proteção e isso é um problema de segurança pública, não é de transportes. Mas não basta tentar copiar modelos de outras cidades, tem que pensar soluções locais.

OP - Como o carro pode ser usado de modo eficiente?
Mário - O uso consciente do carro seria para atividades extras, não para aquela viagem que todo mundo vai de manhã para o trabalho e volta.

OP - Que posição o carro compartilhado ocupa nesse redesenho da cidade?
Mário - Eu nunca acho que o carro seja a solução, mas o compartilhado pode ser útil. Mas se você dá prioridade para automóvel, fazendo vias mais largas, é quase como enxugar gelo, porque se você duplica uma via você está dizendo: “Estava engarrafado e eu construí outra via”. Aí outras pessoas vão comprar carro. É um incentivo ao uso e você não está resolvendo o problema.

OP - Vias com velocidade limitada a 40 km/h ajudam mais ou atrapalham?
Mário - As pessoas acham que tem de ter um via para andar a 80 km/h, mas não é a velocidade que ajuda a passar mais carros. Em São Paulo, eles diminuíram a velocidade das marginais e aumentou o número de veículos que passam. Quando você corre muito, você tem que deixar a distância da frente, você não pode correr o risco de bater se o outro frear. Numa velocidade alta, os carros ficam mais espalhados, ocupam mais vias. Se você baixa velocidade, eles andam mais próximos.

OP - Qual é caminho para a integração dos modais?
Mário - É você entender que o espaço é um só, não multiplica. Tem viaduto, túnel, passarela, e isso é muito bom para o automóvel e não para pessoas. O espaço é um só: tem que andar ônibus, automóvel, pedestre, bicicleta. O automóvel reinou por muito tempo, mas agora perdeu espaços, o reinado está ameaçado.

OP - Na sua avaliação, a presença da bicicleta deve seguir crescente na Capital?
Mário - A ciclofaixa colocou finalmente a bicicleta no cenário. Isso facilita muito a vida para os ciclistas, porque agora eles existem, o motorista dirige pensando que pode encontrá-los. A bicicleta é moda, que está pegando e não sei se dá para desmanchar isso. Fortaleza tem que garantir que isso continue.

OP - Olhando para o futuro, o senhor consegue vislumbrar uma cidade mais fácil de se transitar?
Mário - Tem que ter um plano de mobilidade urbana para deixar tudo amarrado. Tem que planejar e garantir que tenha continuidade, um plano não como um livrinho manual que está na estante e você vai consultar. Tem que ser uma coisa viva que você vai sempre avaliando ao longo do tempo.

 

Webdoc Mover

 

 

 

Terminais de ônibus

Esperas e encontros

Por Paulo Renato Abreu


A fila está longa e, quando o ônibus chegar, certamente vai aparecer um gaiato tentando passar na frente de quem já está esperando em pé. Mesmo assim, o beijo é demorado e o vai-e-vem do atraso alheio parece não atrapalhar. Os protagonistas desse encontro que desafia a correria são Mirella Veríssimo, 19, e Igor Lemos, 20. Cientes de que o motorista não vai esperá-los quando passar, os dois querem aproveitar cada minuto.

O cenário dessa paixão é o Terminal do Papicu, o mais movimentado da Cidade que agora celebra 290 anos. Assim como Mirella e Igor, 295 mil passageiros, em média, passam por lá todos os dias. Para os dois, porém, aquele espaço não é sinônimo de uma espera enfadonha. De segunda a sexta, eles saem da aula, na Faculdade Farias Brito, ao lado do terminal, e vão juntos esperar ônibus distintos. Ela vai rumar para Messejana. Ele, para o Caça e Pesca. Os 12 quilômetros de Fortaleza que dividem os dois são esquecidos enquanto os ônibus não chegam.

Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
O casal Mirella e Igor espera junto o ônibus no Papicu. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


“Temos que aproveitar bem o tempo, né?”, sorri Mirella. Igor completa: “Aqui dentro eu me sinto seguro”. Já o caminho entre a sala de aula do curso de Direito e a fila do ônibus não é tão tranquilo. “O acesso é muito ruim e perigoso. Acho que, para funcionar bem, o terminal precisa de um acesso fácil”, avalia ele. E lá chega o ônibus dela, que se despede com mais um beijo. Ele, então, vai para outra fila, sabendo que amanhã o encontro diário dos dois vai continuar tendo abrigo abaixo das estruturas de metal e concreto.

Saindo do Papicu, o motorista Milton Mota, 51, passa diariamente por, pelo menos, dois terminais. São quase 30 anos de profissão e, antes disso, o balança-balança do ônibus já era conhecido. “Gosto (da profissão) porque vem do meu pai, cresci vendo ele sendo motorista”, conta, apressado. Para Milton, o terminal é uma extensão de casa, onde passar algum tempo já se tornou corriqueiro. “É normal”, afirma, sucinto, sobre as horas gastas nesses espaços urbanos de passagem e permanência. Ele, então, parte em direção a Parangaba, seguindo viagem.

Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Roberto passa pelo Terminal da Parangaba para ir trabalhar. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


Por lá, o carteiro Roberto Oliveira, 40, aguarda batendo o pé. O Terminal da Parangaba recebe, por dia, 205 mil passageiros, que, assim como Roberto, querem chegar logo em casa. Do bairro João XXIII , ele sai de manhã com o carro. No meio do caminho, deixa o veículo no estacionamento dos Correios e vai de ônibus entregar cobranças e afetos. Perto do meio-dia, quando está pela Parangaba, acha o espaço tranquilo. “Dependendo da hora, a melhor opção é mesmo ir para o terminal”, contrapõe, em relação à possibilidade de fazer a integração pelo Bilhete Único.

Sentada no banco ao lado, a vendedora Janaína Sousa, 25, moradora do bairro Meireles, espera tranquila após visita à casa da mãe. “Ela mora aqui perto e eu sempre passo pelo terminal quando venho da casa dela”, conta. Apesar de segurar a bolsa com certa apreensão, ela diz se sentir à vontade no terminal. “Estou esperando uma amiga. A gente marcou aqui porque é mais fácil para se encontrar”, indica, confirmando que, apesar das presas e dos perigos, o terminal é um possível lugar de encontros.

 

Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Ernando trabalha há 18 anos em um dos boxes do Terminal do Papicu. Entre os clientes, gente apressada, que aparece só uma vez, e os fiéis ao serviço. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
 

 

Local de trabalho e solidariedade
O sinal sonoro da ré dos ônibus nem incomoda tanto dentro do Centro de Beleza Papipu. O sonzinho discreto que muda o ambiente toca sucessos de forró e do sertanejo universitário. Assim, o ruído externo não tira a concentração de Ernando Almeida, 38 anos. Pelo contrário, o cabeleireiro até gosta do movimento lá fora, afinal, já são 18 anos cortando cabelo em box no Terminal do Papicu. “Aqui todo dia é uma novidade”, conta. Das 9 horas às 19 horas, o endereço na rua Pereira de Miranda, n° 187, é a casa de Ernando e, lá, ele se sente bem.

“Tem muito cliente que só corta aqui uma vez, quando está aperreado. Mas também tem aqueles que ficam fiéis à gente”, conta. E, mesmo quando não aparece cliente, não falta gente para puxar uma conversa e ajudar a matar o tempo. Quando a noite chega, o ambiente fica menos aconchegante, mas Ernando não perde a tranquilidade. “Já foi bem mais perigoso aqui, agora está melhor”, garante.

Só no Terminal do Papicu são 29 boxes de vendas ocupados também por lanchonetes, papelaria e lojas de variedades. Logo ali ao lado de Ernando, a vendedora Lívia Cavalcante, 28, passa o dia manuseando uma máquina de sorvete. “A gente acaba fazendo amizade com as vizinhas aqui, todo mundo se ajuda”, conta. Ela, porém, já teve muitos problemas com fregueses. “É cada aborrecimento”, reclama, contando que, no corre-corre, muita gente acaba sendo “mal-educada”. Entretanto, ela também já viu atitudes de solidariedade que marcaram positivamente. “Uma senhora passou mal e precisava de ajuda. O socorro não chegou logo, mas muita gente parou pra ajudar, fizeram de tudo. Foi tenso, mas emocionante”, recorda-se.

Elane da Silva, 30, que trabalha na papelaria, faz coro à Lívia afirmando que a ajuda entre passageiros é um ponto positivo nas aglomerações de terminais. “É muita gente passando, pedindo coisas, e o povo ajuda”, conta. Ela, porém, afirma que o cotidiano nesses espaços poderia ter mais gentileza. E é justamente isso que Elane deseja para a Capital no aniversário de 290 anos. “Que todo mundo seja mais educado dentro dos ônibus e nos terminais”, anseia.

Saiba mais
Desde novembro último, os terminais passaram a ser geridos por uma só empresa, a Socicam, que cuida de limpeza, segurança e operações. Foi a maior mudança administrativa desde a criação dos terminais, no começo da década de 1990.

Em março, os terminais começaram a receber reformas de infraestrutura. Papicu, Siqueira e Antônio Bezerra tiveram melhorias como a recuperação dos pisos das plataformas, obras nos banheiros e reforço na sinalização. Lagoa, Conjunto Ceará e Parangaba aguardam as melhorias.

Também com proposta de renovação desses espaços, desde o último dia 6, o projeto Terminal Literário tem levado estantes de livros aos equipamentos. O Papicu foi o primeiro a receber o projeto de compartilhamento gratuito e coletivo de títulos. As estantes estão abertas e o público pode escolher exemplares, levar para casa e devolver após a leitura. O Terminal Literário deve chegar também a Antônio Bezerra, Conjunto Ceará, Lagoa, Messejana, Parangaba e Siqueira.

A comodidade e o medo

Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Edinilo costuma fazer refeições e tirar cochilos no terminal. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


O comerciante Edinilo Leite, 58, tem um motivo bem urgente para ir ao terminal quase todo dia: a fome. “Eu sempre encontro comida do jeito que eu gosto em terminal. É aquela comida bem matuta”, enfatiza. Pagando em média R$ 8 pelo almoço (preço que ele considera “muito justo”), Edinilo acaba fazendo as refeições nesses espaços também pela comodidade. “Eu moro no Tabapuá (bairro de Caucaia), então, para ir pra todo canto, eu passo pelo Terminal do Antônio Bezerra mesmo”, conta, ressaltando que tem uma lanchonete preferida nos terminais do Papicu e da Parangaba.

Pela distância entre os lugares que frequenta em Fortaleza e a própria casa, o comerciante usa os terminais como “hotel”. Neles, ele almoça, cochila, toma um café. Isso não significa, porém, que a privacidade faça parte do cotidiano dele nesse espaço de passagem e permanência. “O ruim é que toda hora aparece gente pedindo as coisas”, reclama. Além da intromissão diária, Edinilo se incomoda com a sensação de insegurança. “Melhorou muito em relação à violência, mas esse pessoal que pede, às vezes, assusta a gente”, confidencia, ressaltando que nunca sofreu nada mais grave.


Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Socorro é cobradora e, apesar do medo, encara o trânsito com alegria. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


Já o medo da cobradora Socorro Saldanha, 32, tem número: ela foi assaltada quatro vezes dentro de ônibus em dez meses. Na linha Parangaba/Papicu/Montese, Socorro já passou muitos perrengues. “O medo é grande, menino”, repete. Na contramão, os terminais, para ela, acabam sendo zonas “neutras” de perigo. Debaixo de um pé de árvore, ela fica jogando conversa fora antes de começar o expediente, às 13 horas. Junto aos colegas de trabalho (incluindo o marido, também cobrador), Socorro inicia a tarde, na Parangaba, com muita alegria.

“Eu faço é rir”, brinca. Segundo ela, para se mover com tranquilidade em Fortaleza, é preciso sorriso fácil. “Eu não me estresso com trânsito nem a pau”, garante e, assim, encontra outros caminhos para encarar as ruas e avenidas da Capital.


OS TERMINAIS EM NÚMEROS

OS SETE TERMINAIS DE INTEGRAÇÃO DE FORTALEZA:

Antônio Bezerra, que recebe quase 220 mil passageiros por dia em 50 linhas de ônibus.

Conjunto Ceará, com cerca de 75 mil passageiros por dia em 20 linhas.

Lagoa, onde 57 mil passageiros passam por dia em 30 linhas de ônibus.

Messejana, que recebe cerca de 150 mil passageiros em 52 linhas de ônibus passando diariamente.

Papicu, com 295 mil passageiros por dia em 55 linhas de ônibus.

Parangaba, onde mais de 200 mil passageiros transitam diariamente em 57 linhas de ônibus.

Siqueira, em que quase 170 mil passageiros transitam por dia em 48 linhas de ônibus.

FONTE: EMPRESA DE TRANSPORTE URBANO DE FORTALEZA (ETUFOR)

 

 

Migração pendular

Fortaleza, uma viagem

Por Paulo Renato Abreu


O trajeto começa com uma caminhada silenciosa até a esquina. É início de tarde, quase ninguém na rua, e Maddu Andrade, 17, espera a topique para iniciar o mover diário. Professora de balé, ela sabe que as pequenas alunas esperam ansiosas e, por isso, não se atrasa na travessia do Conjunto Jereissati, no Maracanaú, até o Jardim Guanabara, em Fortaleza. O transporte alternativo chega, quase sempre já lotado, e leva a jovem até a estação de metrô, onde ela se prepara para o momento mais tranquilo da viagem.

Na linha sul do metrô, Maddu não enfrenta lotação, pois escapa do horário de pico dos demais cidadãos pendulares, que saem todos os dias de uma cidade vizinha pela manhã para voltar à noite. Ela, então, corre bairros como Alto Alegre, Mondubim e Parangaba até chegar à estação próxima ao shopping Benfica. De lá, segue para a parada de ônibus, onde aguarda o próximo que for para o terminal do Antônio Bezerra. Por fim, pega o 212 - Jardim Guanabara/Nova Assunção I. Nesse percurso, a professora gasta duas horas para ir e duas para voltar, passando, assim, mais tempo em Fortaleza do que em casa.


Foto: CAMILA DE ALMEIDA
Maddu fica quatro horas, a cada dia, no trânsito entre Maracanaú e Fortaleza. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


Todos os dias, a Capital recebe 133 mil pessoas que se deslocam diariamente de cidades vizinhas para trabalhar e/ou estudar por aqui. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o município de Maddu — Maracanaú — é o segundo em números absolutos com mais habitantes nessa migração, perdendo apenas para Caucaia. No topo da lista estão também cidades como Eusébio, Aquiraz e Itaitinga, todas da Região Metropolitana. No ir e vir cotidiano, a jovem professora acaba olhando Fortaleza diferente a cada viagem.

“Amo demais esta Cidade”, confessa, não escondendo a preferência pela Capital. Ela, inclusive, mora na Região Metropolitana somente há três anos e é por conta de “problemas pessoais”, que agora prefere deixar para lá. “Eu gosto também do Maracanaú, mas Fortaleza é a minha cidade”, confirma. Aos olhos de Maddu, o município que celebra 290 anos muda constantemente. “A cidade é maior, tem muita coisa diferente para fazer a cada dia”, conta.

O amor por Fortaleza vem também cercado de dificuldades, especialmente por carências do transporte público. Maddu, entretanto, vai desviando dos empecilhos e aproveita a viagem cotidiana como pode. No caminho, ela lê, ouve música e se atualiza sobre as notícias pelo celular, sempre equilibrando pressa, ansiedade e permanências.

É na Capital onde ela encontra o trabalho, os amigos e os amores. É em Fortaleza também onde a professora vive as artes que norteiam seus dias. Além da dança, faz teatro e é artista plástica. “Ano que vem, eu quero morar aqui”, antecipa, revelando preferência pelo Benfica, apesar de o “melhor bairro” ser o Centro. “Lá tem o Theatro José de Alencar, o Passeio Público, todos os melhores lugares”. Maddu aproveita a Capital até cerca de 21 horas, quando tem de voltar para Maracanaú.

Para a cidade aniversariante, ela deseja: “Que com o passar dos anos possa haver melhorias e mais acesso à Cultura e à Arte”, projeta, garantindo que no próximo abril quer comemorar Fortaleza mais de perto.

A cidade que é casa fora de casa

A ponte sobre o rio Ceará demarca a transição entre as duas cidades de Camila Forte, 25. A jovem administradora mora no bairro Capuan, em Caucaia, mas trabalha na Aldeota, em Fortaleza. Apesar do tempo gasto todos os dias, o trajeto, para ela, é um presente. “O percurso que eu faço é o meu momento comigo. Eu venho escutando as minhas músicas, venho pelo litoral, observando a paisagem”, conta, confessando que, pelo mar, desvia do caminho pela avenida Bezerra de Menezes para ir pela Leste-Oeste.


Desde a adolescência estudando e trabalhando em Fortaleza, Camila não quer sair do bairro onde vive. “Não penso em me mudar, não faz parte do meu plano de vida hoje”, conta. “Prefiro continuar morando em Caucaia e todo dia ter esse momento de cruzar as cidades. Assim, eu tenho mais opções. Fortaleza é a minha casa fora de casa”, formula.


Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Camila tem em Fortaleza uma casa fora de casa. Ela mora em Caucaia. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA


No município da Região Metropolitana, ela aproveita a tranquilidade. “Meu bairro é bem calmo, mas não tenho muitas possibilidades de diversão”. E é a Capital que oferece essa badalação. Mesmo depois de se deslocar de segunda a sexta para o trabalho e ainda sábado de manhã para a pós-graduação, Camila sempre está em Fortaleza nos fins de semana. “Frequento o (Centro) Dragão do Mar, o calçadão da avenida Beira Mar... Gosto muito da orla”. O equipamento cultural da Praia de Iracema e o entorno são o xodó dela. “Lá eu encontro tudo o que eu gosto, quando eu quero algo mais cultural tem e quando eu quero um barzinho à noite, eu também encontro”.


A travessia de Camila é mais fácil desde 2014, quando a viagem diária passou a ser de carro. Antes, ela pegava, pelo menos, seis ônibus por dia nesse processo. Agora vai para a Aldeota sozinha e volta dando carona para colegas de trabalho. Reclama mesmo dos engarrafamentos: “Mas é algo que eu escolhi não me estressar. Eu opto por não ficar pensando no trânsito que eu estou enfrentando e prefiro olhar a praia”, ensina, destacando que quase todo dia para o carro para fotografar algo bonito que Fortaleza esconde. O filtro da foto é o olhar de novidade de quem (re)descobre a Cidade todo dia.

 

 

Artigo

Pedalar para encontrar

Por Grazi Barros

Meio às agonias e automatismos que a rotina nos impele, pelo menos vez ou outra, a cidade tende a virar simplesmente espaço a ser cruzado, feito corredor. É fácil esquecer-se de tentar fazer do caminho um meio para conhecer a cidade e, do (re)conhecimento, uma oportunidade para gostar — e transformar o gostar na vontade de cuidar, permanecer junto. Depois de 21 anos utilizando o transporte público, com seus desencantos e encantos (por que onde tem gente tem possibilidade de encantamento), aos poucos o ônibus foi sendo trocado pela bicicleta. Daí, vieram muitas mudanças: ao mudar o transporte que escolho para me locomover na cidade, mudo a escala em que a vejo; assim, muda também o modo de sentir e interagir com ela.

A bicicleta me possibilitou gostar mais de Fortaleza. Ser ciclista aqui, no entanto, é ter que enfrentar um trânsito hostil e desumanizado, na maior parte das vezes em que saímos de casa. Ser ciclista e mulher em Fortaleza é ter de lidar, para além desses fatores, com o medo da violência sexual, do assédio verbal ou físico que pode vir do motorista do carro, do ambulante na calçada, do moço da borracharia, do motoqueiro parado do seu lado no sinal vermelho (...).


Foto: FOTOS CAMILA DE ALMEIDA
Grazi Barros é integrante do coletivo Ciclanas - Mulheres de Bicicleta no Trânsito de Fortaleza e mestranda em comunicação. FOTOS CAMILA DE ALMEIDA

 

Ser ciclista e mulher em Fortaleza é ter que ouvir de familiares, amigos, colegas de trabalho ou mesmo de desconhecidos, discursos desencorajadores travestidos de alertas e conselhos, que se pretendem gentis, sobre os perigos que estar na rua podem representar.

Por que resistir? Porque a rua e a bicicleta são sedutoras, despertam e oferecem prazeres peculiares que, depois de descobertos, é impossível abrir mão de senti-los. Porque a gente quer gozar, explorar, conhecer, descobrir todo dia um pouco mais a rua, a cidade, enfim, tudo aquilo que se ama. E como resistir? Encontrando outros pra chamar de nós. Apesar de a bicicleta ser predominantemente um veículo de uso individual, o que ela mais me ensinou ao longo do um ano e meio que venho pedalando por Fortaleza é sobre encontrar maneiras de saber que não estou só.

Agir com empatia e estar sensível para percebê-la no gesto, no olhar do outro e, principalmente, da outra — porque por sermos mulheres partilhamos uma condição particular de estar no mundo, de viver a cidade. E nossos encontros nos fortalecem para enfrentar os pesares. Hoje entendo que foi a bicicleta que me permitiu fazer dos meus trajetos oportunidades para ver melhor a cidade — mas não só enxergá-la, senti-la, como quando a gente pede para ver algo, mas, de imediato, não movemos os olhos e sim esticamos os braços e abrimos as mãos. Todo dia a bicicleta me deixa ver de perto a rua e assim ela potencializa a vontade dos encontros e das belas possibilidades que nascem deles.

Dedico esse texto a todos os bons encontros que pedalar por Fortaleza já me proporcionou. Em especial, dedico às mulheres que todos os dias põem seus corpos nas ruas, no trânsito, no mundo e assim reafirmam que sim, a rua também é nossa.

 

 

MOVER

Especial Mover

2º caderno em comemoração ao aniversário de 290 anos de Fortaleza