Bolsonaro em 1000 dias - Rejeitado, armado e perigoso à democracia

Por Cláudio Ribeiro

Jair Bolsonaro completa, em 26 de setembro de 2021, seus 1.000 dias de uma gestão cheia de polêmicas, tensões, confusões. Mais barracos que pontes, para usar termos entre a baixaria e a diplomacia. Dias complexos. De quase 590 mil mortes saídas de uma pandemia mal gerida, negada e mal assistida. Dias de ódio, de coação à imprensa, de atentados e ameaças à democracia, de xingamentos e desrespeito, agressões do Executivo ao Judiciário.

O Brasil dividiu-se ainda mais. A inflação corrói o bolso, a gasolina bateu R$ 7 - ou mais -, as mentiras de blogueiros amigos foram patrocinadas pelo Planalto, para o Planalto, pelos chegados do Planalto. Quiseram "passar a boiada" nas leis ambientais e no que mais fosse. O Centrão pegou assentos e cargos. É um governo em que os cabides dos escalões da gestão têm tantos paletós quanto fardamentos verde-olivas.

Será muito trabalho para os autores dos futuros livros de história. Mas as charges do O POVO cuidaram de contar com gracejo o que está sendo o bolsonarismo no poder. Uma opinião com o traço habilidoso do chargista Clayton, bem humorada. Mesmo sobre coisa muito séria, mesmo que quase sempre o assunto nem fosse engraçado. O governo e seus personagens foram muitas vezes mais bizarros e distorcidos do que o próprio desenho.

Para abrir o registro do que foram esses 1.000 dias, O POVO bancou um momento democrático e lançou, em seu portal, a eleição das charges que mais representam o governo Bolsonaro. De 8.320 votos computados para 50 charges selecionadas previamente, as mais votadas foram:
- "O machado de Weintraub devasta o Ministério da Educação" (7,45%);
- "A previsão mística do futuro de aumentos nas contas do trabalhador brasileiro" (7,33%);
- "A crença da não existência da corrupção no governo pela hipnose de Jair Bolsonaro" (6,53%);
- "Insensibilidade e desumanidade de Jair Bolsonaro com as mortes pelos coronavírus" (6,14%);

As categorias mais votadas foram das charges de Política (28,62%) e Educação/Cultura (24,03%). As mais compartilhadas foram as de Saúde (26,61%) e Política (22,54%). A plataforma mais escolhida para o compartilhamento foi o WhatsApp, principalmente no dia 27/8. A votação foi realizada entre os últimos dias 26/8 e 7/9. Das 943 charges analisadas entre 2/1/2019 e 31/7/2021, o governo Bolsonaro foi tema em 547 delas (61%).

Esta eleição é parte do projeto “Bolsonaro 1.000 dias”. É um dossiê jornalístico que apresenta análises de informações geradas pelo governo. Terá abordagens diversas e cruza várias plataformas e editorias do Grupo de Comunicação O POVO (GCOP). A coordenação é do Data.doc, o Núcleo de Jornalismo de Dados do O POVO.

Economia
Numa mesa, diante de um cartaz numa parede em que está escrito 'Veja seu futuro', uma cigana lê a mão de um operário. Ela diz: 'Vejo aumentos na sua vida'. Com cara de assustado, o trabalhador pergunta: 'De salário?'. E ela responde: 'Não! De aluguel, luz, água, IPTU...'. Publicada em 30/12/2019.

A previsão mística do futuro de aumentos nas contas do trabalhador brasileiro

Vestido como um coelho da Páscoa, Bolsonaro segura uma grande cesta com ovos de chocolate diante de um homem vestido como um operário, de macacão e capacete. O presidente entrega para o trabalhador um ovo bem pequeno - que tem uma seta com a indicação 'auxílio emergencial'. Na cesta, num ovo muito maior está escrito 'Centrão'. Publicada em 4/4/2021.

Ao Centrão, o maior ovo da cesta de presentes do “coelho da Páscoa” Jair Bolsonaro, já ao trabalhador, o menor para o Auxílio Emergencial

Educação e cultura
Abraham Weintraub usa um machado para derrubar uma floresta de lápis - vários já ao chão e alguns ainda de pé. Acima está escrito 'Ministério da Educação'. A charge é em referência a cortes e contingenciamento de verbas do setor, anunciados pelo então ministro em seus primeiros dias na gestão Bolsonaro. Publicada em 4/5/2019.

O machado de Weintraub devasta o Ministério da Educação

O ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, está montado num jegue. O animal dá um coice na sigla do ministério (MEC). A marca deixada pelas duas ferraduras derruba e substitui a letra 'M' da sigla. Acima está escrito 'Velho new branding' (nova marca, na tradução do termo em inglês). Publicada em 26/9/2020. (*) A charge é assinada por Jefferson Portela, por conta das férias do titular da seção, Clayton Rebouças.

Milton Ribeiro deixa sua marca no Ministério da Educação

Meio ambiente
Montado num cavalo e com um berrante na mão, Ricardo Salles conduz uma boiada para passar na 'Porteira da Vergonha', na saída do curral. Ele está trajado como um peão boiadeiro. A referência é à frase dita por Salles durante reunião ministerial em 22 de abril de 2020, em que ele sugere que o governo deveria 'passar a boiada' e simplificar regras de proteção ambiental e da área de agricultura, naquele momento em que as atenções estavam mais voltadas para a pandemia. Publicada em 30/7/2020.

Sem vergonha, Ricardo Salles passa a boiada de desrespeitos ao meio ambiente

O petróleo derramado de um barril de petróleo escorre formando o mapa do Brasil como uma grande mancha escura. Referência às manchas que poluíram praias brasileiras em 2019. Publicada em 14/10/2019.

Desastre ambiental nas praias brasileiras com vazamento de óleo

Política
Com as sobrancelhas arqueadas, bem grossas, e o olhar fixo para quem o vê, Bolsonaro mostra um pêndulo usado para hipnose, que se balança em sua mão direita. A mão esquerda também está estendida para o lado. O desenho no centro do pêndulo é uma espiral infinita. E abaixo a frase se repete duas vezes: 'No meu governo não tem corrupção...'. A palavra corrupção está destacada em negrito. Ele usa paletó. Publicada em 13/7/2021.

A crença da não existência da corrupção no governo pela hipnose de Jair Bolsonaro

A referência é à série americana Pinky e Cérebro, ficção animada em que dois ratos brancos de laboratório fazem planos para dominar o mundo. Bolsonaro aparece como Pinky, o rato magricela, infantil e abobalhado. Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, surge como Cérebro, o mau-humorado que sempre é atrapalhado pelo colega. 'Que faremos hoje, Cérebro?', diz Pinky-Bolsonaro. 'O mesmo que fazemos todos os dias, tentar dominar o mundo enviando twitters', responde Cérebro-Trump, de cara fechada, com as mãos para trás. Publicada em 20/3/2019.

Donald Trump e Jair Bolsonaro, cúmplices na tentativa de domínio pelas redes sociais

Saúde
Com uma vassoura na mão direita, Bolsonaro varre cadáveres para debaixo de um tapete vermelho, que ele levanta com a mão esquerda. E diz a frase: 'Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?'. O presidente usa paletó e tem o rosto raivoso. A palavra 'mimimi' está destacada em negrito. Publicada em 06/03/2021.

Insensibilidade e desumanidade de Jair Bolsonaro com as mortes pelos coronavírus

Com a palavra 'Enamorados' acima do desenho, Bolsonaro e o Coronavírus, personificado com o corpo humano, juntam suas mãos para formar um mesmo coraçãozinho. Saltam corações vermelhos do pensamento de cada um. Ambos usam paletós. Publicada em 12/6/2021.

No Dia dos Namorados, afinidades e afetos de Jair Bolsonaro e o coronavírus

ENTREVISTA - COMO AS CHARGES MOSTRAM O PERSONAGEM BOLSONARO NA IMPRENSA BRASILEIRA

O professor Paulo Eduardo Ramos, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), analisa a evolução da linha crítica feita a Jair Bolsonaro nas charges pelo Brasil, desde seus tempos de parlamento até hoje, em 1000 dias como Presidente da República. Ramos é pós-doutor, com pesquisas em produções gráficas, linguagens e comunicação.

OUTROS MIL DIAS

Em 26 de setembro de 2021, Jair Bolsonaro completa seu milhar de dias como Presidente da República. Desde a redemocratização brasileira, em 1985, dos 8 nomes que já ocuparam o cargo apenas três não alcançaram o 1000º dia de governo: Fernando Collor (932 dias, afastado por impeachment), Itamar Franco (821 dias, era o vice de Collor, finalizou o mandato) e Michel Temer (852 dias, era o vice de Dilma Rousseff, também completou o mandato). FHC e Lula permaneceram 8 anos, 2.922 dias cada. E Dilma chegou a 2.065 dias, afastada no segundo ano do segundo mandato pelo impeachment.

1985

Foto do ex-presidente José Sarney

José Sarney

15/3/1985 a 15/3/1990

1990

Foto do ex-presidente Fernando Collor

Fernando Collor

15/3/1990 a 2/10/1992

1992

Itamar Franco

02/10/1992 a 31/12/1994

1995

Foto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso

01/1/1995 a 01/1/2003

2003

Lula

01/1/2003 a 01/1/2011

2011

Dilma Rousseff

01/1/2011 a 12/05/2016

2016

Foto do ex-presidente Michel Temer

Michel Temer

31/8/2016 a 01/1/2019

2019

Foto do atual presidente Jair Bolsonaro

Jair Bolsonaro

presente, posse 01/1/2019

Pelo impeachment, nunca pediram tanto para um presidente sair

Por Cláudio Ribeiro

Bolsonaro completa o seu dia 1.000 à frente da Presidência da República. Seu jeito de governar tem ataques à democracia e a instituições como Judiciário e imprensa, grande número de decretos e medidas provisórias e o armamentismo como plataforma política. Nesse tempo de gestão, lidera com folga os pedidos de impeachment.

Em até 1.000 dias de mandato, nenhum presidente da República Federativa do Brasil sofreu mais pedidos de impeachment do que Jair Bolsonaro. Foram 136 formalizados até o último dia 25 de agosto. E o noticiário tem deixado no ar a possibilidade de que esses requerimentos aumentem.

As acusações contra Bolsonaro citam crimes eleitorais, crimes de responsabilidade/omissão, por quebras de decoro, denúncias de corrupção, também por ferir o estado democrático de direito e ameaçar suas instituições e por crimes de saúde pública - no caso, como principal responsável pelas 590 mil mortes até agora por Covid no País.

É da categoria saúde pública/Covid que sai quase a metade das justificativas: 67 dos pedidos registrados (49,26%). Outros 22,7% indicam crime de responsabilidade, 14,7% se referem a ações antidemocráticas. Entre o segundo e este terceiro ano de seu mandato, em que convivemos com a pandemia do coronavírus, 131 requerimentos de impeachment chegaram à Câmara Federal.

O total de pedidos protocolados para a saída antecipada de Bolsonaro já é um recorde com folga. Mesmo tendo nessa mesma prateleira dois ex-presidentes, Fernando Collor (1990-outubro/1992) e Dilma Rousseff (2011-maio/2016), os únicos da história brasileira que perderam seus cargos pelo julgamento político fora do voto popular.

Collor (29) e Dilma (4) nem são os que mais se aproximam de Bolsonaro no prazo até o 1000º dia de gestão. O que chega mais perto, com 31 solicitações de impeachment, é Michel Temer, presidente por 852 dias (31/8/2016 a 1º/1/2019). Ele era o vice de Dilma e assumiu justamente quando ela foi afastada da Presidência para ser julgada destituída do cargo na sequência.

Fernando Henrique Cardoso e Lula sofreram 3 e 10 pedidos de impedimento, respectivamente nos primeiros 1.000 dias - ambos tiveram dois mandatos. Itamar Franco foi presidente por 821 dias (2/10/1992 a 31/12/1994), herdou a Presidência com a saída de Collor, e foi citado em 4 pedidos.

Em números absolutos e por todo o tempo de governo, Bolsonaro está muito à frente com 136 pedidos para ser deposto. É seguido por Dilma (68), Lula (37), Temer (31), Collor (29), FHC (24) e Itamar (4). Se sofrer o impeachment, o presidente deposto torna-se inelegível por oito anos.

O Data.doc, Núcleo de Dados do O POVO, obteve as informações junto à Câmara Federal, com as solicitações feitas a partir do governo Collor, o primeiro com eleições diretas desde a ditadura militar.

Qualquer cidadão, entidade ou partido político pode protocolar um pedido de impeachment. Também pode ser feito coletivamente. O primeiro dos 136 contra Bolsonaro foi apresentado já no dia 1º/2/2019, um mês após assumir o cargo. Foi feito a mão, numa carta de três folhas, pelo advogado Antônio Jocélio da Rocha. Alegou os crimes de responsabilidade e omissão "por manter o povo refém da dívida pública brasileira 100% criminosa". O pedido foi considerado apócrifo e arquivado.

Capa pedido impeachment

O capitão decretou mais que os marechais e generais

Já no primeiro ano de gestão, os números evidenciaram o que viria a ser tendência: Jair Bolsonaro (sem partido) tocou seu governo muito à base dos decretos. 2019 foi, ao longo de três décadas, o ano em que um presidente da República mais assinou os atos administrativos dentro de um período de 12 meses no Brasil. Foram 537 ordens emanadas pela força da caneta, a maior quantidade desde 1991.

E, desde então, já foram muitos mais desses atos. Bolsonaro já bateu a casa dos 1.136 decretos. Números até o dia 14 de setembro de 2021, data contabilizada no levantamento do Data.doc, o Núcleo de Dados do O POVO. Para este recorte do especial "Bolsonaro 1.000 dias", foram analisados mais de 30 mil decretos, coletados do site do Governo Federal.

Se comparada a marca dos 1.000 dias na galeria dos ex-presidentes com o atual do Planalto, à exceção de José (Sarney, com 3.596 decretos) e Fernando (Collor, 1.491), Jair Messias em menos tempo assinou mais que o dobro dos atos normas em relação a todo o período da ditadura militar, que durou de 1964 a 1985.

Juntos, os marechais Castello Branco e Costa e Silva e os generais Garrastazu Médici Ernesto Geisel e João Figueiredo assinaram 526 decretos. Menos da metade das rubricas do capitão. E aqueles foram tempos obscuros e inflexíveis, a mão de ferro, de opressão, sem democracia.

A liberação dos decretos é de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo - presidentes, governadores ou prefeitos. Os atos são normativos, servem para regulamentar (corrigir, ajustar, detalhar) e podem até alterar uma legislação. Por exemplo, ao definir o acesso a mais armas para cidadãos brasileiros, o presidente regulamentou o Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/2003) através de pelo menos quatro decretos (10.627, 10.628, 10.629 e 10.630) que revogaram decretos anteriores.

Eles estão vigentes desde abril de 2021, mas até o fechamento desta reportagem estavam na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) para serem reavaliados. O volume de revogações, extinções de decretos anteriores e normatizações por decretos ganhou o apelido de “revogaço”.

No caso das medidas provisórias, Bolsonaro também se animou nas canetadas. Foram 199 MPs assinadas até o dia 14 de setembro deste ano. Mais que nos primeiros 1.000 dias dos mandatos de Lula mandato 1 (151), Lula 2 (126), Temer (126) e Dilma 1 e 2 (105+77).

A MP é outro dispositivo usado pelo Executivo para finalidade semelhante à dos decretos. Tem caráter de urgência, com vigência imediata logo após a publicação no Diário Oficial. Mas só vale por 120 dias se não for convertida em lei, endossada em votação pelo Legislativo.

No dia 14 de setembro último, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), devolveu ao Planalto a MP que alterava o Marco Civil da Internet, assinada por Bolsonaro. Motivo: a insegurança jurídica. A MP protegia as fake news, limitaria a possibilidade de remover conteúdos falsos publicados nas redes sociais. No mesmo dia, a ministra do STF, Rosa Weber, suspendeu a eficácia da MP, atendendo pedido do procurador-geral da República Augusto Aras que recomendou a suspensão.

Número Cumulativo de pedidos de impeachment por presidente

Desde a redemocratização, apenas três ex-presidentes não completaram mil dias de governo, são eles o atual senador, Fernando Collor (PROS-AL) , Michel Temer (MDB) e Itamar Franco (In memorian). Todos esses chegaram a ocupar o cargo por 932 dias, 852 dias e 821 dias, respectivamente. Cada um teve 29, 31 e 4 pedidos de impeachment.

No mesmo período, Bolsonaro somava 132, 116 e 102 pedidos de impedimento. Ou seja, 455%, 374% e 2550% a mais que seus seus antecessores.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dilma Rousseff (PT) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegaram aos primeiros mil dias de governo com 10, 4 e 3 pedidos de impeachment, respectivamente. No mesmo período, Bolsonaro soma 136 pedidos. Ou seja: 1360% a mais que os números de Lula, 3400% de Dilma e 4533% de FHC.

Número de Decretos até mil dias de cada governo

Governar por decreto é uma característica que já se cristaliza no governo Bolsonaro, superando diversos antecessores em períodos equivalentes - inclusive mais do que dobrou o número de decretos dos primeiros mil dias da ditadura militar. Em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro decretou 539 vezes, tornando 2019 o ano com maior número das últimas três décadas.

Número de Medidas Provisórias (MPs) até mil dias de cada governo

O Data.doc levantou todas as medidas provisórias posteriores à emenda nº 32 (de 2001). O gráfico apresenta o número de MPs por governo em períodos equivalentes (de 0 até 1000 dias de governo). Bolsonaro já se destaca neste tipo de medida, liderando o ranking com 199 MPs, seguido por Lula , em seu primeiro mandato, (151), Lula , segundo mandato, (126) e Temer (126).

Excluindo as MPs em tramitação do mesmo cenário, para analisar a proporção de Medidas Provisórias que viraram leis ou perdem efeito por diferentes motivos, observamos que Bolsonaro também lidera o ranking da ineficiência: 47% das suas MPs não foram convertidas em lei, seguido por Temer (44%), Dilma (referente ao segundo mandato), 25%, e Dilma (referente ao primeiro mandato), 21%.

Foto de Felipe Santa Cruz

Felipe Santa Cruz - OAB Nacional

Advogado e presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasi - no triênio 2019-2022

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Ataques à democracia e a seus pilares

Por Cláudio Ribeiro

O conturbado 7 de setembro de 2021 foi o 981º dia de Jair Bolsonaro como presidente da República. Foi o momento deste governo, pelo menos por enquanto, em que a corda da democracia brasileira mais foi esticada. E ela vem sendo espichada ao limite. Falamos aqui de estado democrático de direito, respeito à imprensa livre, à Constituição, harmonia entre os poderes, civilidade.

O titular do Planalto salivou seus impropérios de costume no 199º aniversário da Independência do Brasil. Xingou de "canalha" o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e pregou a desobediência às decisões do magistrado. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luis Roberto Barroso, também é alvo preferido de Bolsonaro - por bancar que a volta do voto impresso é desnecessária.

Moraes é relator do inquérito nº 4828, aberto em 2020 no STF, que apura a disseminação de notícias falsas por milícias digitais que incitam atos antidemocráticos - como o fechamento da Corte e do Congresso Nacional. O inquérito das fake news já soma perto de 1.500 páginas em seis volumes. Pelo menos oito pessoas tiveram prisões decretadas. Desde agosto deste ano, Bolsonaro é oficialmente investigado no inquérito.

Pilar da democracia, a imprensa é dos alvos preferidos do bolsonarismo. Na cobertura das manifestações dos seguidores bolsonaristas, teriam sido pelo menos 17 profissionais de imprensa vítimas de agressões verbais e abordagens intimidatórias nas ruas somente neste dia. Desses casos, 15 foram levantados pela Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) em relatos e notícias. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) contabilizou quatro casos, mas dois deles diferem dos listados pela Fenaj.

Essa animosidade com a imprensa só tem piorado com o bolsonarismo. Diretamente por quem é da gestão ou por apoiadores. "Em 2020, a situação agravou-se. Houve uma verdadeira explosão da violência contra jornalistas e contra a imprensa de um modo geral. Foram registrados 428 episódios, 105,77% a mais do que em 2019", apontou o "Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa – 2020", o mais recente elaborado pela Fenaj. E 175 deles (40,89%) partiram de Bolsonaro.

Carlos Holanda, repórter de Política do O POVO, se viu cercado e hostilizado por apoiadores do presidente quando cobria as manifestações do dia 19 de abril de 2020. Os atos pediam intervenção militar no Brasil. Ele estava ao lado do repórter fotográfico Aurélio Alves. “Fomos agredidos verbalmente, de forma muito pesada. Nos cercaram, ofenderam. Uma situação de muito desconforto.Nos mantivemos calmos, mas em alerta (sob possível agressão física). Temos convivido com isso sistematicamente. É um comportamento que eles ecoam. Reproduzem o que assistem do presidente, que não deveria encorajar, mas estimula esses gestos”, avalia o jornalista.

Em 2021, até o último dia 13, num outro recorte dessas mesmas investidas, a Abraji contabilizou 259 alertas de agressões, que englobam abuso de poder estatal, restrições à internet, processos e setenças judiciais, discursos estigmatizantes, ataques e investidas contra o acesso à informação. Em igual período do ano passado, esses alertas chegaram a 203. Quando se compara 2019 e 2020, essa variação é de 352%, ou seja, os alertas passaram de 81 para 366. Contabilizando 448 alertas nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro.

A metodologia utilizada pela Abraji considera as agressões contra a liberdade de expressão com base nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, relacionados com a livre expressão e o acesso à informação, codificados como objetivos 16.10.1 e 16.10.2. O levantamento compõe o dossiê Voces Del Sur, com dados de outras dez organizações da sociedade civil da América Latina.

O monitoramento da ong Repórteres Sem Fronteiras também apresenta número elevados, foram 331 ataques somente no primeiro semestre deste ano, seja a jornalistas ou a veículos de imprensa. Em todos esses monitoramentos, o presidente é o autor da maior parte das agressões, de 20% a 28% dos casos. Quando não é ele, são seus filhos, aliados políticos ou seguidores bolsonaristas. O meio digital, via redes sociais, é com destaque a principal arena dessas agressões.

Bolsonaro trouxe para perto de sua gestão como presidente da República a sombra que costumou cultuar nos seus sete mandatos como deputado federal (1991-2018).

Samira de Castro, vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Ceará (Sindjorce), orienta à categoria que o primeiro passo, caso passem pela situação de agressão (física, verbal ou virtual), comunicar o caso ao Sindicato e registrar um Boletim de Ocorrência. “A institucionalização da violência é o modo de governar de Bolsonaro”, afirma.

Crescimento da violência contra jornalistas e ataques à liberdade de imprensa entre 2019 e 2020 (FENAJ)

A Federação Nacional dos Jornalistas apontou um crescimento de 106% da violência contra jornalistas e ataques à liberdade de imprensa no Brasil entre 2019 e 2020.

Em seu primeiro ano de governo (2019), Bolsonaro foi responsável por mais da metade dos episódios (54%). E em 2020 manteve o triste protagonismo, atuando em 41% dos ataques.

Principais Agressores à imprensa e à liberdade de expressão no primeiro semestre de 2021, segundo a Repórteres Sem Fronteiras - RSF

Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Flávio Bolsonaro juntos, foram os responsáveis por 293 dos 331 ataques levantados no primeiro semestre de 2021. Ou seja, 88,5% dos episódios. A família Bolsonaro e seus ministros mais alinhados ideologicamente concentram os ataques à imprensa levantados pela ong Repórteres Sem Fronteiras.

Onde mais se cometeram ataques à liberdade de imprensa durante o governo Bolsonaro?

Segundo o levantamento da ABRAJI, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, redutos de Bolsonaro e seus filhos parlamentares, concentraram 255 dos 448 (57%) ataques em 2019 e 2020.

Foto de Marcelo Träsel

Marcelo Träsel - Abraji

Presidente da Abraji e professor na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade

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Foto de Demitri Túlio

Demitri Túlio - Repórter OP

Editor, colunista e repórter especial do O POVO

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De “arminha” na mão – mas podem ser fuzis

Em seus 1000 dias na cadeira do Palácio do Planalto, Bolsonaro botou para andar a passos acelerados sua proposta armamentista. O que já falava antes dos tempos da campanha eleitoral, levou para suas canetadas presidenciais. Criou facilidades tributárias, ironizou os críticos da flexibilização das regras para o acesso a armas de fogo. Juntou até fuzis e feijão numa mesma frase. Fez da pose da "arminha" sua marca. Não à toa, os registros de posse de armas dobraram no Brasil de 2017 para 2020.

Os números saltaram de 637.972 para 1.279.491 registros ativos no período, conforme o Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Variação de 100,6%. A Polícia Federal, que responde pelo Sinarm, não disponibilizou informações sobre o ano 2018.

Nos dados por unidades da federação, foi justamente na Capital do País onde o índice de armas teve a alta mais expressiva: 562%. De 35.693 registradas em 2017, subiram para 236.296 no ano passado. Mais de seis vezes e meia acima no intervalo dos quatro anos. E é onde há mais armas em número absoluto.

São Paulo era o primeiro até 2017 (134.496), passou a segundo com mais armas (173.061 em 2020), mas teve a menor elevação (28,7%) entre os Estados. Além do DF, mais 10 estados tiveram o crescimento de registros de posse de armas acima dos 100%: Paraíba (151,4%), Amapá (128,5%), Rondônia (122,4%), Sergipe (122%), Espírito Santo (121,8%), Tocantins (121,5%), Piauí (119,3%), Roraima (108,4%), Minas Gerais (103,1%) e Bahia (100,8%). No Ceará, alta também relevante: 63,6%. Foram 13.430 armas registradas em 2017, 17.560 em 2019 e 21.973 em 2020.

Entre registros de novas armas, a elevação chegou a 97,1% entre 2019 (94.416) e 2020 (186.071) no País – sendo 22.068 delas apenas em Minas Gerais (+131,1%). Cada pessoa no Brasil hoje pode comprar até quatro armas de fogo. Antes do decreto de agosto de 2020 eram duas. Entre pessoas físicas que se apresentaram como caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs), os registros junto ao Exército Brasileiro no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) subiram 43,3% entre 2019 (200.178) e 2020 (286.901).

Registros de posse de armas de fogo entre 2017 e 2020 no Brasil

Entre 2017 e 2020 o Brasil mais do que dobrou o número de registros de posse de armas de fogo, com o crescimento de 100,6%. O destaque é da região Centro-Oeste, que mais do que triplicou o número em três anos.

A região Sudeste continua liderando o ranking, com cerca de 370 mil registros, seguida da região Centro-Oeste (350 mil), Sul (280 mil), Nordeste (184 mil) e Norte (94 mil).

Registros de posse de armas de fogo por estado

O ranking por estados agora é liderado pelo Distrito Federal, que saltou de 35 para 236 mil registros, aproximadamente. Em seguida aparecem São Paulo (cerca de 173 mil), Rio Grande do Sul (122 mil), Minas Gerais (110 mil) e Santa Catarina (80 mil).

Onde mais cresceu a posse de armas de fogo entre 2017 e 2020?

Apesar do destaque para o Distrito Federal, que registrou um crescimento expressivo de 562% no número de registros de posse de armas de fogo, outros 10 estados mais do que dobraram os seus números: PB; AP; RO; SE; ES; TO; PI; RR; MG e BA.

A média de crescimento dos estados foi de 94%. O Ceará, que é o 15º em números de registros (22 mil, aproximadamente), ficou entre os cinco estados que menos evoluíram neste quesito, com 63.6% de variação entre 2017 e 2020.

Foto de Renato Sérgio Lima

Renato Sérgio de Lima - FBSP

Diretor Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP

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Episódios

Metodologia

Os dados utilizados para este especial são oriundos de bases públicas do Governo Federal , ONGs, institutos de pesquisa, entre outros órgãos ou instituições. Todas as bases de dados utilizadas nesta reportagem e nos demais capítulos a serem publicados podem ser acessadas no perfil do Data.doc no GitHub. Esta é uma forma de garantir a transparência, reprodutibilidade e credibilidade dos métodos utilizados.

Créditos

  • Direção Geral de Jornalismo Ana Naddaf e Erick Guimarães Coordenação geral do projeto Thays Lavor - Data.doc - Central de Jornalismo de Dados do O POVO Edição Adailma Mendes, Érico Firmo, Fátima Sudário, João Marcelo Sena, Renato Abê, Thays Lavor Reportagens Armando de Oliveira Lima, Carlos Mazza, Catalina Leite, Cláudio Ribeiro, João Gabriel Tréz, Gabriela Custódio Extração, Análise e Visualização de Dados Alexandre Ramos, Thays Lavor e Gabriela Custódio Infografia Luciana Pimenta e Isac Bernardo Design Cristiane Frota e Isac Bernardo Audiovisual Chico Marinho e Cinthia Medeiros Edição de vídeos André Silvestre e Raphael Góes Pesquisa Histórica Miguel Pontes, Roberto Araújo e Sérgio Falcão Edição de áudios Dyego Viana
  • Direção de Estratégia Digital André Filipe Dummar Gestão do Produto Digital e UX Brenda Câmara Design do Produto Digital Davi Jucimon Programação Front-end Geisa Lima Programação Back-end Milton Paiva